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ANTONIO E CLEOPATRA, ATO II, Cena V

Alexandria. Um quarto no palácio. Entram Cleópatra Charmian, Iras, Alexas e um criado.

CLEÓPATRA - Dai-me música, música, alimento triste de todos os que o amor mantém.

CRIADO - Olá, música! (Entra Mardian.)

CLEÓPATRA - Não; deixemos isso. Vamos para o bilhar. Segue-me, Charmian.

CHARMIAN - O braço me incomoda. Por obséquio, jogai com Mardian.

CLEÓPATRA - Tanto faz ser nosso parceiro uma mulher como um eunuco. Vamos, senhor: quereis jogar comigo?

MARDIAN - Quanto em mim estiver, minha senhora.

CLEÓPATRA - Quando há boa vontade, embora saia tudo aquém de qualquer expectativa, desculpa-se ao ator. Mas já não quero. Traze-me a vara de pescar e vamos para a margem do rio. Ali, ouvindo música ao longe, surpreenderei peixes de escuras barbatanas. Com meu curvo gancho atravessarei suas viscosas mandíbulas, e, na hora de tirá-los da água, imaginarei que cada um deles é outro Antônio e lhe direi: "Peguei-te!"

CHARMIAN - Como eram divertidas as apostas que com ele fazíeis, quando vosso mergulhador prendia no anzol dele qualquer peixe do mar que ele, mui sôfrego, puxava logo!

CLEÓPATRA - Nesse tempo - oh tempo! - eu ria dele de deixá-lo fulo, e à noite eu ria para acomodá-lo, e na manhã seguinte, antes das nove, já o tinha emborrachado de tal modo, que se punha a dormir com meus vestidos, enquanto eu punha à cinta sua espada vencedora em Filipos. (Entra um mensageiro.) É da Itália. Finca-me nos ouvidos as notícias que me trouxeste, pois há muito tempo sem trato eles estão.

MENSAGEIRO - Minha senhora...

CLEÓPÀTRA - Morreu Antônio? Se disseres isso, biltre, assassinarás tua senhora. Mas com saúde e livre... Se o trouxeres assim, aqui tens ouro e aqui tens minha mão de veias azuis para a beijares, esta mão em que reis bebericaram, beijando-a com temor.

MENSAGEIRO - Primeiramente, senhora, ele está bem.

CLEÓPATRA - Toma mais ouro. Mas olha lá, maroto! toma nota: costumamos dizer dos mortos isso. Se for esse o sentido, este ouro todo, mandarei derretê-lo e derramá-lo por essa goela de ruins notícias.

MENSAGEIRO - Boa senhora, ouvi-me.

CLEÓPATRA - Estou ouvindo. Vamos, prossegue! Mas não tens no rosto nada de bom. Se Antônio se acha livre, por que assume feições assim tão ácidas o trombeteiro de notícias boas? Se não estiver bem, vens como Fúria coroada de serpentes, não como homem.

MENSAGEIRO - Não quereis escutar-me?

CLEÓPATRA - Só tenho ímpeto de te bater antes de me falares. Se disseres, porém, que Antônio vive, que está bem de saúde, vive em termos amistosos com César, não estando como seu prisioneiro, chuva de ouro farei cair em ti, seguida de uma saraivada de pérolas.

MENSAGEIRO - Senhora, ele está bem.

CLEÓPATRA - Muito bem dito.

MENSAGEIRO - E em bons termos com César.

CLEÓPATRA - És um bravo.

MENSAGEIRO - Ele e César jamais foram tão íntimos.

CLEÓPATRA - Basta quereres, para seres rico.

MENSAGEIRO - Contudo...

CLEÓPATRA - Não me agrada esse "contudo"; estraga todo o bem que disseste antes. Para longe o "contudo!" Esse "contudo" é como um carcereiro que liberta da prisão algum monstro criminoso. Amigo, por favor, despeja logo nos meus ouvidos tuas novidades, as boas e as ruins, ao mesmo tempo. Amigo ele é de César, já o disseste; está bem de saúde e acrescentaste que se acha livre.

MENSAGEIRO - Livre? Oh! não, senhora! A Otávia se acha preso.

CLEÓPATRA - De que jeito?

