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HENRIQUE VIII, ATO II, CENA II

Uma antecâmara do palácio. Entra o Lorde Camareiro lendo uma carta.

CAMAREIRO ­ "Milorde: os cavalos que Vossa Senhoria encomendou foram, com todo o zelo,
escolhidos por mim, montados e arreados. Eram mui novos e vistosos, e da melhor raça do Norte.
Quando tudo já se achava no jeito de serem eles enviados para Londres, um dos homens do Lorde
Cardeal, munido de comissão e de plenos poderes, mos arrebatou, sob a alegação de que seu amo tinha
de ser servido, antes de qualquer súdito e até mesmo antes do rei, o que nos entupiu a boca, senhor." Sim,
receio que o seja. Pois que fique com eles! Quer ficar com tudo, penso.
(Entram os Duques de Norfolk e de Suffolk.)
NORFOLK ­ Feliz encontro, Lorde Camareiro.
CAMAREIRO ­ Muito bom dia para Vossas Graças.
SUFFOLK ­ Que faz o rei?
CAMAREIRO ­ Deixei-o só, entregue a pensamentos tristes e a cuidados.
NORFOLK ­ E qual a causa disso?
CAMAREIRO ­ O casamento com a mulher de seu mano, ao que parece, mui de perto perturba-lhe a
consciência.
SUFFOLK ­ Não; a consciência dele é que perturba de perto outra senhora.
NORFOLK ­ É assim, realmente. É obra do cardeal; do rei-cardeal. Esse filho dileto da fortuna, esse
padre sem olhos, vira todas as coisas pelo avesso. Mas um dia quem ele é há de o rei ficar sabendo.
SUFFOLK ­ Deus o permita; pois, de outra maneira, jamais há de a si mesmo conhecer-se.
NORFOLK ­ Que santidade em todos os seus atos! Que zelo põe em tudo! Agora que ele a liga pôs
por terra que entre o grande sobrinho da rainha e nós havia, o imperador, no coração mergulha do nosso
rei, onde semeia dúvidas, remorsos de consciência, desesperos, perigos e temores, e tudo isso só por
motivo desse casamento. E para o rei tirar desse embaraço aconselha o divórcio, a jogar longe de si
próprio quem, como jóia rara, lhe pendeu do pescoço por vinte anos, sem que perdesse o brilho, a da que
o ama com esse amor inefável que dedicam aos homens bons os anjos, juntamente a ela, que até sob o
mais rude golpe da sorte, ainda abençoará o rei. Tudo isso não revela santidade?
CAMAREIRO ­ Deus me proteja contra tais alvitres! É bem verdade que essas novas andam por toda
a parte; todos as comentam, sem que haver possa coração honesto que por isso não chore. Quem de perto
se atreve a examinar esse negócio, o fim supremo dele enxerga logo: a irmã do Rei da França. O céu um
dia os olhos há de abrir ao rei, que, para este homem mau, há tanto tempo dorme.
SUFFOLK ­ E livrar-nos de sua servidão.
NORFOLK ­ Precisamos rezar com fervor para sermos libertados; caso contrário, esse homem
prepotente, de príncipes que somos, a nós todos vai transformar em pajens. Diante dele todas as honrarias
a aparência tomam de massa informe que ele molda como bem lhe parece.
SUFFOLK ­ Por meu lado, senhores, nem amor ele me inspira, nem medo em mim desperta. Eis o meu credo. Não lhe devendo o meu estado, fico sendo o que sou, se ao rei for isso grato. Suas bênçãos
me são indiferentes e suas maldições: um simples vento que passa sem ferir-me. Conheci-o como o
conheço ainda; assim, o entrego a quem o fez tão orgulhoso: ao papa.
NORFOLK ­ Vamos entrar. Quem sabe se outro assunto distrai o rei dessas idéias tristes que tanto
ora o deprimem? Companhia não nos fareis, milorde?
CAMAREIRO ­ Desculpai-me, mas o monarca me enviou alhures. Além do mais, receio que o
momento não seja muito próprio... A ambos desejo muita e muita saúde.
NORFOLK ­ Agradecido, meu mui bondoso Lorde Camareiro.
(Sai o Lorde Camareiro.)
(Norfolk abre uma porta de duas folhas; aparece o rei, sentado e lendo com ar pensativo.)
SUFFOLK ­ Que ar de tristeza! É fato: algo o preocupa.
REI HENRIQUE ­ Olá! Quem está aí?
NORFOLK ­ Permita Deus que ele se encontre calmo.
REI HENRIQUE ­ Quem está aí? repito; como ousastes intrometer-vos desse modo em minhas
meditações privadas? Quem sou eu?
NORFOLK ­ Um rei gracioso que perdoa a todas as ofensas isentas de maldade. Um negócio do
Estado foi que a quebra do dever nos impôs, para sabermos qual seja a vossa decisão real.
REI HENRIQUE ­ Sois muito ousados. Ide! Hei de fazer-vos conhecer vossas horas de serviço.
(Entram Wolsey e Campeio.)
