Compartilhe

HENRIQUE VIII, ATO II, CENA IV

Uma sala em Black-Friars. Trombetas; fanfarras e toque de cornetas. Entram dois oficiais de justiça
com varinhas de prata; seguem-nos dois escrivães com vestes de doutor; a seguir, o Arcebispo de
Cantuária, sozinho; depois, os Bispos de Lincoln, Ely Rochester e Santo Asaph. Depois deles, a pequena
distância, vem um gentil-homem com uma bolsa, o grande selo e um chapéu cardinalício; depois, dois
padres, trazendo cada um uma cruz de prata. A seguir, entra um gentil-homem da câmara do rei, com a
cabeça descoberta, acompanhado de um sargento de armas, que traz um cetro de prata; depois, dois
gentis-homens, carregando dois grandes pilares de prata. Depois deles, lado a lado, os dois cardeais, dois
cavalheiros com espada e cetro. Depois entram o rei e a rainha, com os respectivos séquitos. O rei se
assenta sob o baldaquim; os dois cardeais se sentam abaixo dele, como juizes; a rainha se assenta a certa
distância do rei; os bispos se colocam de cada lado da corte, em forma de consistório. Abaixo deles, os
escrivães. Os nobres se sentam junto dos bispos. O pregoeiro e os outros oficiais de serviço se colocam
no palco em ordem conveniente.

WOLSEY ­ Até que nossa comissão de Roma seja lida, mandai que haja silêncio.
REI HENRIQUE Qual a necessidade disso? Feita já foi publicamente essa leitura; sua validez está
reconhecida de ponta a ponta. Assim, fora possível poupardes Esse tempo.
WOLSEY ­ Seja. Adiante!
ESCRIVÃO ­ Gritai: Rei Henrique da Inglaterra, comparecei a este tribunal!
PREGOEIRO ­ Rei Henrique da Inglaterra, comparecei a este tribunal!
REI HENRIQUE ­ Presente.
ESCRIVÃO ­ Gritai: Catarina, Rainha da Inglaterra, comparecei a este tribunal!
PREGOEIRO ­ Catarina, Rainha da Inglaterra, comparecei a este tribunal!
(A rainha não responde; levanta-se de seu lugar, atravessa a sala, dirige-se para o rei, ajoelha-se aos
pés dele e depois fala.)
RAINHA CATARINA ­ Só direito e justiça é o que vos peço, senhor, e que de mim tenhais piedade.
Sou uma pobre mulher, uma estrangeira, que veio ao mundo longe dos domínios que vos são próprios.
Não disponho agora nem de juiz imparcial nem de esperança de tratamento equânime da corte. Ai de
mim! Em que posso, acaso, tem-vos ofendido, milorde? Que motivo de desgosto vos deu minha conduta,
para pensardes em mandar-me embora, de vossa graça e afeto me privando? O céu é testemunha de que
sempre vos fui esposa humilde e verdadeira; sempre me conformei ao vosso alvitre; com medo sempre,
até, de despertar-vos desgosto, busquei sempre acomodar-me ao menor gesto vosso, alegre ou triste,
conforme vos notasse. Em que momento tentei opor-me a qualquer ordem vossa, sem que fizesse minha?
A qual dos vossos amigos por amar não me esforcei, muito embora na conta de inimigo sempre o tivesse
tido? Ou a que pessoa de minhas relações eu continuei revelando afeição, quando ela vossa cólera
provocasse? Na mesma hora não lhe fazia ver que passaria daí por diante a ser meu inimigo?
