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HENRIQUE VIII, ATO I, CENA I

Londres. Na antecâmara do palácio. Entra por uma porta o Duque de Norfolk; por outra, o Duque de
Buckingham e Lorde Abergavenny.

BUCKINGHAM ­ Feliz encontro e venturoso dia. Como passastes desde que nos vimos ultimamente
em França?
NORFOLK ­ A Vossa Graça muito agradeço. Com saúde, e sempre admirador de quanto vi por lá.
BUCKINGHAM ­ Um acesso de febre inoportuna me fez ficar no quarto prisioneiro, quando esses
sóis da glória, luminares da humanidade, em Ardres se encontraram.
NORFOLK ­ Foi entre Guines e Ardres. Eu me achava presente e os vi saudarem-se a cavalo;
contemplei-os depois, quando se apearam, e abraçarem-se os vi de tal maneira, como se confundidos
estivessem. E se assim fosse, mesmo, onde acharíamos quatro tronos que, postos na balança,
eqüivalessem a esse trono duplo?
BUCKINGHAM ­ Todo esse tempo eu prisioneiro estava no meu quarto de doente.
NORFOLK ­ Então perdestes a visão do que a terra tem de grande. Poder-se-ia dizer que até aquela
hora solteira estava a pompa e que nesse ato com algo se casou acima dela. Cada dia vencia os anteriores,
até que chegasse o último e deixasse como próprio o prodígio deles todos. Quando os franceses, somente
ouro e brilho, como deuses pagãos nos ofuscavam, no dia imediato nós fazíamos da Grã-Bretanha a
Índia: qualquer homem que se alçasse, uma mina parecia. Os anõezinhos pajens dir-se-iam querubins,
todos de ouro; as próprias damas, não afeitas à lida, quase suavam sob o peso do orgulho, de tal forma
que o trabalho de enfeite lhes servia. Se qualquer mascarada se dissesse incomparável, a da subseqüente
noite a deixava estúpida e mendiga. Cada um dos dois monarcas, de igual lustre, mais ou menos brilhante
se ostentava, conforme aparecesse. Era louvado de per si qualquer deles; quando juntos, dizia-se que um
só se percebia, não se atrevendo os próprios entendidos a confrontá-los nunca, que esses astros ­ pois
assim lhes chamavam ­ desafiavam, por seus arautos, para as altas justas seus espíritos nobres,
realizavam feitos além de quanto é concebível, de tal forma que as fábulas de antanho, como possíveis
tendo-se afirmado, ganharam novo crédito, levando-nos a ter por certo o que nos conta Bevis.
BUCKINGHAM ­ Oh! ides muito longe.
NORFOLK ­ Tão verdade como em ser nobre e a honestidade na honra procurar sempre: os
diferentes lances dessa festa algum brilho perderiam nos mais altos discursos, pois para eles a melhor
língua era dos próprios feitos. Tudo ali era real; nenhuma parte colidia com outra; a ordem fazia ressaltar
tudo, executando todas as funções seu papel à maravilha.
BUCKINGHAM ­ Quem dirigiu, pergunto, quem, segundo vossa opinião, reuniu o corpo e os
membros dessa esplêndida festa?
NORFOLK ­ Alguém, decerto, que inclinação nenhuma demonstrara para um negócio desses.
BUCKINGHAM ­ Por obséquio, milorde, quem fez isso?
NORFOLK ­ Regulado foi tudo pelo engenho extraordinário do muito reverendo Cardeal de York.
BUCKINGHAM ­ O diabo que o carregue! Em todo bolo mete o dedo ambicioso. Que tinha ele que
ver com tanto excesso de vaidade? Espanto-me de ver que uma montanha de sebo, só com seu volume,
possa os raios absorver do sol benéfico e da terra desviá-los.
NORFOLK ­ Certamente, senhor, há nele estofo que assegura tão grande resultado, pois o apoio não
tendo de linhagem mui notória, cujo prestígio abre caminho aos netos, nem havendo prestado altos
serviços à coroa, nem tendo como aliadas pessoas de valor, mas, como a aranha que de si própria tece a
fina teia, prova que é a força de seu próprio mérito que lhe franqueia a estrada, dom celeste que um lugar lhe assegura junto ao trono.
ABERGAVENNY ­ O que lhe deu o céu, não sei dizê-lo; que olhar mais penetrante isso descubra.
Mas seu orgulho posso ver, que espia por todos os seus traços. De onde o obteve? Se não do inferno, é
que é mesquinho o diabo, ou já deu quanto tinha, e ele outro inferno dentro de si se pôs a criar de novo.
BUCKINGHAM ­ Nessa excursão de França, por que diabo chamou a si o encargo, à revelia do rei,
de designar os que deviam constituir seu séqüito? Ele mesmo a lista preparou dos gentis-homens, de
maneira geral só escolhendo os a que ele pretende impor um fardo muito grande para honra secundária.
