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HENRIQUE VIII, ATO IV, CENA II

Kimbolton. Entra a ex-Rainha Catarina, doente, conduzida por Griffith e Paciência.

GRIFFITH ­ Como se sente agora Vossa Graça?
CATARINA ­ Oh Griffith! É mortal minha doença. Como galhos de chumbo tenho as pernas,
dobradas para a terra e desejosas de se desvencilharem de seu fardo. Trazei-me uma cadeira. Assim;
agora me sinto mais a gosto. Não disseste, Griffith, quando me vinhas amparando, que esse famoso filho
da grandezas o Cardeal Wolsey, tinha falecido?
GRIFFITH ­ Disse, minha senhora; mas pensava que ouvido não me tinha Vossa Graça, em virtude
de vossos sofrimentos.
CATARINA ­ Conta-me, por obséquio meu bom Griffith, de que modo morreu. Se morreu bem,
partiu na minha frente certamente para me dar exemplo.
GRIFFITH ­ Todos dizem, senhora, que foi bem. Após ter sido detido em York pelo altivo Conde
Northumberland e conduzido para justificar-se das mais graves culpas que pesavam sobre ele, mui de
súbito sentiu-se doente e de tal modo fraco que nem pode montar em sua mula.
CATARINA ­ Pobre homem!
GRIFFITH ­ Finalmente, a muito custo, Leiscester alcançou, tendo apeado na abadia, onde foi bem
recebido pelo abade com todos os seus monges, a quem falou assim: "Ó padre abade, um ancião
alquebrado pelas grandes tempestades do Estado, aqui se encontra para entre vós deixar os lassos ossos.
Por caridade, concedei-lhe ao menos uma pouca de terra". Conduziram-no sem mais delongas para a
cama, tendo feito a doença rápido progresso. E, já bem fraco, na terceira noite, pelas oito horas ­ que ele
próprio havia predito que sua última seria ­ arrependido, em lágrimas banhado, contínuo meditar e
ininterruptas preocupações, restituiu ao mundo suas pompas, ao céu a imortal parte, e adormeceu em paz.
CATARINA ­ E assim repouse Que não lhe pesem suas grandes faltas. Mas uma coisa, Griffith, me
permite que a seu respeito eu diga, sem faltar-lhe com a caridade. Ele era um indivíduo de orgulho
desmedido, que gostava de se ombrear com os príncipes, um homem que por meios secretos conseguira
dominar todo o reino. A simonia para ele era o normal; seu próprio arbítrio, toda a lei. Até mesmo ante a
evidência assoalhava mentiras; sempre dobre nas intenções e em tudo o que dizia. Piedade não mostrava,
salvo quando premeditava arruinar alguém. No prometer, magnífico, tal como era ele então; mas, quanto
a realizá-las, tal como é agora: nada. Pecou muito na própria carne, dando, assim, exemplo péssimo a
todo o clero.
GRIFFITH ­ Nobre dama, os defeitos dos homens são gravados no bronze, mas as boas qualidades
escrevemo-las na água. Vossa Alteza permitirá que bem eu fale dele?
CATARINA ­ Pois não, bondoso Griffith; de outro modo, maldosa eu me mostrara.
GRIFFITH ­ Esse cardeal, apesar de sua origem muito humilde, foi fadado, decerto, desde o berço
para altas honrarias. Foi um sábio maduro e mui capaz, de extraordinária sagacidade, sempre bem falante
e de grande poder de persuasão. Áspero e altivo para os desafetos, mas, como o estio, doce para todos os
que o iam procurar. E muito embora no adquirir ele fosse incontentável ­ o que é grande pecado ­
revelava-se principesco no dar, nobre senhora. Sempre hão de provar isso esses dois gêmeos da ciência
que ele para vós criou: Oxford e Ipswich; um, que caiu com ele, por não querer sobreviver ao próprio
benfeitor; o outro, embora ainda incompleto, de marcha ascensional tão admirável, que nunca deixará a
cristandade de tecer-lhe elogios. Sua queda fez sobre ele chover felicidades, pois a partir daí ­ nunca
antes disso ­ pode adquirir consciência de si próprio, felicidade achando na ventura de ser pequeno, o
que lhe deu mais honras à velhice que os homens o fariam. Morreu temente a Deus.