Quem está aí? Meu bom Lorde Cardeal! Ó meu Wolsey bondoso, o lenitivo de minha consciência tão
ferida! És o remédio próprio de um monarca. (A Campeio.) Sois bem-vindo, mui sábio e reverendo
senhor, a nosso reino. Podeis dele dispor como de nós. (A Wolsey.) Bondoso lorde, tomai cuidado para
que eu não venha a dizer coisas sem nenhum sentido.
WOLSEY ­ Senhor, não nas direis, se Vossa Graça nos conceder uma hora apenas, para
conversarmos à parte.
REI HENRIQUE ­ (a Norfolk e Suffolk) ­ Ide; estamos ocupados agora.
NORFOLK (à parte, a Suffolk) ­ Não é certo que esse padre é orgulhoso?
SUFFOLK (à parte, a Norfolk) ­ É insuportável. Não quisera estar doente até esse ponto, nem
mesmo a troco de seu posto agora. Mas é impossível que isso continue.
NORFOLK (à parte, a Suffolk.) ­ Se tal se der, arriscarei medir-me com ele numa queda.
SUFFOLK (à parte, a Norfolk.) ­ Eu também, noutra.
(Saem Norfolk e Suffolk.)
WOLSEY ­ Deu Vossa Graça uma lição de grande sabedoria a todos os monarcas, submetendo de
grado vossas dúvidas à voz da cristandade. Quem agora poderia mostrar-se aborrecido? Que ódio vos
alcançara? A Espanha, pelo sangue e pelos favores a ela presa, terá de confessar, se for sincera, que o
debate foi justo e em tudo nobre. Todo o clero ­ refiro-me aos mais sábios da cristandade ­ têm opinião
livre. Roma, esse berço da sabedoria, por vossa solicitação enviou-nos uma língua geral, este bom
homem, este santo e erudito sacerdote, Cardeal Campeio, que de novo apresento a Vossa Alteza.
REI HENRIQUE ­ E, de braços abertos, eu de novo lhe dou as boas-vindas, ao sagrado conclave
agradecendo o amor que todos assim me certificam, pois me enviaram o homem que desejar eu poderia.
CAMPEIO ­ Vossa Graça merece o amor de todos os estrangeiros, por tão nobre serdes. Nas mãos
de Vossa Alteza ora deponho minha alta comissão, por cuja força e expressa ordem de Roma,
associais-vos comigo, servo dela, vós, milorde Cardeal de York, para, com isenção de ânimo, julgarmos
esse assunto.
REI HENRIQUE ­ Ambos são dignos. Vai ficar a rainha neste instante sabendo o que vos trouxe.
Onde está Gardiner?
WOLSEY ­ Sei bem que Vossa Majestade sempre a amou com tantas veras, que impossível vos será
recusar-lhe o que outra dama de menos posição exigiria com base no direito: alguns juristas com
liberdade para defendê-la.
REI HENRIQUE ­ Sim, poderá dispor dos mais notáveis; e desde já prometo o meu amparo para o
que a defender com maior brilho. Deus o contrário disso não permita. Por obséquio, cardeal, chamai-me
Gardiner, meu novo secretário. Acho-o muito hábil.
(Sai Wolsey.)
(Volta Wolsey com Gardiner.)
WOLSEY (à parte, a Gardiner.) ­ Dai-me a mão; alegria vos desejo, muita prosperidade. Desde
agora pertenceis ao monarca.
GARDINER (à parte, a Wolsey.) ­ Porém para mandado sempre ser por Vossa Graça, cuja mão me
elevou.
REI HENRIQUE ­ Vem para perto, Gardiner.
(Conversam à parte.)
CAMPEIO ­ Por acaso, Lorde de York, não ocupava um Doutor Pace o posto que este homem ora
ocupa?
WOLSEY ­ Justamente.
CAMPEIO ­ E não passava por um grande sábio?
WOLSEY ­ Sem dúvida nenhuma.
CAMPEIO ­ Podeis crer-me, Lorde Cardeal, mas corre um boato feio que vos toca de perto.
WOLSEY ­ A mim! Como isso?
CAMPEIO ­ Sem reservas proclamam que o invejáveis. De medo que ele viesse a subir muito, por
ser de grande mérito, o mantínheis ocupado nas cortes estrangeiras, o que tanto o magoou, que morreu
louco.
WOLSEY ­ Que a paz do céu seja com ele. Como cristão é só o que digo. Para os vivos que
murmuram, castigos não lhes faltam. Mas esse era um idiota, que queria ser virtuoso. Aquele outro que
ali vedes faz tudo o que eu mandar, sem discrepância. Só quero gente assim junto do trono. Aprendei
isto, irmão: não desejamos ser perturbados pelos subalternos.
REI HENRIQUE ­ Entregai com respeito isto à rainha.
(Sai Gardiner.)
Quero crer que o lugar mais adequado para essa erudição seja Black-Friars. Ali vos reunireis para
esse assunto de tamanha importância. Meu caro Wolsey, mandai arranjar tudo. Oh! como custa, milorde,
para quem tem sentimento, abandonar tão doce companheira. Mas, consciência, consciência! És delicada
por demais. É preciso abandoná-la.
(Saem.)