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CONTO DE INVERNO, ATO V, Cena III

O mesmo. Uma capela em casa de Paulina. Entram Leontes, Políxenes, Florizel, Perdita, Camilo,
Paulina, nobres e séquito.

LEONTES - Quanto consolo, minha boa e digna Paulina, estou a dever-te!

PAULINA - Se por vezes, meu soberano, errei, não foi por gosto. Todos os meus serviços sempre foram
compensados de sobra. Mas o fato, senhor, de não vos terdes dedignado, com vosso irmão coroado e os
dois herdeiros, de visitar a minha pobre casa, é excesso de bondade que impossível em toda a vida me
será pagar-vos.

LEONTES - Oh Paulina! Só incômodo vos damos com a honra que dizeis. Mas aqui viemos, para a
estátua admirar de nossa esposa. Atravessamos vossas galerias não sem grande prazer, proporcionado
pela vista de tantas raridades que nela se contêm; mas ainda falta ver o que minha filha tanto almeja: a
estátua da mãe dela.

PAULINA - Assim como ela não teve em vida quem se lhe igualasse, do mesmo modo, creio, sua
imagem inanimada excede tudo quanto pela mão do homem foi jamais criado. Eis a razão de a conservar
à parte. Aqui está ela. Agora preparai-vos para ver como a vida simulada zomba da própria vida, como
nunca da morte o sono o fez. Ei-la! Mirai-a e dizei que é perfeita!
(Paulina afasta uma cortina, deixando ver Hermíone, em posição de estátua.)
Esse silêncio diz bem de vosso espanto; isso me agrada. Mas dizei qualquer coisa. Vós, primeiro, meu
soberano; não é mais ou menos parecida?

LEONTES - Tal qual como era em vida. Não me censures, pedra idolatrada, se eu disser que és
realmente a minha Hermíone. Não, sem me censurares é que és ela, que sempre foi tão branda como a
própria infância, como a graça. Mas, Paulina, Hermíone não tinha tantas rugas; não tinha a idade que
aparenta agora.

POLÍXENES - Oh! muito menos!

PAULINA - Tanto mais nos forçam à admiração os méritos do artista, que a fez envelhecer dezesseis
anos, plasmando-a como se hoje ela vivesse.

LEONTES - Como podia estar ainda, tanto para minha alegria, quanto agora me punge o coração. Oh!
Desse mesmo modo ela estava, com igual aprumo de nobre majestade - vida quente, que ora o calor
perdeu - quando a primeira declaração lhe fiz. Oh! envergonho-me! A pedra não irá lançar-me em rosto
que mais pedra do que ela ora eu pareço? O real obra-prima! Há força mágica em tua majestade, que me
evoca neste momento todos os meus crimes e priva minha filha estarrecida da vida dos sentidos,
transformando-a em pedra, como tu.

PERDITA - Oh! Permiti-me, sem me tachardes de supersticiosa, que eu me ponha de joelho e bênção
peça. Senhora, soberana mui querida, que vos finastes quando eu vim ao mundo, dai-me a mão, porque a
beije!

PAULINA - Oh! mais paciência! A estátua foi concluída há pouco tempo; as cores ainda não estão bem
secas.

CAMILO - Meu senhor, vossa dor tem sido grande todo esse tempo. Dezesseis invernos não a apagaram;

dezesseis estios não puderam secá-la. Nunca vive tanto a alegria; em muito menos tempo qualquer outra
tristeza se matara.

POLÍXENES - Permiti, caro irmão, que quem foi causa de tudo isto, de seu poder se valha para de vós
tirar parte da pena que a ele próprio acabrunha.

PAULINA - Com franqueza, meu senhor, se eu tivesse imaginado que vos abalaríeis tanto à vista de
minha pobre estátua - pois a pedra me pertencia - não vo-la mostrara.

LEONTES - Não corras a cortina.

PAULINA - É conveniente não a verdes mais tempo; em vosso enlevo poderíeis pensar que ela se move.

LEONTES - Deixa! Deixa! Quisera estar sem vida, se morto eu já não parecesse há muito. Quem foi o
autor da estátua? Vede, príncipe, não tendes a impressão de que respira? de que estas veias contêm
mesmo sangue?

POLÍXENES - É uma obra-prima; nesses lábios pulsa mais quente a própria vida.

LEONTES - A fixidez do olhar tem movimento. Só parece que a arte zomba de nós. PAULINA - Não;
vou tapá-la. Tão abalado meu senhor se encontra que há de acabar pensando que ela vive.

LEONTES - Cara Paulina, deixa-me durante vinte anos na ilusão de que é assim mesmo. Toda a razão do
mundo vale menos do que a ventura de uma tal insânia.

