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A MEGERA DOMADA, ATO IV, Cena III

(Um quarto em casa de Petrucchio. Entram Catarina e Grúmio.)

GRÚMIO - Não, não me atrevo. Não; por minha vida.

CATARINA - Quanto mais me maltrata, mais me humilha. Como! Casou comigo, para à fome fazer-me
perecer? Os mendicantes que à casa chegam de meu pai recebem a esmola desejada; e se negada lhes for,
mui facilmente noutras portas encontrarão piedade. Eu, no entretanto, que nunca soube o que pedir se
chama, nem a pedir me vi forçada nunca, de fome estou morrendo, desfaleço de tão vígil estar. Fico
acordada com pragas; alimento-me de gritos. E o que mais me magoa nisso tudo é fazer ele tudo sob a
capa do amor mais atencioso, parecendo que, se eu viesse a dormir ou a alimentar-me cairia logo doente,
ou perecera sem maiores delongas. Por obséquio, vai buscar-me alimento; a qualidade não importa; é
bastante ser saudável.

GRÚMIO - Que dizeis de uma perna de vitela?

CATARINA - Ótimo! Não demores; vai buscá-la.

GRÚMIO - Pode ser irritante. E que diríeis de tripas gordas muito bem assadas?

CATARINA - Oh! Gosto muito. Meu bondoso Grúmio, Arranja-me isso logo.

GRÚMIO - Estou indeciso; temo que seja por demais colérico. Que diríeis de bife com mostarda?

CATARINA - Meu prato predileto.

GRÚMIO - Hum! Mas mostarda é um poucochinho quente.

CATARINA - Então, o bife; põe de lado a mostarda.

GRÚMIO - Isso eu não faço; de Grúmio não tereis mais que mostarda.

CATARINA - Os dois, então; ou um; como quiseres.

GRÚMIO - Nesse caso, a mostarda, sem o bife.

CATARINA - Retira-te daqui, maldoso escravo!
(Bate-lhe.)
Só com o nome dos pratos me alimentas? Sejas maldito, e assim toda essa súcia que com meu sofrimento
se empavona. Sai! Sai logo, já disse.
(Entram Petrucchio, com um prato de comida, e Hortênsio.)

PETRUCCHIO - Como passa minha Quetinha? Como! Tão tristonha, meu coração?

HORTÊNSIO - Como passais, senhora?

CATARINA - Fria a mais não poder.

PETRUCCHIO - Eleva o espírito; olha-me alegremente, queridinha. Bem vês quão cuidadoso eu sou
contigo; eu mesmo preparei tua comida, não permitindo que outrem a trouxesse.
(Coloca o prato sobre a mesa.)

Acho, doce Quetinha, que esta minha delicadeza é digna de elogios. Que é isso! Assim calada? É que
decerto não gostas do que eu trouxe, tendo sido em pura perda todo o meu trabalho.- Retirai esse prato!

CATARINA - Não; deixai-o aí mesmo, por favor.

PETRUCCHIO - Todo serviço deve ser sempre recebido, sempre, com agradecimentos. Neste caso tereis
de agradecer-me, antes de haverdes tocado na comida.

CATARINA - Obrigada, senhor.

HORTÊNSIO - Signior Petrucchio, ora! ora! Sois passível de censura. Minha senhora Catarina, quero
fazer-vos companhia.

PETRUCCHIO (à parte) - Caso me ames, Hortênsio, come tudo. (Alto.) Que esse prato te faça bem ao
coração bondoso. Quetinha, come devagar. E agora, meu doce amor, preciso é que voltemos à casa de teu
pai, para fazermos um barulhão com todas estas sedas, canhões, golilhas, anéis de ouro, capas,
casaquinhos e mantas muito guapas, ventarolas e fitas mui vistosas, pulseiras de âmbar pérolas e rosas.
Oh! já acabaste? Espera-te o alfaiate, que vai vestir-te com capricho e arte.
(Entra o alfaiate.)
Entra, alfaiate; mostra-me o que trazes. Põe aqui o vestido.
(Entra o modista.)
Novidades, senhor? Que nos trouxestes?