Recordai-vos, senhor, de que durante mais de vinte anos, obediente sempre, hei sido vossa esposa e tive a
bênção de vos dar muitos filhos. Se no curso desse tempo puderdes um só fato mencionar e provar contra
minha honra, minha fidelidade, meu afeto, o respeito que devo a vossa sacra pessoa: em nome, sim, de
Deus, lançai-me de vossa vista e que o mais negro opróbrio venha fechar-me as portas, entregando-me ao
rigor mais severo da justiça. Escutai-me, senhor: o soberano vosso pai sempre foi considerado um
príncipe prudente, de excelente julgamento e de muita perspicácia. Ferdinando, meu pai e Rei da
Espanha, passava pelo príncipe mais sábio daquela terra, desde muitos anos, sendo fora de dúvida,
portanto, que em cada reino eles reunido houvessem um conselho de sábios, que julgaram legal nossa
união, depois de haverem bem estudado o assunto. Por tudo isso, senhor, humildemente vos suplico que
me poupeis até que eu tenha tempo de me comunicar com meus amigos de Espanha e lhes pedir que me
aconselhem. Mas em nome de Deus, caso contrário, também nisso se faça o que quiserdes.
WOLSEY ­ Senhora, aqui dispondes destes padres reverendos ­ a escolha tendes livre ­ homens de
singular integridade e, todos eles, de saber mui raro, a nata da nação, que aqui se encontram para vos
defender. Inútil fora, por isso, adiar o julgamento, tanto para vosso sossego como para deixar o rei sem
causa de inquietude.
CAMPEIO ­ Com todo o acerto e muito sabiamente Sua Graça falou. Por isso tudo, senhora, é
conveniente que prossiga esta real sessão, devendo logo ser apreciadas as razões das partes.
RAINHA CATARINA ­ Lorde Cardeal, é a vós que eu me dirijo.
WOLSEY ­ Qual é o vosso prazer, minha senhora?
RAINHA CATARINA ­ Senhor, estou no ponto de chorar. Mas refletindo que rainha somos ­ pelo
menos assim me vi em sonhos por muito tempo ­ e com certeza filha de um monarca, transformo minhas
lágrimas em chispas abrasantes.
WOLSEY ­ Ficai calma.
RAINHA CATARINA ­ Ficarei, quando humilde vos mostrardes; antes, não, porque Deus me
puniria. Creio, firmada em provas convincentes, que sois meu inimigo. Assim, declaro-vos suspeito para
funcionardes como juiz em minha causa, pois as chamas que se alçam entre mim e meu marido nasceram
de vosso hálito. Prouvera que o orvalho do Senhor possa apagá-las! Mais uma vez declaro:
abominando-vos como vos abomino, com toda a alma, para meu julgador não vos aceito, porque ­ tomo
a dizer ­ vos considero inimigo maldoso, e não vos posso ter em conta de amigo da verdade.
WOLSEY ­ Preciso confessar que vos estranho por causa da linguagem, que bondosa sempre vos
revelastes, demonstrando disposição gentil e em tudo branda, sobre sabedoria patenteardes que
ultrapassava o sexo. Enormemente, senhora, me ofendeis; ódio não tenho com relação a vós, nem fui
injusto jamais convosco ou com qualquer pessoa. Tudo quanto até agora tenho feito, da comissão do
consistório emana, direi melhor: de todo o consistório de Roma. Contra mim fizestes carga de que eu
soprei as chamas deste incêndio. Não é assim, o rei está presente. Se ele achasse que falso eu me
mostrara, em seu poder estava castigar-me mui merecidamente a falsidade, sim, com o mesmo rigor com
que zurzistes minha veracidade. Se ele sabe que eu me encontro inocente dessa pecha, sabe também que
me fazeis ofensa. Dele depende, assim, reabilitar-me, o que pode fazer de vós tirando semelhantes idéias.
Por tudo isso, antes que Sua Alteza a falar venha, graciosa dama, instante vos conjuro a retratar-vos,
nunca mais voltando a usar essa linguagem.