PAULINA - Causa-me pena, meu senhor, o ter-vos abalado a esse ponto. Poderia vos causar aflição mais
acendrada.

LEONTES - Faze-o, Paulina. Essa aflição me sabe mais docemente que qualquer cordial. Mas sempre
quer-me parecer que dela vero alento se evola. Mas quando houve quem na pedra gravasse o próprio
anélito? Podem zombar de mim, mas vou beijá-la.

PAULINA - Perdão, meu soberano, mas a tinta dos lábios ainda não secou de todo; com vosso beijo
iríeis retirá-la, sobre sujar-vos de óleo da pintura. Puxo a cortina?

LEONTES - Não, nestes vinte anos.

PERDITA - Tanto tempo eu também ficara olhando-a.

PAULINA - Agora decidi-vos; ou da sala vos retirai já já, ou preparai-vos para maior assombro. Se
puderdes olhar a estátua ainda, farei que ela se mova, desça e pela mão vos tome. Mas então heis de crer
- o que protesto - que algum poder perverso me auxilia.

LEONTES - Verei contente tudo o que mandares que ela faça, e ouvirei também de grado quanto ela me
disser, pois é tão fácil fazer que fale, como que se mexa.

PAULINA - É preciso ter fé. Silêncio agora! Ninguém se mexa, salvo se há quem pense que o que eu
vou praticar é condenável. Esse que se retire.

LEONTES - Continua;ninguém sairá daqui.

PAULINA - Desperta-a, música!

(Música.)
Cessai de ser de pedra! É tempo. Vinde! Tocai em todos que vos olham, cheios de admiração. Descei;
deixarei cheio vosso sepulcro. Sim, aproximai-vos! Legai à morte esse torpor, que a vida já vos libertou
dela. Vede-a; move-se.
(Hermíone desce do pedestal.)
Não vos mostreis estupefactos; todos seus atos são sagrados, como foram lícitos meus conjuros.
Recebei-a; do contrário, faríeis que morresse, o que fora matá-la duas vezes. A mão lhe dai; já a corte lhe
fizestes, quando éreis moço. Mas agora, idoso, ela é que vos corteja.

LEONTES (abraçando Hermíone) - Oh! Está quente! Se magia for tudo, seja uma arte tão lícita como o
ato de comer.

POLÍXENIES - Ela o beijou.

CAMILO - Prendeu-se-lhe ao pescoço. Se está viva, que fale.

POLÍXENES - E nos declare onde viveu até hoje e como à morte conseguiu escapar.

PAULINA - Se vos tivessem dito que ela vivia, certamente riríeis como de uma história antiga; mas que
vive é evidente, embora ainda não nos tenha falado. Um momentinho, por obséquio. Formosa senhorita,
é tempo de intervirdes. Ajoelhai-vos. Boa senhora, ouvi: nossa Perdita foi encontrada.
(Paulina apresenta Perdita, que se ajoelha diante de Hermíone.)

HERMÍONE - Ó deuses, contemplai-nos, e de vossas crateras consagradas derramai graças sobre minha
filha! Dize-me, cara, como te salvaste? Onde viveste até hoje? De que modo pudeste achar a casa de teu
pai? Pois devo te dizer que, tendo ouvido de Paulina que o oráculo nos dera esperança de seres
encontrada, deixei-me ficar viva, porque visse como isso acabaria.

PAULINA - Para tanto, tempo haverá de sobra. Do contrário, perturbareis com vossa narrativa a grande
dita de hoje. Ora reuni-vos, vós todos que lucrastes neste dia, e aos demais transmiti vossa ventura,
enquanto eu, pobre rola envelhecida, subirei para algum mirrado galho, para chorar o esposo que nunca
há de retornar para mim, aí deixando-me ficar até morrer.

LEONTES - Oh! não, Paulina! De minha mão receberás marido, como eu de ti a esposa. Isso é um
contrato que entre juras firmamos. Devolveste-me a minha. Como a achaste... eis o problema; pois eu a
vi, ao parecer, defunta, e em vão rezei em sua sepultura. Não terei precisão de ir muito longe - pois em
parte conheço os sentimentos dessa pessoa - para achar um digno marido para ti. Camilo, adianta-te, e
pela mão a toma, pois seu mérito e sua honestidade são notórios e por dois reis agora confirmados.
Saiamos da capela. Como! Os olhos dirige ao meu irmão. Perdão vos peço, por haver posto meu molesto
ciúme entre vossos olhares inocentes. Eis vosso genro, filho de um monarca, que por disposição do céu
se torna de vossa filha noivo. Generosa Paulina, leva-nos daqui, para onde possamos com vagar
interrogar-nos e responder sobre o papel que todos representam no intervalo grande que se escoou desde
a época remota em que nos separamos. Vai na frente.
(Saem.) ?