MODISTA - Esta touca por Vossa Senhoria encomendada.

PETRUCCHIO - Como! O molde para isso foi alguma sopeira? Ora, ora! Um prato de veludo! Banal e
sujo. É mais um caramujo, uma casca de noz, um brinquedinho, gorrozinho de criança, bugiaria... Quero
um maior, já disse! Levai esse.

CATARINA - Não, não quero maior; está na moda; é assim que as damas elegantes usam.

PETRUCCHIO - Quando fores gentil, terás um desses; antes, não.

HORTÊNSIO (à parte) - Nesse caso, ainda demora.

CATARINA - Penso, senhor, que devo ter licença para falar, conforme vou fazê-lo. Não sou nenhuma
criança; muita gente melhor que vós já ouviu o que eu dizia. Se não vos agradar, tapai o ouvido. Mas
expressão terei de dar com a língua a quanto o coração me traz opresso, para que ao cabo ele a estourar
não venha. Antes que isso aconteça, liberdade completa quero ter para expandir-me.

PETRUCCHIO - Tens razão; é uma touca abominável; parece mais cascão de torta, ou antes, pastel de
seda. Tenho-te amizade muito maior por não gostardes dela.

CATARINA - Tenhais ou não, mais é bonita a touca; só ficarei com essa; mais nenhuma.
(Sai o modista.)
PETRUCCHIO - Referes-te ao vestido? Vamos, vamos, alfaiate: vejamo-lo. Que coisa, santo Deus! Isto
é pura palhaçada Que será isto? Manga? Até parece peça de artilharia. De alto a baixo cortado como torta
de maçã, todo cheio de furos, coitadinho tal como aquecedor de barbearia. Arre! Em nome do diabo,
como chamas a isto, alfaiate?

HORTÊNSIO (à parte) - Pelo que estou vendo, não pegará nem touca nem vestido.

ALFAIATE - Recomendaste-me o mais novo corte, mandando que eu seguisse em tudo a moda.

PETRUCCHIO - É certo, é certo; mas se estais lembrado, não vos mandei pôr a perder o pano, seguindo
em tudo a moda. Tratai logo de voltar para casa, a toda pressa, saltando pelos regos do caminho, porque
freguês, senhor, já não sou vosso. Não ficarei com ele; fazei disto o uso que bem quiserdes. Fora! fora!

CATARINA - Nunca tive um vestido tão bem feito, tão na moda, elegante e bem talhado. Quereis fazer
de mim uma boneca?

PETRUCCHIO - Uma boneca, justamente; é isso que ele pretende.

ALFAIATE - Vossa Senhoria - foi o que ela afirmou - é que pretende transformá-la em boneca.

PETRUCCHIO - Que arrogância monstruosa! Estás mentindo, dedal! Mentes, cordel, jarda, três quartos,
um quarto, meia jarda, unha, mosquito, lêndea, grilo do inverno! Desafiar-me em minha própria casa,
com uma meada de linha! Fora, trapo! Fora, resto! Fora, aviamentos! Do contrário, meço-te com tua
própria jarda, por que tenhas uma lembrança para toda a vida, por seres linguarudo. Pois afirmo-te que
puseste a perder a roupa dela.

ALFAIATE - Não; Vossa Senhoria está enganado; o vestido foi feito sob as vistas do mestre da oficina;
ordens deu Grúmio sobre a maneira como deveríamos confeccioná-lo.

PETRUCCHIO - Não lhe dei essa ordem; dei-lhe apenas o pano. ALFAIATE - Mas acaso não lhe
dissestes nada sobre o modo como queríeis que ele fosse feito?

GRÚMIO - Sim, com agulha e linha.

ALFAIATE - Porventura cortar não poderíamos o pano?

GRÚMIO - Já encrespaste muita gente?

ALFAIATE - Já.

GRÚMIO - Então não te encrespes para o meu lado. Já enfeitaste muita gente; então não me venhas
enfeitar, que eu não gosto de encrespados nem de enfeites. Repito que disse ao teu oficial que cortasse o
vestido, mas não lhe disse que o cortasse em pedacinhos: ergo, estás mentindo.

