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HENRIQUE VIII, ATO III,CENA II

Antecâmara dos apartamentos do rei. Entram o Duque de Norfolk, o Duque de Suffolk, o Conde de
Surrey e o Lorde Camareiro.

NORFOLK ­ Se em vossas queixas ora vos unirdes e com vossa insistência as reforçardes, ao cardeal
resistir será impossível. Mas no caso de não aproveitardes esta oportunidade, só vos digo que tereis de
agüentar novas desgraças, além das que já tendes.
SURREY ­ Rejubilo-me por achar ocasião, embora mínima, que lembrado me faz de que meu sogro,
o duque, tem de ser vingado nele.
SUFFOLK ­ Qual dos pares não foi menosprezado por ele, ou, quando nada, por maneira sempre
estranha, esquecido? Em que pessoa, tirante a própria, ao cunho da nobreza respeito ele mostrou?
CAMAREIRO ­ Falais, milordes, somente o que sentis. Sei bem o que ele de mim e vós merece;
mas, se há modo de contra ele fazermos qualquer coisa, nesta oportunidade. é o que duvido. Se o
caminho barrar-lhe não puderdes que vai ter até ao rei, não tenteis nada nesse sentido, pois a língua dele
sobre o monarca exerce poder mágico.
NORFOLK -- Oh! nada de receios! Seu feitiço sobre o rei já acabou. pois o monarca contra ele
descobriu alguma coisa que há de estragar o mel de seus discursos de uma vez para sempre. Ele se
encontra definitivamente mergulhado no desprazer do rei.
SURREY ­ Como eu ficara satisfeito de ouvir uma notícia como essa de hora em hora!
NORFOLK ­ É verdadeira, podeis acreditar. Sua conduta, dúplice, no divórcio está patente. Nisso ele
apareceu como eu quisera que aparecesse meu pior inimigo.
SURREY ­ Como se descobriram seus embustes?
SUFFOLK ­ Do modo mais estranho.
SURREY ­ Oh! Como? Como?
SUFFOLK ­ A carta que o cardeal mandara ao papa se extraviou, vindo ter às mãos do rei, e o rei viu
que o cardeal pedia instante a Sua Santidade que parasse com a sentença a respeito do divórcio, "porque,
sendo alcançado", acrescentava, "é certo o rei achar-se apaixonado por uma das criaturas da rainha, Ana
Bolena".
SURREY ­ O rei tem essa carta?
SUFFOLK ­ Ficai certo.
SURREY ­ E será de algum efeito?
CAMAREIRO ­ O rei, com isso, vê como ele corta direito ou se desvia nos caminhos de seus
próprios intentos. Mas sobre isso falham todas as artes; o remédio chega depois da morte do paciente: o
rei já desposou a bela dama.
SURREY ­ Oh, quem nos dera!
SUFFOLK ­ Possa esse desejo deixar-vos venturoso, pois afirmo-vos que já está realizado.
SURREY ­ Alegremente saúdo esse consórcio.
SUFFOLK ­ Digo amém.
NORFOLK ­ Como todos o fazem.
SUFFOLK ­ Já estão sendo dadas as ordens para a coroação. Mas isso é novidade muito fresca, não é
para ser dita a toda a gente. Mas, meus senhores, ela é uma criatura realmente extraordinária, assim no
espírito como na forma extrema. Estou convicto de que dela virá tal ou qual bênção para esta terra, digna
de memória.
SURREY ­ E o rei vai engolir aquela carta do cardeal? Não permita Deus tal coisa.
NORFOLK ­ Com a breca! Amém.
SUFFOLK ­ Não, não! Há outras vespas que em torno do nariz lhe estão zumbindo, para apressar o
efeito da picada. Sem despedir-se, o Cardeal Campeio partiu furtivamente para Roma. Não deu remate à
causa do monarca. Foi despachado no papel de agente do nosso Cardeal Wolsey, para força dar a suas
intrigas. Asseguro-vos que o rei disse "Ah!" ao ter notícia disso.
CAMAREIRO ­ Que Deus o deixe exasperado, para dizer "Ah!" com mais força.
NORFOLK ­ Mas, milorde, quando retorna Cranmer?
