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CONTO DE INVERNO, ATO IV, Cena II

O mesmo. Uma estrada perto da cabana do pastor. Entra Autólico, cantando.

Quando os narcisos nascem no vale - Viva! - e a zagala corta a campina, Que belo tempo! - Ninguém me
fale - À neve pálida o sangue anima. O linho branco da sebe pende - Viva! - Que canto, o dos
passarinhos! Se os apanhasse! Quem não me entende? Cerveja límpida aos canequinhos... Canta a
calhandra. Que melodias! - Viva! - Respondem-lhe o galo e o tordo. Para mim cantam e minhas tias... E
nós no feno... Que dia gordo! Já servi o Príncipe Florizel, e no meu tempo só vestia veludo de três
pelos... Mas agora estou aposentado. Mas vou chorar só por isso? A lua brilha, querida. Quanto menos o
serviço, mais alegre será a vida. Se licença o caldeireiro tem de andar de alforje às costas, confesso tudo,
ligeiro, sem que me façam em postas. Negocio com camisas; quando o milhano faz o ninho, cuidado com
as peças menores. Meu pai me pôs o nome de Autólico... Tendo nascido ele, como eu, sob a influência de
Mercúrio, foi também batedor de coisinhas sem valor. Os dados e as mulheres me deixaram deste modo,
provindo toda a minha renda de roubos insignificantes. A forca e as varas são por demais poderosas na
estrada larga do roubo. A idéia de ser malhado ou enforcado, constitui para mim verdadeiro pesadelo. Na
outra vida não quero pensar nisso. Uma presa! Uma presa!
(Entra o bobo.)

BOBO - Vejamos: cada onze carneiros dão vinte e oito libras de lã; cada vinte e oito libras de lã rendem
uma libra e um xelim... Quinhentos carneiros tosquiados, quanta lã darão ao todo?

AUTÓLICO (à parte) - Se o laço não escapar, o galo é meu.

BOBO - Não poderei fazer a conta sem o auxílio de um calculador. Vejamos: que precisarei comprar
para a festa da tosquia de nossos carneiros? "Três libras de açúcar, cinco de passas de Corinto, arroz..." -
Que pretenderá esta minha irmã fazer com arroz? Mas meu pai a pôs como rainha da festa, e ela sabe o
que faz. Ela me confeccionou vinte e quatro ramalhetes para os tosadores, que são cantores a três vozes,
e dos melhores. A maior parte são tenores e baixos, só havendo entre eles um puritano que canta salmos
na cornamusa. Preciso de açafrão para dar cor à torta de peras; de arilo e tâmara, nada, que isso não está
na nota; noz-moscada, sete; uma ou duas raízes de gengibre - isso eu poderei pedir em qualquer parte -
quatro libras de ameixas e outras tantas de passas.

AUTÓLICO - Oh! Se eu nunca tivesse nascido!
(Atira-se ao chão.)

BOBO - Em meu nome!

AUTÓLICO - Socorro! Socorro! arrancai-me estes trapos, e depois, a morte! BOBO - Ah, pobre alma!
Precisas, mas é que te ponham mais trapos em cima do corpo não que te despojem dos que tens.

AUTÓLICO - O senhor! mais me faz sofrer a repugnância que por eles sinto do que os golpes que recebi,
que, no entanto, foram bem violentos e se contaram por milhões.

BOBO - Ah, pobre homem! Um milhão de pauladas é coisa séria.

AUTÓLICO - Fui roubado, senhor, e espancado. Arrancaram-me o dinheiro e as vestes, e me puseram
sobre o corpo estes farrapos detestáveis.

BOBO - Foi algum pedestre que te fez isso ou algum homem de cavalo?

AUTÓLICO - Foi um pedestre, meu caro senhor; pedestre.