Uma simples cartinha de seu punho ­ sem consulta ao Conselho generoso ­ faz do destinatário auxiliar
dele.
ABERGAVENNY ­ Sei de parentes meus ­ três, nesse caso, pelo menos, se encontram ­ que com
isso de tal modo esgotaram seus haveres, que jamais poderão voltar ao prístino bem-estar da família.
BUCKINGHAM ­ Oh! muita gente teve a espinha quebrada pelo peso de suas propriedades, só para
irem nessa imponente viagem. Tanta mostra de vaidade, no entanto, tão-somente serviu para animar
umas conversas de consistência nula.
NORFOLK ­ É pesaroso que eu penso que essa paz entre os franceses e nós não vale quanto nos
custou.
BUCKINGHAM ­ Não houve quem, depois da tempestade que veio logo após, não se sentisse como
inspirado e, sem consulta prévia, não fizesse, de pronto, a profecia de que essa tempestade, assim tirando
da paz o tênue véu, só pressagiava sua ruptura súbita.
NORFOLK ­ É bem claro, pois já quebrou a França o compromisso e embargou em Bordéus a carga
toda de nossos mercadores.
ABERGAVENNY ­ Foi por isso que nosso embaixador foi despedido?
NORFOLK ­ Sim, sem dúvida alguma.
ABERGAVENNY ­ Belo pacto, comprado por um preço exorbitante.
BUCKINGHAM ­ E todo esse negócio, dirigido foi por nosso cardeal mui reverendo.
NORFOLK ­ Perdoe-me Vossa Graça, todo o Estado conhecimento tem da desavença que entre vós
e o cardeal há muito existe. Assim, vos aconselho ­ e aceitai isto de um coração que vos deseja apenas
honra e prosperidade muito sólida ­ considerardes como equivalentes o poder do cardeal e sua astúcia; e
mais: que a tudo quanto seu grande ódio deseje pôr em prática, não há de faltar nunca o instrumento
sempre a jeito. Não ignorais a natureza dele; sabeis que é vingativo, e eu tenho ciência de que sua espada
é de mui fino corte. E comprida; podemos dizer, mesmo, que alcança longe; e onde atingir não possa,
decidido ele a joga. No imo peito guardai este conselho, pois haveis de achá-lo salutar. Eis que vem
vindo a rocha que evitar vos aconselho.
(Entra o Cardeal Wolsey; a bolsa é trazida na sua frente; alguns guardas e dois secretários com papéis
o seguem. De passagem, o cardeal e Buckingham trocam olhares desdenhosos.)
WOLSEY ­ Olá! O processo do inspetor do Duque de Buckingham está ai?
PRIMEIRO SECRETARIO ­ Aqui se encontra, senhor.
WOLSEY ­ E ele está pronto, pessoalmente?
PRIMEIRO SECRETARIO ­ Sim, quando a Vossa Graça for servido.
WOLSEY ­ Bem; depois trataremos desse assunto. Buckingham vai baixar o olhar altivo.
(Sai Wolsey com seu séquito.)
BUCKINGHAM ­ Esse cão de açougueiro tem a boca venenosa e eu não posso amordaçá-la. Assim,
não despertá-lo é aconselhável. O livro do mendigo tem vantagem sobre o sangue de um nobre.
NORFOLK ­ Como assim! Ficastes exaltado? É conveniente pedir a Deus moderação, que é o único
remédio que reclama vossa doença.
BUCKINGHAM ­ Li algo contra mim nos olhos dele. Seu olhar me humilhou, como ao mais ínfimo dos servos, e ora mesmo me traspassa traiçoeiramente. Foi falar com o rei; sigo-lhe já no encalço, para os
olhos obrigá-lo a baixar.
NORFOLK ­ Parai, milorde, e que vossa razão com vossa cólera se ponha a discutir sobre esse
intento. Quem altos montes galga, de começo progride lentamente. A zanga é como um cavalo ardoroso
que, podendo seguir por onde queira, o próprio fogo logo o deixa cansado. Na Inglaterra não há quem
poderia aconselhar-me como vós; sede pois para vós mesmo o que seríeis para vosso amigo.
BUCKINGHAM ­ Vou procurar o rei, e pela boca da honra aos gritos farei que a empáfia desse tipo
de Ipswich ao pó lançada seja; se não, proclamarei que se anularam todas as diferenças entre os homens.
NORFOLK ­ Sede sensato, não deixando quente por demais a fornalha do inimigo, para que não
venhais a cair nela. Ultrapassar podemos, por excesso de rapidez, a meta a que almejávamos, perdendo-a,
assim, por esse próprio excesso. Como o sabeis, a chama que o licor faz subir na vasilha e derramar-se,
parecendo aumentá-lo, o esgota apenas. Sede sensato, torno a aconselhar-vos. Na Inglaterra não há
cabeça alguma capaz de dirigir-vos como a vossa, se quiserdes com a seiva da prudência, quando não
apagar, deixar mais brando o fogo da paixão.