SUFFOLK ­ Já se encontra de volta, sempre fiel à sua antiga maneira de pensar, e, juntamente com
os colégios de mais subida fama de toda a cristandade, justifica o divórcio do rei. Dentro de pouco, quero
crer, o segundo casamento será tornado público, assim como a coroação da nova soberana. Catarina não
mais será chamada de rainha, porém princesa e viúva do falecido Artur. Oh! esse Cranmer é um sujeito
de peso; teve muito trabalho com os negócios do monarca.
SUFFOLK ­ Decerto; e ainda havemos de, por isso, vê-lo como arcebispo.
NORFOLK ­ Ouvi falar a esse respeito.
SUFFOLK ­ É certo. Eis o cardeal!
(Entram Wolsey e Cromwell.)
NORFOLK ­ Observai-o! observai-o! Está zangado.
WOLSEY ­ Entregastes ao rei o embrulho, Cromwell?
CROMWELL ­ No quarto de dormir; dei-lho em mão própria.
WOLSEY ­ Viu de que se tratava?
CROMWELL ­ Na mesma hora tirou o selo, e o que pegou primeiro leu com ar muito sério,
revelando grande preocupação. Mandou dizer-vos que hoje bem cedo viésseis esperá-lo.
WOLSEY ­ Pretende sair logo?
CROMWELL ­ Penso que ele não deve demorar.
WOLSEY ­ Deixai-me agora por uns instantes.
(Sai Cromwell.)
(À parte.)
Deve ser a Duquesa de Alençon, irmã do Rei da França. É essa que ele há de escolher para esposa.
Ana Bolena! Não, não quero para ele a Ana Bolena. Não basta ter uma bonita cara. Ora, Bolena! Não
queremos nada com Bolena nenhuma. Que demora com as notícias de Roma! Ora, a Marquesa de
Pembroke!
NORFOLK ­ Ele não está contente.
SUFFOLK ­ Talvez já saiba que contra ele a cólera o rei já está afiando.
SURREY ­ Ó Deus! deixai-a com bom corte, se fores justo em tudo.
WOLSEY ­ Dama de companhia da rainha, filha de um cavaleiro, ama da ama, rainha da rainha!
Esta candeia não está dando chama muito clara. Tenho de espevitá-la. Então, que acabe. Tem mérito e é
virtuosa... Mas, que importa? Sei que ela é luterana apaixonada. Não é saudável para nossa causa que ela
repouse do monarca ao peito, que tão dificilmente é governado. Depois, apareceu recentemente um
herético, um herético dos piores, esse Cranmer, que no ânimo do rei soube insinuar-se e agora é dele o oráculo.
NORFOLK ­ Alguma coisa o deixa preocupado.
SURREY ­ Desejara que fosse alguma coisa que lhe estragasse a corda, a corda mestra do coração.
(Entra o rei, lendo um codicilo, e Lovell.)
SUFFOLK ­ O rei! O rei vem vindo!
REI HENRIQUE ­ Que quantidade imensa de riquezas soube ele acumular para si próprio, e que
enormes despesas a toda hora de suas mãos escoam. De que modo pode ele conciliar as duas coisas? ­
Então senhores, vistes o cardeal?
NORFOLK ­ Aqui nos encontrávamos milorde, a observá-lo. Algo estranho tem no cérebro: morde
os lábios, assusta-se, detém-se subitamente, os olhos no chão crava e, de repente, leva o dedo à fronte;
sem que se espere, ágil estuga os passos; depois, detém-se, o peito fere duro, volvendo a olhar mais uma
vez à lua. Nas mais estranhas posições o vimos.
REI HENRIQUE ­ Pode ser que em revolta tenha o espírito. Papéis do Estado esta manhã
mandou-me, conforme lhe pedira. Poderíeis acaso imaginar o que entre os mesmos fui encontrar, por
pura inadvertência, posso vos garantir, da parte dele? O inventário, em verdade, relativo sua prataria,
seus tesouros, finíssimos tecidos, ornamentos de sua casa que julga serem mostras de excessiva
opulência, que ultrapassa de muito as posses de qualquer vassalo.