RAINHA CATARINA ­ Ó milorde! eu sou uma mulher simples, muito fraca para lutar com toda
vossa astúcia. Sois brando e de linguagem sempre humilde. Exerceis vosso posto e ministério com
mostras exteriores de brandura, de perfeita humildade, mas de orgulho tendes o coração inflado sempre,
de arrogância e rancor. Favorecido pela fortuna e o amparo de Sua Graça, subir pudestes com facilidade
os degraus mais de baixo, ora encontrando-vos numa altura em que todos os poderes se constituíram
vossos seguidores. Vossas palavras, como humildes servos, prestam-se a executar vossos desejos em
tudo o que quiserdes. Sou-vos franca: mostrais-vos mais zeloso do prestígio pessoal do que mesmo dos
deveres de vossa profissão em tudo digna. Como juiz recuso-vos, declaro-o novamente; e ora, em frente
de vós todos, apelo para o papa, resolvida a levar minha causa até à presença de Sua Santidade, porque
seja julgada com justiça.
(Inclina-se diante do rei e faz menção de retirar-se.)
CAMPEIO ­ Mui rebelde contra a justiça mostra-se a rainha, inclinada a acusá-la e desdenhosa de
suas decisões. Não é bom isso. Já se vai retirando.
REI HENRIQUE ­ Convocai-a novamente.
PREGOEIRO ­ Catarina, Rainha da Inglaterra, comparecei ante este tribunal!
GR1FFITH ­ Chamaram-vos, senhora.
RAINHA CATARINA ­ Por que prestastes atenção a isso? Segui vosso caminho, por obséquio. Dai
meia volta, quando vos chamarem. Deus venha em minha ajuda; é insuportável. Vamos; não ficarei aqui
mais tempo, nem nunca mais porei os pés nas cortes convocadas por causa deste assunto.
(Sai a rainha com seu séquito.)
REI HENRIQUE ­ Vai, Kate; continua teu caminho. Se houver no mundo quem ousar gabar-se de ter
acaso esposa mais valiosa, que em nada seja crido após tão grande, tão patente mentira. Estás sozinha
com tuas raras qualidades, tua bondade natural, benignidade como de santa, dignidade em tudo feminina,
obediência no comando... Todas essas virtudes soberanas e religiosas, se falar pudessem, te aclamariam,
bem o sei, rainha das rainhas da terra. Tem nobreza de nascimento, e por maneira nobre, com relação a
mim, se portou sempre.
WOLSEY ­ Mui gracioso senhor, humildemente conjuro a Vossa Alteza que se digne declarar ante
todos os presentes ­ pois onde eu fui roubado e acorrentado solto tenho de ser, mesmo no caso de não
chegar a obter a merecida satisfação ­ se todo este negócio foi por mim sugerido a Vossa Alteza ou se,
de qualquer modo, fiz escrúpulos em vós nascerem, que vos decidissem a propor a questão; se qualquer
dito da boca me saiu ­ senão apenas louvores ao Senhor, por alcançado terdes tão alta esposa ­ que
pudesse em detrimento vir do estado dela ou de leve atingir sua pessoa.