CATARINA ­ Depois de eu morta, não desejo outro arauto, mais brilhante relator de meus atos,
porque fique da corrupção minha honra sempre isenta, do que um cronista honesto como Griffith. Quem
em vida eu odiei, tu me obrigaste, com tão pia modéstia e reverência, a honrar depois de morto. Em paz
descanse. Fica perto de mim, Paciência; deixa-me mais baixa um pouco; não vou dar-te incômodo por
muito tempo mais. Bondoso Griffith, aos músicos ordena que ora toquem a ária tristonha que eu chamar
costumo de meu dobre funéreo, pois sentada me quedarei a meditar naquela celestial harmonia que mui
breve terei de conhecer.
(Música triste e solene.)
GRIFFITH ­ Está dormindo. Sentemo-nos, menina, bem quietinhos, para não despertá-la. Sem barulho, gentil Paciência.
(A visão. Entram solenemente, uma após outra, seis personagens, vestidas de branco, com grinaldas
de louro na cabeça e máscara de ouro no rosto; nas mãos trazem palmas de louro. Saúdam primeiro a
rainha e depois dançam; a determinadas mudanças de figura, as duas primeiras sustentam sobre a cabeça
da rainha uma grinalda pequena, ao tempo em que as outras quatro se inclinam com reverência. Depois,
as duas que seguram a grinalda a passam para as duas seguintes, que observam a mesma ordem na
mudança dos passos, mantendo-a sobre a cabeça da rainha. Depois, passam-na para as duas últimas, que
repetem a cerimônia, com o que ­ como que por inspiração ­ a rainha faz no sono sinais de aprovação e
levanta as mãos para o céu. As aparições, sem parar de dançar, desaparecem, levando a grinalda. A
música continua.)
CATARINA ­ Espíritos da paz, para onde fostes? Já desaparecestes e na minha miséria me
deixastes?
GRIFFITH ­ Aqui estamos, minha senhora.
CATARINA ­ Não falei convosco. Vistes alguém entrar durante o tempo em que a dormir fiquei?
GRIFFITH ­ Ninguém, senhora.
CATARINA ­ Não? Não vistes entrar neste momento um coro de anjos que me convidavam para um
banquete? De brilhantes rostos, me iluminavam como o sol radioso, felicidade eterna me auguraram,
lindas grinaldas me trouxeram, Griffith, que eu de aceitar ainda não sou digna. É cedo, porventura.
GRIFFITH ­ Regozijo-me por ver, senhora, que tão belos sonhos vos prendem os sentidos.
CATARINA ­ Manda a música parar; é dura e deixa-me abatida.
(Cessa a música.)
PACIÊNCIA ­ Notastes a mudança que de súbito Sua Graça apresenta? Como o rosto ficou mais
longo! Como ela está pálida e fria como argila! Os olhos vede-lhos!
GRIFFITH ­ Está morrendo, filha. Reza! Reza!
PACIÊNCIA ­ Possa o céu ampará-la.
(Entra um mensageiro.)
MENSAGEIRO ­ Se Vossa Graça...
CATARINA ­ Sois impertinente. Não merecemos mais respeito, acaso?
GRIFFITH ­ Censura mereceis, pois bem sabendo que ela abdicar não quer da costumeira majestade,
falais com tal rudeza. Ajoelhai! Ajoelhai!
MENSAGEIRO ­ Humildemente peço perdão a Vossa Majestade. A pressa foi que me deixou
grosseiro. Ai fora há um gentil-homem que deseja falar-vos. Vem da parte do monarca.
CATARINA ­ Griffith, manda-o entrar, mas que este tipo eu enxergar não torne.