BOBO - Realmente, pela roupa que ele deixou contigo, deve ser mesmo pedestre. Se isso é cota de
cavaleiro, já viu trabalho muito crespo. Dá me a mão; vou ajudar-te. Vamos; dá-me a mão.
(Ajuda-o a levantar-se.)

AUTÓLICO - Ó meu bom senhor! Devagar!

BOBO - Ah, pobre alma!

AUTÓLICO - Ó meu bom senhor! Devagar, meu bom senhor; receio estar com a omoplata fora do lugar.

BOBO - E agora? Podes ficar de pé?

AUTÓLICO - Docemente, meu senhor.
(Rouba a bolsa de dentro do bolso do bobo.)
Docemente! Acabastes de me prestar um serviço caritativo.

BOBO - Estás sem dinheiro? Posso dar-te algum.

AUTÓLICO - Não, meu bom senhor. Não. Por obséquio, senhor. Tenho um parente que mora a uns três
quartos de milha daqui, para onde justamente vou indo. Lá, encontrarei dinheiro e tudo o mais de que
precisar. Não me ofereçais dinheiro, por obséquio; isso me parte o coração.

BOBO - Que espécie de sujeito era o que vos roubou?

AUTÓLICO - Um tipo, senhor, que eu vi correndo a redondeza com o jogo de "Trou Madame". Sei que
antes disso ele esteve a serviço do príncipe. Não poderei dizer-vos, meu caro senhor, por qual teria sido
de suas virtudes; mas o certo é que ele foi expulso da corte a chibatadas.

BOBO - Vícios, quereis dizer, sem dúvida; a virtude nunca é expulsa da corte a chibatadas. Por lá
tratam-a muito bem, com o fito de retê-la quanto possível; no entanto, está sempre de passagem.

AUTÓLICO - Era vício mesmo que eu queria dizer, meu senhor. Conheço muito bem esse tipo. Depois
disso ele já andou por aí tudo, carregando um macaco; depois, foi servente de processo, beleguim;
depois, adquiriu um conjunto de títeres que representavam "O Filho Pródigo", e se casou com a mulher
de um caldeireiro, a uma milha do lugar em que tenho minhas terras e meus bens, e depois de exercer
todas as profissões velhacas, acabou tornando-se um maroto de marca maior. Algumas pessoas lhe dão o
nome de Autólico.

BOBO - A forca para ele! Um ladrão, por minha vida! Um ladrão! Ele gosta de freqüentar as festas
noturnas, as feiras e os combates de urso.

AUTÓLICO - Perfeitamente, senhor; é esse mesmo; foi esse o maroto que me deixou nestes trajes.

BOBO - Em toda a Boêmia não há maroto mais covarde; se o tivésseis encarado com firmeza e cuspido
no rosto dele, é certeza que se poria a correr.

AUTÓLICO - Devo confessar-vos, senhor, que não sou lutador. Para tanto, falta-me coragem, o que
decerto ele bem sabia, podeis crer-me.

BOBO - Como vos sentis agora.

AUTÓLICO - Bem melhor do que antes, meu doce senhor; já posso ficar de pé e andar um pouco.
Poderei, até, despedir-me de vós, para dirigir-me devagarinho até à casa de meu parente.

BOBO - Queres que te acompanhe até à estrada?

AUTÓLICO - Não, meu belo senhor; não, meu doce senhor.

BOBO - Então, adeus; preciso ir comprar temperos para a festa da tosquia dos nossos carneiros.

AUTÓLICO - Muitas felicidades, meu doce senhor.
(Sai o bobo.)
Vossa bolsa não tem calor suficiente para comprar esses temperos. Hei de fazer-vos companhia em vossa
festa. Se eu não conseguir desdobrar este roubo e não transformar os tosadores em carneiros, quero
deixar de fazer parte da lista dos profissionais, para ter o nome inscrito no livro da virtude. Sigamos por
este atalho, alegre o dia inteirinho, oh! Quem vive preso ao trabalho, alvo é sempre de escarninho, oh!