REI HENRIQUE ­ Milorde, eu vos desculpo. Por minha honra, absolto vos declaro. Não preciso
dizer-vos quantos inimigos tendes, que o motivo de o serem desconhecem, aos cachorros de aldeia
semelhantes, que ladram por ouvir ladrar os outros. Um desses contra vós fez irritar-se o ânimo da
rainha. Desculpado ­ de todo vos achais. Mas se quiserdes que a justificação seja completa, direi que
sempre desejastes que este negócio adormecesse, não querendo que fosse despertado. Muitas vezes, sim,
muitos empecilhos levantastes nos caminhos que fossem dar até ele. Por minha honra declaro que o
bondoso Lorde Cardeal não teve parte nisso. Absolvo-o por completo. Quanto às causas que me
determinaram neste passo, da atenção dos presentes e do tempo pretendo ora abusar. Vede o começo. Foi
assim; atenção prestai a tudo. Minha consciência viu-se perturbada pela Primeira vez, com certo
escrúpulo, como que espicaçada, ante as palavras do embaixador francês numa dada época, o Bispo de
Baiona, que aqui viera para negociar o casamento entre o Duque de Orléans e nossa filha Maria. No
decurso das conversas, antes de termos assentado nada, ele ­ a saber: o bispo ­ requereu-nos que em
suspenso deixássemos o assunto para que ele consulta ao rei fizesse sobre se nossa filha era legítima com
relação ao nosso casamento com a rainha-mãe, que fora esposa de nosso próprio irmão. Esse intervalo
abalou-me a consciência até ao mais fundo, na alma me penetrou com força ingente, a tremer o imo peito
me deixando. Abrindo, assim, caminho, inumeráveis perplexidades em tropel afluíram, assoberbado me
deixando o espírito. De início me ocorreu que o céu deixara de sorrir para mim, pois, tendo o mando
sobre a natura, havia-lhe ordenado que se um filho varão de mim o ventre de minha esposa a conceber
viesse, não lhe haveria de fazer serviço mais relevante do que faz aos mortos a sepultura. Com efeito:
todos os filhos masculinos ou morriam onde gerados tinham sido, ou logo depois de respirarem o ar do
mundo. Daí me ter nascido o pensamento de que isso era um castigo, que meu reino digno de ter o mais
brilhante herdeiro, de mim não lhe viria essa alegria. Pus-me a pensar, depois, todo o perigo a que o país
sujeito se encontrava, pela falta de herdeiro, o que do peito me arrancou sentidíssimos gemidos. Desse
modo, flutuando no agitado mar de minha consciência, pus a mira neste remédio que é o motivo certo de
nossa reunião. Por outros termos: pretendia aliviar minha consciência, que então sentia gravemente
enferma e que ainda não se acha muito boa, em que possam ter feito os reverendos prelados e os doutores
cá da terra. Comecei, Lorde Lincoln, consultando-vos em caráter privado. Certamente deveis estar
lembrado como ao peso dessa opressão eu suspirava, quando pela primeira vez vos falei nisso.
LINCOLN ­ Perfeitamente, meu senhor.
REI HENRIQUE ­ Falei-vos longamente. Dizei vós mesmo agora o que, por consolar-me, então
fizestes.
LINCOLN ­ Se a Vossa Majestade for do agrado, de tal modo confuso esse problema de início me
deixou, não só por sua transcendente importância, como pelas terríveis conseqüências que seriam de
esperar, que o conselho mais ousado à dúvida confiei, havendo logo proposto a Vossa Alteza a idéia que
ora se concretiza aqui.
REI HENRIQUE ­ Falei convosco, Milorde de Cantuária, havendo obtido vosso consentimento para
que esta reunião viesse a ser feita. Não há membro desta colenda corte que eu deixasse de consultar, foi
tudo feito, tudo, com o apoio formal e o selo expresso ele cada um e de todos. Por tudo isso; prossegui,
pois nenhuma antipatia contra a pessoa da gentil rainha, mas aqueles acúleos lancinantes das razões
aduzidas suscitaram semelhante debate. Se provardes que nosso enlace é válido, por minha vida, por
minha régia dignidade, felizes somos por participarmos com ela deste nosso mortal curso, com Catarina,
nossa soberana, que antepomos a todas as criaturas do mundo, por mais primas e exemplares que
porventura sejam.
CAMPEIO ­ Vossa Alteza me perdoe, mas a ausência da rainha nos impõe o adiamento desta corte.
Até essa nova data deveremos insistir com empenho junto dela para que ela desista do recurso que em
mandar pensa a Sua Santidade.
(Levantam-se para sair.)
REI HENRIQUE ­ Noto que estes cardeais estão fazendo troça de mim. Odeio essas delongas, essas
manhas de Roma. Ó meu fiel Cranmer, meu sábio servidor e muito amado, conjuro-te a voltar, pois tua

vinda, tenho certeza, me trará conforto. ­ Suspendei a sessão, digo... Saiamos.
(Saem todos, na mesma ordem com que entraram.)