Compartilhe

A MEGERA DOMADA, ATO IV, Cena II

(Pádua. Diante da casa de Batista. Entram Trânio e Hortênsio.)

TRÂNIO - Será possível, caro amigo Lício, que outro, que não Lucêncio, possa o afeto vir alcançar da
senhorita Bianca? Sim, meu caro senhor, posso afirmar-vos que ela me tem encorajado muito.

HORTÊNSIO - Para vos convencer do que vos disse, senhor, ficai de lado e tomai nota como ele dá
lições.
(Afastam-se.)
(Entram Bianca e Lucêncio.)

LUCÊNCIO - Aproveitastes, senhora, alguma coisa da leitura?

BIANCA - E vós, mestre, que ledes? Respondei-me primeiro a essa pergunta. LUCÊNCIO - O que
professo: a arte de amar.

BIANCA - Possais, senhor, ser mestre na arte que professais com devoção.

LUCÊNCIO - E vós, a dona de meu coração.
(Afastam-se.)

HORTÊNSIO - Como isso vai depressa! Não juráveis - dizei-me agora - que vossa ama Bianca a
ninguém mais amava em todo o mundo, se não esse Lucêncio?

TRÂNIO - Oh falso amor! Sexo inconstante! Lício, só te digo que é muito extraordinário.

HORTÉNSIO - Basta, basta de enganos. Não sou Lício, nem sou músico, como pareço, mas alguém que
sente repugnância em viver com esta máscara por uma criatura que despreza um cavalheiro e endeusa um
lorpa desses. Senhor, chamo-me Hortênsio, é o que vos digo.

TRÂNIO - Signior Hortênsio, já bastantes vezes ouvira referências lisonjeiras a vosso amor por Bianca.
Mas havendo sido estes olhos testemunhos certos de sua leviandade, juntamente convosco, se de acordo
vos mostrardes, abjurarei de vez o amor de Bianca.

HORTÊNSIO - Vede como se beijam ternamente, signior Lucêncio! Com firmeza juro por esta mão em
como vou abster-me de lhe fazer a corte; renuncio a ela, por ser inteiramente indigna das atenções que
até hoje, com tamanha leviandade, eu lhe vinha concedendo.

TRÂNIO - Quero também fazer o juramento não menos firme de jamais casar-me com ela, embora
suplicar-me viesse para esse fim. Que peste! Vede como bestialmente o corteja!

HORTÊNSIO - Desejara que, tirante ele, todos a deixassem. Quanto a mim, porque mais seguramente
mantenha o juramento, vou casar-me nestes três dias próximos com uma viúva rica que me foi fiel
durante todo o tempo em que eu estava pendido para o lado dessa bruxa altiva e impertinente. E assim,
meu caro signior Lucêncio, adeus. O coração me conquista a bondade feminina, não a bela aparência. E
ora despeço-me, decidido a cumprir o que vos disse.
(Sai Hortênsio.)
(Lucêncio e Bianca vêm para a frente.)

TRÂNIO - Senhora Bianca, caiba-vos a graça dos amantes que têm amor sem jaça. Sim, apanhei-vos de
surpresa, amiga, e a vós renunciamos, eu e Hortênsio.

BIANCA - Trânio, estais gracejando? É então verdade que ambos me renunciastes?

TRÂNIO - Sim senhora.

LUCÊNCIO - Então de Lício já ficamos livres.

TRÂNIO - Escolheu uma viúva frescalhona que noiva e esposa vai ficar num dia.

BIANCA - Deus lhe dê alegria.

TRÂNIO - Vai domá-la.

BIANCA - É o que ele diz, amigo.

TRÂNIO - Não há dúvida; foi tomar aulas de domar, é certo.

BIANCA - Como! Aulas de domar? Há escola disso?

TRÂNIO - Sim, senhor; e Petrucchio é o professor. Meios conhece de amansar a bruxa, deixando-a mui
discreta e não perluxa.
(Entra Biondello, a correr.)

BIONDELLO - Ó meu caro patrão! Fiquei de espreita por tanto tempo, que esfalfado me acho. Mas,
afinal, descer vi da colina um angélico velho que nos serve muito bem aos intentos.

TRÂNIO -.Quem é ele, Biondello?

BIONDELLO - Um mercador, patrão, ou mesmo pedagogo, não sei. Porém de vestes muito formais e de
aparência e porte de um verdadeiro pai.

LUCÊNCIO - E agora, Trânio, que faremos com ele?

TRÂNIO - Se for crédulo e acreditar em minha história, alegre fará o papel paterno de Vicêncio, dando
as cauções que forem necessárias a Batista Minola, como se ele fosse mesmo Vicêncio. Retirai-vos com
vossa noiva; quero estar sozinho
(Saem Lucêncio e Bianca. Entra o professor.)

PROFESSOR - Deus vos guarde, senhor.

TRÂNIO - E a vós, senhor. Muito bem-vindo sois. Estais de viagem para mais longe, ou à meta já
chegastes?

PROFESSOR - Aqui me deterei por uma ou duas semanas, nada mais. Depois, em Roma ficarei, para a
Trípoli, em seguida, me dirigir, se Deus me der saúde

TRÂNIO - De que cidade sois?

PROFESSOR - De Mântua.

TRÂNIO - Mântua, meu senhor? Oh! não queira Deus tal coisa! E a Pádua vindes, sem vos importardes
com vossa vida?

PROFESSOR - Minha vida! Como senhor? A coisa me parece séria.

TRÂNIO - Muito séria; é fatal para os mantuanos que a Pádua venham. Não sabeis a causa? Vossos
navios acham-se detidos no porto de Veneza, tendo o doge, por questão singular com o vosso duque,
mandado proclamar o que ora digo. É de admirar. Porém se aqui tivésseis chegado um pouquinho antes,
quase nada, ainda teríeis alcançado o arauto.

PROFESSOR - Oh! para mim é muito pior a coisa do que parece, pois comigo trago ordens de
pagamento de Florença, que devo apresentar.

TRÂNIO - Para servir-vos, meu senhor, farei isso, ao mesmo tempo que vos dou um conselho. Porém
antes informai-me se em Pisa já estivestes.

PROFESSOR - Sim, meu senhor; estive várias vezes; Pisa, famosa por seus homens graves.

TRÂNIO - E entre eles conheceis um tal Vicêncio?

PROFESSOR - Não, mas ouvi falar bastante nele, um mercador de bens incalculáveis.

TRÂNIO - Pois é meu pai, senhor; e, sob palavra, parece-se convosco alguma coisa.

BIONDELLO (à parte) - Tal qual uma ostra e uma maçã madura.

TRÂNIO - Por que a vida vos salve neste aperto, vou ser-vos útil só por amor dele. Assim, considerai
que é muita sorte terdes os traços do senhor Vicêncio. Assumireis o nome e o aspecto dele e em minha
casa muito cordialmente ficareis alojado. E agora, muito cuidado para que ninguém suspeite de vossa
identidade. Compreendeis-me. Em casa ficareis até poderdes liquidar os negócios da cidade. Aceitai de
bom grado esse serviço.

PROFESSOR - Ó meu senhor! Aceito-o, e para sempre passo a considerar-vos o patrono de minha
liberdade e minha vida.

TRÂNIO - Vamos então concretizar a coisa. De passagem vos digo apenas isto: meu pai é aqui esperado
a cada instante para em contrato assegurar o dote que eu devo dar à filha de Batista. A par hei de vos pôr
de quanto importa. Vamos, senhor, vestir-vos como importa.
(Saem)