NORFOLK ­ O céu tem parte nisso; algum espírito decerto entre os papéis pôs essa lista para com
ela os olhos abençoar-vos.
REI HENRIQUE ­ Se acreditar pudéssemos que suas meditações pairavam sobre a terra e alguma
multa espiritual visavam, pudera prosseguir no devaneio. Mas receio que sejam sublunares suas idéias e,
por isso, indignas de séria reflexão.
(Senta-se no trono e fala baixo a Lovell, que se dirige a Wolsey.)
WOLSEY ­ Deus me perdoe! Que o céu proteja sempre Vossa Alteza.
REI HENRIQUE ­ Meu bondoso senhor, mostrais-vos cheio de coisas celestiais e guardais na alma o
inventário da graça mais preciosa, que decerto relíeis neste instante. Será difícil para vós, desse ócio pio
tirar o mais fugaz momento para as contas terrestres. Considero-vos a esse respeito um péssimo
intendente e alegre me declaro por achar-vos muito igual a mim mesmo neste ponto.
WOLSEY ­ Meu soberano, eu tenho um tempo para meus deveres sagrados, outro para dedicar aos
negócios que me forem designados no Estado. A natureza, por sua vez, a fim de conservar-se, reclama
alguns momentos que eu, por força, como seu filho frágil e no jeito de meus irmãos mortais, tenho de
dar-lhe.
REI HENRIQUE ­ Palavras acertadas.
WOLSEY ­ Desejara que Vossa Alteza associasse sempre ­ como por merecê-lo hei de esforçar-me
­ com as palavras meus atos acertados.
REI HENRIQUE ­ Novamente bem dito; com acerto já procede quem fala desse modo. No
entretanto, palavras não são atos. Meu pai vos estimava; assim dizia, tendo com os atos coroado o dito.
Desde que o sucedi, sempre vos tive perto do coração. Assegurei-vos posições de proventos vantajosos.
Mais: entrei em meu próprio patrimônio para vos estender meus benefícios.
WOLSEY (à parte) ­ Que quererá ele dizer com isso?
SURREY (à parte) ­ Deus faça prosperar este negócio.
REI HENRIQUE ­ Fiz de vós o primeiro homem do Estado, o primeiro, pois não? Dizei-me,
peço-vos, se confirmais o que ora vos declaro. No caso de o fazerdes, respondei-nos se nos deveis
obrigação por isso. Que nos dizeis?
WOLSEY ­ Meu digno soberano, confesso que as reais graças diariamente sobre mim derramadas
ultrapassam de muito quanto eu vos fazer pudesse. Sim, vencem mesmo todo esforço humano. Sempre
aquém meus esforços se deixaram ficar de meus desejos, porém nunca de minha habilidade. Meus
intuitos pessoais só mereciam ser chamados de pessoais na medida em que tendiam para o bem da pessoa
sacratíssima de Vossa Majestade e o bem do Estado. Por todas essas graças derramadas sobre mim, tão
indigno e pequenino, só agradecimentos de vassalo vos posso dirigir e minhas preces ao céu por vós,
assim como a lealdade muito própria, que tem sempre crescido e sempre há de crescer, até que a morte,
esse inverno, a aniquile.
REI HENRIQUE ­ Bela frase; retrata um obediente e fiel súdito. A honra o recompensa, como o
opróbrio; caso contrário, será o seu castigo. Penso que ao tempo em que com benefícios vos estendia a
mão, sincero afeto por vós do coração se me expandia, honras do trono sobre vós chovendo, mais do que
sobre outra qualquer pessoa. Por isso tudo, vossa mão, o cérebro, o coração e todas as partículas de vosso
ser deviam ­ não por força dos deveres gerais da vassalagem, mas, por assim dizer, por um afeto muito
particular ­ ser-me afeiçoados, a mim, o vosso amigo, mais que aos outros.
WOLSEY ­ Só sei dizer que sempre hei trabalhado mais para o bem de Vossa Majestade do que para
o meu próprio. Assim fui sempre, assim sou e hei de ser. Embora todos os homens viessem a quebrar as
juras que a vós os prendem, arrancando-as da alma; muito embora os perigos se amontoassem em maior
quantidade do que pode representar o próprio pensamento, sob formas pavorosas me surgindo: ainda
assim, qual penedo em meio às ondas impetuosas, o meu dever de súdito desviaria a torrente irresistível e
se conservaria sempre vosso.