BUCKINGHAM ­ Senhor, por isso vos fico agradecido; vou guiar-me por vossa prescrição. Mas
esse tipo arqui-orgulhoso ­ não me leva o excesso de cólera a nomeá-lo desse modo, mas honesta
emoção ­ por muito certos indícios, provas claras como as fontes no mês de julho, quando distinguimos
no fundo os grãos de areia, tenho em conta de corrupto e traiçoeiro.
NORFOLK ­ Não "traiçoeiro"; não digais isso.
BUCKINGHAM ­ Vou dizê-lo ao rei, e minhas provas hão de ser tão fortes como praia de rocha.
Sede atento. Esta santa raposa, ou lobo, ou ambos ­ pois tão voraz ele é quanto astucioso, e tão propenso
a excogitar maldades, a executá-las sempre, de alma e posto que reciprocamente se infeccionam,
contanto que estadeie aqui e em França toda essa pompa ­ ao nosso soberano sugeriu esse pacto tão
custoso, essa entrevista que absorveu tesouros de tal valia e que acabou partindo-se, qual vidro ao ser
limpado.
NORFOLK ­ É certo, é certo, por minha fé; fez isso.
BUCKINGHAM ­ Por obséquio, senhor! Esse cardeal astuto e fino redigiu os artigos do contrato
como bem entendeu, tendo sido eles ratificados com ter declarado: "Faça-se assim!" Mas são tão úteis
como muletas para um morto. Pouco importa! Foi o conde-cardeal o autor de tudo; o digno Wolsey, que
errar não pode nunca, foi quem fez isso. Mas o que se segue ­ que a meu ver é uma espécie de ninhada
da velha mãe Traição ­ é apenas isto: Carlos, o imperador, sob o pretexto de vir ver a rainha sua tia ­ foi
apenas pretexto, que, em verdade, veio ele para cochichar com Wolsey ­ fez-nos uma visita. Ele temia
que do encontro marcado entre os monarcas da Inglaterra e da França lhe pudesse surgir qualquer
prejuízo, que, em verdade, nessa liga ele via qualquer coisa que podia ameaçá-lo. Assim, com nosso
cardeal ele tratou muito em segredo ­ como imagino, sim, tenho certeza, pois convencido estou de que o
monarca pagou antes de obter o prometido, com o que teve a intenção assegurada bem antes de
enunciá-la. ­ Em suma, havendo franqueado a estrada e de ouro atapetado, desta arte o imperador
manifestou-se: que nele estava obter que o rei o curso desviasse da política e o contrato de paz viesse a
romper. É necessário que o rei saiba ­ e por mim virá a sabê-lo ­ que o cardeal deste modo compra e
vende a honra do reino, e tudo em seu proveito.
NORFOLK ­ Entristece-me ouvir tais coisas dele; desejara saber que há nisso equívoco.
BUCKINGHAM ­ Não, nem no menor ponto; apresentei-o com os verdadeiros traços com que ele há
de desmascarado ser dentro de pouco.
(Entra Brandon, precedido de um sargento de armas.)
BRANDON ­ Vosso ofício, sargento, executai-o. É convosco, senhor Duque de Buckingham e
Conde de Hereford, Stafford e Northampton; em nome de nosso alto soberano, por crime de traição eu te detenho.
BUCKINGHAM ­ Milorde, sobre mim caiu a rede; a vida perco por traição e astúcia.
BRANDON ­ Pesa-me ver-vos sem a liberdade e ter de ao fim levar esta incumbência. A
determinação de Sua Alteza é que sejais levado para a Torre.
BUCKINGHAM ­ Protestar inocência fora inútil; a mancha que em mim pesa deixa negra minha
própria brancura. Seja feita a vontade do céu, agora e sempre. Obedeço. Oh! adeus, adeus, milorde de
Abergavenny.
BRANDON ­ Não; ele também vos fará companhia.
(A Abergavenny.)
É da vontade do monarca que vades para a Torre até poderdes ser certificado do que ele decidir.
ABERGAVENNY ­ Tal como o duque, também direi que em tudo seja feita a vontade do céu, e
obediente me declaro ao prazer do soberano.
BRANDON ­ Ordem expressa aqui trago do rei para a prisão de Lorde Montacute, devendo, após,
prender João de la Car, o confessor do duque, um tal Gilberto Peck, seu chanceler...
BUCKINGHAM ­ Bem, bem; os membros dessa conspiração. É tudo, creio.
BRANDON ­ Há um monge cartuxo.
BUCKINGHAM ­ Como! Como! Nicolau Hopkins?
BRANDON ­ Esse.
BUCKINGHAM ­ É um miserável meu intendente. O cardeal imenso lhe ofereceu dinheiro. Tenho
os dias contados; sou a pobre sombra, apenas, de Buckingham, que neste instante a forma de uma nuvem
assume, para escuro deixar meu claro sol. Milorde, adeus.
(Saem.)