(Saem Griffith e o mensageiro.)
(Volta Griffith com Capúcio.)
Se minha vista não me engana, da parte agora vindes do imperador, meu muito real sobrinho, e vos
chamais Capúcio.
CAPÚCIO ­ Ele, senhora, servidor vosso.
CATARINA ­ Ó meu senhor, os tempos e os títulos mudaram muito, muito, desde que me ficastes
conhecendo. Mas, por obséquio, que quereis de mim?
CAPÚCIO ­ Em primeiro lugar, nobre senhora, a Vossa Graça oferecer meus préstimos; depois, o rei
determinou que eu viesse fazer esta visita. Muito aflito ele está por saber-vos assim fraca e por meu
intermédio vos envia suas reais condolências, desejando sinceramente que crieis coragem.
CATARINA ­ Ó meu senhor! Este encorajamento me chega muito tarde; é como graça depois da
execução. Esse remédio benigno, administrado em tempo certo, me teria curado. Mas agora, consolo
algum me serve, se excetuarmos apenas a oração. E Sua Alteza como passa?
CAPÚCIO ­ Senhora, com saúde.
CATARINA ­ Que continue assim, florente sempre, quando eu morar com os vermes e meu pobre
nome estiver banido deste reino. Paciência, foi enviada aquela carta que eu te mandei fazer?
PACIÊNCIA ­ Ei-la, senhora.
(Entrega a carta a Catarina.)
CATARINA ­ Senhor, humildemente vos conjuro a entregar isto ao rei, meu soberano.
CAPÚCIO ­ De bom grado, senhora.
CATARINA ­ Recomendo nela à sua bondade a vera imagem de nosso casto amor, a filha dele ­ que
em bênçãos incessantes caia o orvalho sempre do céu sobre ela! ­ e lhe suplico que lhe ministre educação
virtuosa. É muito nova e de modesta e nobre natureza, esperando eu que ela saiba praticar a virtude, e
que um pouquinho de amor lhe vote em consideração da mãe que o amou tão ternamente como só do céu
é sabido. O outro pedido que humildemente faço é que Sua Graça tenha piedade destas infelizes
mulheres que durante tanto tempo me acompanharam, sempre dedicadas, na fortuna variável, não
havendo, posso afirmá-lo ­ e nisso falsidade não poderei dizer ­ nenhuma delas que, por virtudes e
beleza da alma, honestidade e nobre compostura não mereça um marido de alto mérito. Que seja nobre,
até, pois, em verdade, serão felizes os que as escolherem. Meu último pedido é para os criados. Pobres
são todos, mas de mim não pode tirar nunca a pobreza nenhum deles. Sejam-lhes pagos, pois, os
ordenados, sem falta alguma, com algum acréscimo, como recordação de minha parte. Se um pouco mais
de vida o céu me houvesse concedido, e recursos, nos teríamos despedido melhor. Eis toda a carta,
senhor. Por tudo quanto neste mundo tendes de caro, pela paz cristã que desejais aos mortos, sede amigo
destes coitados, insistindo junto do soberano, para que ele esta última justiça me conceda.
CAPÚCIO ­ Pelo céu, assim farei, ou despojar-me quero desta figura humana.
CATARINA ­ Agradecida, muito digno senhor. Humildemente falai de mim a Sua Majestade.
Dizei-lhe que já vai deixar o mundo o autor de seus cuidados demorados. Contai-lhe que eu o abençoei
na morte, pois vou fazê-lo. Tenho os olhos turvos. Adeus, senhor; Griffith, adeus. Paciência, não, não
saias ainda. Chama as outras; preciso ir para a cama. Estando eu morta, boa menina, trata-me com honra.
Virginais flores põe no meu sepulcro, para que todos saibam que uma esposa casta eu fui até à morte.
Embalsamai-me e exibi-me. Conquanto não rainha, como rainha quero que me enterrem, como filha de
rei. Não posso mais...
(Saem, levando Catarina.)