REI HENRIQUE ­ Palavras muito nobres. Tomai nota, senhores, que ele tem muito leal peito, pois o
vistes aberto. Ora lede isto.
(Entrega-lhe uns papéis.)
E, em seguida, isto; e, após, o vosso almoço, se apetite tiverdes para tanto.
(Sai o rei, lançando um olhar colérico para o Cardeal Wolsey; os nobres se apressam a segui-lo,
sorrindo e cochichando uns com os outros.)
WOLSEY ­ Que quer dizer tudo isso? Essa ira súbita? Como fui provocá-la? Ele afastou-se com o
rosto carrancudo, parecendo dos olhos irradiar minha ruína. É desse modo que o leão furioso encara o
ousado caçador; ferido, muito embora, o aniquila. É necessário que eu leia este papel. Temo que nele se
ache a história de toda a sua cólera. É isso mesmo; esta folha aniquilou-me. É a relação do mundo de
riquezas que eu amontoei para proveito próprio, especialmente para ver se a sede do papado alcançava, e
meus amigos de Roma, assim, pagar. Oh negligência! digna de pôr um imbecil por terra! Que demônio
maldoso me teria levado a colocar este segredo de tamanha importância no pacote que eu mandei para o
rei? Não há recurso para remediar isto? Traça alguma que esta idéia do cérebro lhe tire? Sei que ele vai
ficar muito abalado; mas um meio conheço, que no caso de ser bem aplicado ­ embora a sorte se possa
opor ­ me tirará do aperto. Que será isto? "Ao Papa!" A própria carta que eu enviei a Sua Santidade! Por
minha vida! Agora está acabado. Não há remédio. Já alcancei o ponto mais alto da grandeza, e desse
pleno meridiano de minha grande glória baixarei apressado para o ocaso. Vou cair como um lúcido
meteoro, que ninguém mais enxerga.
(Voltam os Duques de Norfolk e de Suffolk, o Conde de Surrey e o Lorde Camareiro.)
NORFOLK ­ Escutai o prazer do rei, cardeal. Entregar-vos ordena sem delongas em nossas mãos o
selo e à casa de Asher vos recolher, à sede do bispado de Winchester, até novas mais precisas terdes de
Sua Alteza.
WOLSEY ­ Alto! Onde se acham vossos plenos poderes? Só palavras nunca trazem tão grande
autoridade.
SUFFOLK ­ Quem pode contrariá-las, se da boca do rei, diretamente, elas dimanam?
WOLSEY ­ Até que eu veja mais do que palavras, ou vontade somente e a falsidade que vos
caracteriza, ficai certos, senhores oficiosos, que eu me atrevo, que eu devo contestá-las. Vejo agora de
que metal grosseiro fostes feitos: de inveja. Com que empenho seguis todos minha desgraça, como se
alimento dela mesma tirásseis! Que brandura, que maciez revelais em tudo quanto pode apressar-me a
queda! Em vosso curso de inveja continuai, homens maldosos; os deveres cristãos vos dão apoio; mas há
de vir o tempo em que, sem dúvida, sereis recompensados. Este selo que de mim reclamais com tanto
empenho, o soberano ­ meu senhor e vosso ­ com suas mãos me deu, asseverando que em toda a minha
vida eu gozaria do posto e dignidade a ele inerentes. E para sua generosidade deixar bem clara,
confirmou o dito com suas cartas patentes. Assim sendo, quem se atreve a tomar-mo?
SURREY ­ O rei, que o deu.
WOLSEY ­ Que seja ele em pessoa, então.
SURREY ­ Não passas de um traidor arrogante, padre.
WOLSEY ­ Mentes, lorde atrevido! Há quarenta horas, Surrey preferiria ter queimado a língua a
falar desse modo.