ALFAIATE - Para confirmar o que eu disse, aqui está a nota da encomenda. PETRUCCHIO - Lê-a.

GRÚMIO - Enfiarei essa nota pela garganta dele, se ele continuar a afirmar que eu disse semelhante
coisa.

ALFAIATE - "Imprimis, um vestido bem folgado."

GRÚMIO - Mestre, se algum dia eu falei em vestido folgado, podeis costurar-me na aba dele e matar-me
de pancada com um novelo de fio escuro. O que eu disse foi: um vestido.

PETRUCCHIO - Prossegui.

ALFAIATE - "Com uma gola pequena e arredondada."

GRÚMIO - A gola eu confesso.

ALFAIATE - "De mangas largas..."

GRÚMIO - Confesso duas mangas.

ALFAIATE - "... cortadas com bastante engenho."

PETRUCCHIO - Nisso é que está a velhacaria.

GRÚMIO - A nota é mentirosa, senhor; a nota é mentirosa. O que eu recomendei foi que as mangas
fossem cortadas e depois recosturadas, o que poderei provar-te, ainda que me venhas de dedal no dedo
minguinho.

ALFAIATE - O que eu disse é a verdade; e isso mesmo te provaria, se te apanhasse num local de jeito.

GRÚMIO - Pois desde este momento ponho-me à tua disposição. Fica com tua nota, entrega-me essa
jarda e não me poupes.

HORTÊNSIO - Ora, Grêmio! Assim, ele ficaria com desvantagem.

PETRUCCHIO - Em resumo, senhor: esse vestido não é para mim.

GRÚMIO - Falastes bem, senhor: é para a patroa.

PETRUCCHIO - Vamos, leva-o logo daqui, para teu mestre usá-lo como bem entender.

GRÚMIO - Toma cuidado, maroto, se tens amor à vida! Levar o vestido de minha ama, para teu mestre
usá-lo como bem entender!

PETRUCCHIO - Qual é o sentido de vossas palavras, senhor?

GRÚMIO - Ora, senhor! O sentido é mais profundo do que poderíeis imaginar. Levar o vestido de minha
ama, para o patrão dele usar! Ora! Ora!

PETRUCCHIO (à parte) - Hortênsio, cuida de pagar a nota.(Ao alfaiate.)

Retira-te; já basta de conversa.

HORTÊNSIO (à parte, ao alfaiate) - Amanhã pagarei, amigo, a conta. Não te molestas com seu modo
brusco. Podes ir; recomenda-me ao teu amo. (Sai o alfaiate.)

PETRUCCHIO - Vem, querida Quetinha; assim faremos uma visita a vosso pai com estas vestes pobres
e honestas. Nossas bolsas serão vaidosas; nossa roupa, pobre. É o espírito que deixa o corpo rico. E assim
como através das mais espessas nuvens o sol penetra, de igual modo nas vestes mais humildes a honra
brilha. Mais nobre é o gaio do que a cotovia, por ter plumagem muito mais bonita? Ou mais do que a
enguia vale a serpe, porque os olhos sua pele nos alegra? Não, querida Quetinha; nada perdes com essa
roupa humilde e desornada. Se a teus olhos é opróbrio, toda a culpa põe sobre mim. Por isso, fica alegre,
pois partiremos já, para festarmos em casa de teu pai, despreocupados.(A Grúmio.) Chama meus homens;
montaremos logo; põe os cavalos na alameda grande. a pé iremos até lá. Vejamos: são sete horas, quero
crer, agora; chegaremos com tempo de jantar.

CATARINA - Senhor, posso afiançar-vos: são duas horas; nem a ceia, é certeza, alcançaremos.

PETRUCCHIO - Serão sete horas antes de montarmos. Vede bem: quanto eu diga, ou faça, ou tenha

idéia de fazer, contrariais sempre. Deixai, amigos; hoje já não saio. Quando vier a sair, dagora em diante,
a hora que eu disser é que está certa.

HORTÊNSIO - Até no sol este galante manda.
(Saem.)