MENSAGEIRO - Do melhor jeito que encontrar na cama.

CLEÓPATRA - Charmian, não fiquei pálida?

MENSAGEIRO - Senhora, casou-se com Otávia.

CLEÓPATRA - Que em ti caia a mais nociva peste! (Bate-lhe.)

MENSAGEIRO - Boa dama, tende paciência.

CLEÓPATRA - Que disseste? Fora! (Bate-lhe de novo.) fora daqui, vilão abominável! se não quiseres que te trate os olhos como se fossem bolas de desporto. Vou deixar-te a cabeça sem cabelos. (Sacode-o pelos cabelos.) com arame trançado azorragar-te, pôr-te em salmoura, vivo, para em molho de dores definhares.

MENSAGEIRO - Mui graciosa senhora, trouxe apenas a notícia, não fiz o casamento.

CLEÓPATRA - Dize que isso não é verdade e te farei presente de uma província, além de tua sorte deixar envaidecida. Essas pancadas que recebeste valem como multa por me haveres a cólera agitado. Mais, ainda: dar-te-ei todos os mimos com que possa sonhar tua modéstia.

MENSAGEIRO - Senhora, está casado.

CLEÓPATRA - Miserável, já viveste demais! (Saca de um punhal.)

MENSAGEIRO - Vou já safar-me. Senhora, que pensais? Não tenho culpa. (Sai.)

CHARMIAN - Boa senhora, não percais a calma. Esse homem é inocente.

CLEÓPATRA - O raio atinge a muitos inocentes. Que o Nilo trague o Egito e se transformem em serpes todas as criaturas dóceis. Chama de novo o escravo, que eu não mordo, conquanto esteja louca. Traze-o logo.

CHARMIAN - Tem receio de vir.

CLEÓPATRA - Não vou bater-lhe. (Sai Charmian.) Estas mãos se envilecem por baterem em quem me é inferior; pois sou eu própria que contra mim invento esses motivos. (Volta Charmian com o mensageiro.) Senhor, aproximai-vos. Muito embora seja honesto, não é aconselhável trazer ruins notícias. Às mensagens agradáveis dai um milhão de línguas; mas deixai que as infaustas ocorrências se anunciem por si, quando sentidas.

MENSAGEIRO - Cumpri o meu dever.

CLEÓPATRA - Está casado? Odiar-te mais não me será possível, se me disseres novamente "sim".

MENSAGEIRO - Senhora, está casado.

CLEÓPATRA - Ainda o repetes? Que os deuses te confundam.

MENSAGEIRO - Deveria mentir, senhora?

CLEÓPATRA - Oh! como o desejara! Ainda que meio Egito se alagasse, vindo a tomar-se uma cisterna cheia de serpes escamadas. Vai-te embora. Nem que de rosto fosses um Narciso, me serias medonho. Está casado?

MENSAGEIRO - Perdoai-me, alteza...

CLEÓPATRA - Dize: está casado?

MENSAGEIRO - Não vos zangueis com quem não vos ofende. Punir-me pelo que mandais que eu faça parece injusto. Desposou Otávia.

CLEÓPATRA - Oh! que seu erro te haja transformado num miserável, ainda que não sejas o que és seguramente. Vai-te embora. Os gêneros romanos que trouxeste são caros por demais; fica com eles; e que por eles venhas a arruinar-te. (Sai o mensageiro.)

CHARMIAN - Minha querida alteza, ficai calma.

CLEÓPATRA - Louvando Antônio eu desfazia em César.

CHARMIAN - Muitas vezes, senhora.

CLEÓPATRA - Castigada estou sendo por isso. Retirai-me daqui. Vou desmaiar. Não, não é nada. Oh! Iras! Charmian! Bondoso Alexas, vai atrás desse homem e procura saber como é Otávia, que idade tem, seus gostos, sem que deixe de dizer de que cor tem os cabelos. Traze logo a resposta. (Sai Alexas.) Abandonamo-lo para sempre... Oh, bondosa Charmian! Não. Embora às vezes seja como a Górgona, às vezes é outro Marte. (A Mardian.) Dize a Alexas que me venha contar a altura dela. Apiada-te de mim, Charmian, mas nada me fales. Leva-me para outra sala. (Saem.)