SURREY ­ Tua empáfia, ó pecado escarlate, esta chorosa terra privou do muito nobre Buckingham,
meu sogro. Todas as cabeças, todas de teus irmãos cardeais, contigo e quanto tiveres de melhor, pesavam
menos que um só cabelo dele. A peste leve toda a vossa política. Enviastes-me para a Irlanda,
afastando-me da ajuda que podia prestar-lhe, do monarca, de quantos o teriam desculpado do crime a ele
imputado, enquanto a vossa grande bondade, por piedade santa, o absolveu com um machado.
WOLSEY ­ Isso, e assim tudo quanto este lorde falador quisesse doravante assacar-me, afirmo, é
falso. Por lei o duque recebeu seu prêmio. De como eu fui isento de maldade particular na queda dele,
prova-o o nobre júri e a própria ação nefanda. Milorde, se eu gostasse de discursos muito compridos, ora
vos diria que sois destituído tanto de honra como de honestidade e que a respeito de lealdade e verdade
ao soberano ­ meu sempre leal senhor ­ me considero melhor homem que Surrey e que todos quantos
suas loucuras aprovavam.
SURREY ­ Padre, essa roupa longa vos protege, por minha alma. Se não fora isso, havias de sentir
minha espada no teu sangue. Podeis, milordes, continuar ouvindo por mais tempo tamanhas arrogâncias?
E logo deste tipo? Se mostrarmos mansidão a esse ponto, que permita a um retalho escarlate fazer pouco
de nós todos, então: adeus, nobreza! Que prossiga Sua Graça e vos enxote com seu chapéu, tal como a
cotovias.
WOLSEY ­ Para esse estômago é veneno o mérito.
SURREY ­ Sim, mas o mérito de haver reunido por meio da extorsão toda a riqueza da terra em
vossas mãos, cardeal; o mérito do embrulho interceptado, da missiva que para o papa contra o rei
mandastes. Já que me provocastes, vosso mérito vai ficar conhecido à saciedade. Milorde de Norfolk, se
é que de nobre família descendeis e fazeis caso do bem-estar de todos, da grandeza de nossa condição
espezinhada, de nossos filhos que, dificilmente, se ele viver, virão a ser fidalgos, lede a lista de todos os
seus crimes, o resumo de todos os seus atos. Muito mais assustado vou deixar-vos do que o sagrado sino,
quando aquela rapariga morena em vossos braços se recosta, cardeal, e vos dá beijos.
WOLSEY Como eu podia desprezar este homem, se não fosse impedir-me a caridade!
NORFOLK ­ Milorde, a lista de seus crimes se acha com o próprio rei, mas basta que o declare: são
todos horrorosos.
WOLSEY ­ Mais formosa com isso, e imaculada, há de mostrar-se minha inocência, quando o
soberano conhecendo ficar minha lealdade.
SURREY ­ Isso não vai salvar-vos. Felizmente tenho boa memória; ainda me lembro de alguns itens
da lista. Vou dizê-los. Se capaz de corar ainda fordes, cardeal, e de dizer "culpado" a tudo, um resto
mostrareis de honestidade.
WOLSEY ­ Falai, senhor, pois desafio vossas acusações. Corar eu poderia, mas por ver um fidalgo

que de todo perdeu a compostura.
SURREY ­ Antes perdê-la que perder a cabeça. E agora ouvi-me. Primeiro, sem que o rei tivesse tido
ciência disso ou nisso consentido, conseguistes o posto de legado, com o que mutilastes os direitos de
nossos bispos.
NORFOLK ­ A seguir, em tudo quanto escrevíeis para o rei e para príncipes estrangeiros, sempre
usáveis a pretensiosa fórmula seguinte: "Ego et Rex meus" com o que do rei fazíeis um subalterno vosso.
SUFFOLK ­ Mais, ainda: sem ter o rei nem o Conselho ciência, quando de embaixador servistes
junto do imperador, tivestes a ousadia de a Flandres carregar o grande selo.
SURREY ­ Item, poderes plenos de vós teve Gregório de Cassado, para um pacto firmar entre
Ferrara e Sua Alteza, sem de nada saber o rei e o Estado.
SUFFOLK ­ Depois, por simples ambição, mandastes gravar vosso chapéu sagrado em todas as
moedas do rei.
SURREY ­ Depois, enviastes somas enormes ­ deixo agora à vossa consciência os meios por que
foram ganhas ­ para Roma comprar e abrir caminho para mais altos postos; isso tudo sob as ruínas do
país inteiro. Há mais; porém por serem coisas vossas, são odiosas; não vou sujar a boca.
CAMAREIRO ­ Ó senhor! não façais pressão tão grande contra um homem que cai; é caridade. Às
leis estão patentes suas faltas; que elas, não vós, se incumbam de puni-lo. Aperta-se-me o coração por
vê-lo precipitado de tão grande altura.
SURREY ­ Por mim, perdôo-lhe.
SUFFOLK ­ Lorde Cardeal, eis o que o rei decide: tendo em vista que quanto ultimamente
praticastes dentro deste país, na qualidade de legado, se encontra no domínio de um praemunire, contra
vós se expressa uma ordem de confisco, relativa a tudo o que possuís, terras, castelos e quanto mais
tiverdes, declarando-vos fora da proteção do soberano. Essa é a minha mensagem.
NORFOLK ­ E com isso a vossas reflexões vos entregamos, para vos reformardes. Quanto à vossa
resposta de há momentos, obstinada, de não nos entregar o grande selo, o rei será informado e,
certamente, vos agradecerá. E agora, adeus, meu pequenino e bom Lorde Cardeal.
(Saem todos, com exceção de Wolsey.)
WOLSEY ­ Adeus ao pouco bem que me votáveis. Adeus, um longo adeus a toda a minha grandeza.
Esse é o destino de todo homem: hoje lhe nascem as folhinhas tenras da esperança; amanhã ele floresce,
carregado ficando de honrarias; mas no terceiro dia vem a geada, uma geada mortal, e no momento
preciso em que ele ­ quão simplório e calmo! ­ crê que sua grandeza está madura, ela a raiz lhe morde,
caindo ele tal como agora eu caio. Aventurei-me como crianças que nadam com bexigas, durante estios
vários num oceano de glórias, mas profundo em demasia. Minha vaidade, inflando-se ao extremo,
arrebentou sob mim, ora deixando-me cansado e envelhecido no serviço, ao sabor de uma rude
correnteza que para sempre acabará tragando-me. Glórias vãs deste mundo, pompas fúteis, tenho-vos
ódio! O coração se me abre a novos sentimentos. Triste a sorte de quem depende do favor dos príncipes!
Entre o sorriso a que ele aspira tanto, o aspecto prazenteiro do monarca, e sua ruína há mais angústia e
medo do que na guerra ocorre ou nas mulheres. E quando a queda vem, quem cai é Lúcifer, privado da
esperança.
(Entra Cromwell, com aspecto consternado.)
Que é que há, Cromwell?
CROMWELL ­ Para falar, senhor, não tenho forças.
WOLSEY ­ Como! Minha desgraça te consterna? Admitir teu espírito não pode que um grande
homem decline? Estais chorando! Devo, então, ter caído de verdade.
CROMWELL ­ Como vai Vossa Graça?
WOLSEY ­ Bem, decerto; nunca fui tão feliz, bondoso Cromwell. Agora me conheço. No meu

íntimo sinto uma paz que paira sobre todas as dignidades terrenas, uma consciência clara e tranqüila.
Devo ao rei a cura; agradecido sou a Sua Graça, humildemente o digo. Destes ombros, por piedade, tirou
pesado fardo que afundar poderia até uma frota: honra excessiva. Oh! que pesado fardo! É um fardo, meu
bom Cromwell excessivo para quem põe no céu toda a esperança.
CROMWELL ­ Alegro-me por ver que Vossa Graça compreende a situação por essa forma.
WOLSEY ­ Penso que sim, convicto estando agora ­ graças à força que no peito sinto ­ de que
suportarei mais sofrimentos e muito mais intensos do que quantos meus inimigos de ânimo mesquinho a
me infligir se atrevam. Que há de novo?
CROMWELL ­ A novidade pior e mais penosa é a boa graça do rei terdes perdido.
WOLSEY ­ Deus o ampare!
CROMWELL ­ A segunda é que nomeado foi em vosso lugar Sir Tomás More; é o Lorde Chanceler.
WOLSEY - É um tanto súbita, parece-me, a ascensão; mas é pessoa de saber comprovado. Faço
votos para que ele por muito tempo saiba conservar-se nas graças do monarca e a justiça aplicar segundo
as regras imparciais do dever e da consciência. Desse modo seus ossos, quando o curso completado ele
houver e já se achar na bem-aventurança adormecido, alcançarão um túmulo banhado nas lágrimas dos
órfãos. Há outras novas?
CROMWELL ­ Cranmer voltou e foi bem recebido; foi nomeado Arcebispo de Cantuária.
WOLSEY ­ Oh! isso é novidade!
CROMWELL ­ Finalmente, que Lady Ana, com quem muito em segredo havia muito tempo, o rei
casara, hoje foi vista em público, quando ia para a capela real, sendo tratada como rainha. Só se fala
agora em sua coroação.
WOLSEY ­ Foi esse peso que me jogou por terra. Oh Cromwell, Cromwell! O rei se me escapou. É
para sempre, para sempre que eu perco minhas glórias nessa única mulher. Jamais o sol voltará a
proclamar minha grandeza nem a doirar de novo os novos grupos que sempre meus sorrisos aguardavam.
Afasta-te de mim, bondoso Cromwell; sou um pobre homem decaído, indigno de ser agora teu senhor e
mestre. Vai procurar o rei. Jamais ocaso há de ter este sol, é o que desejo. Quem és lhe disse e quanto
verdadeiro. Decerto há de ajudar-te. Algum resquício de consideração a meu respeito ­ conheço-lhe a
alma nobre ­ há de impedi-lo de apagar teu serviço meritório. Bondoso Cromwell, não te esqueças dele;
cuida de teu futuro, promovendo tua estabilidade.
CROMWELL ­ Ó meu senhor! Vou deixar-vos? Forçoso é, então, que eu perca tão bondoso senhor,
tão leal e nobre? Atestem-me as pessoas que de ferro não têm o coração, em como é cheio de tristeza que
Cromwell se despede de seu senhor e mestre, O soberano meus serviços terá; mas minhas preces sempre
vossas serão, oh! sempre, sempre!
WOLSEY ­ Cromwell, nunca pensei que uma só lágrima viria a derramar em minha queda. Mas com
tua lealdade e singeleza ao papel de mulher me reduziste. Enxuguemos os olhos. E ora escuta-me.
Quando esquecido eu já estiver ­ que é certo vir a sê-lo ­ e dormir no frio mármore, quando ninguém
pronunciar meu nome, dirás que eu te mostrei, dirás que Wolsey ­ que as estradas da glória percorrera e
os abismos sondara mais profundos e as sirtes do comando ­ em seu naufrágio te mostrou o caminho da
grandeza, o caminho seguro e confortável que ele próprio perdera. Observa apenas minha queda e o que
fez minha ruína. Despe-te de ambição, Cromwell, te peço. Esse pecado derrubou os anjos; como útil
poderia ser aos homens, de Deus feitos à imagem? Não reveles egoísmo; ama aos próprios inimigos. Não
lucrarás por meio do suborno mais do que com a verdade. Traze sempre na destra a doce paz, pala que as
línguas invejosas reduzas ao silêncio. Se justo e nada temas. Que tuas metas se identifiquem sempre com
as da pátria, de Deus e da verdade, pois, ó Cromwell! no caso de caíres, tua queda será a de um grande
mártir. Serve ao rei e, por obséquio, deixa-me. O inventário farás de tudo quanto tenho, tudo, até o último
pêni; ao rei pertence. Minha lealdade ao rei e minhas vestes é tudo o que me resta. Ó Cromwell,

Cromwell! Se ao meu Deus eu tivesse revelado metade, só, do zelo com que sempre servi o soberano, ele
decerto não me teria, nesta idade, entregue nu aos meus inimigos.
CROMWELL ­ Meu bondoso senhor, tende paciência.
WOLSEY ­ Tenho muita. Esperança da corte, agora, adeus; minha esperança se concentra em Deus.
(Saem.)