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RICARDO II, ATO I, CENA III

Área perto de Coventry. Liça demarcada. Um trono. Arautos, etc. Entram o lorde Marechal e
Aumerle.

MARECHAL ­ Milorde Aumerle, Henrique de Hereford se acha pronto?
AUMERLE ­ De todo, só deseja poder entrar.
MARECHAL ­ Cheio de audácia e afogo, Tomás Mowbray aguarda tão-somente o sinal da trombeta
do apelante.
AUMERLE ­ Sendo assim, preparados estão ambos os combatentes, dependendo o encontro da
chegada de Sua Majestade.
(Fanfarras. Entram o rei Ricardo, que se assenta no trono, Gaunt, Bushy, Bagot, Green e outros; que
se colocam em seus lugares. A um toque de trombeta na cena, responde outro dentro. A seguir, entra
Mowbray, completamente armado, precedido de um arauto.)
REI RICARDO ­ Pergunta, marechal, ao cavaleiro que ali se encontra a causa de estar ele neste
lugar, armado. Qual o nome, pergunta-lhe, também, e o juramento lhe toma de que vem por causa justa.
MARECHAL ­ Dize, em nome de Deus e do monarca, como te chamas, porque estás armado qual
cavaleiro, contra quem vieste, e o motivo nos conta da pendença. Pela cavalaria que professas e por teu
juramento, sê verídico. E assim te ampare o céu e o brio próprio.
MOWBRAY ­ Tomás Mowbray eu sou, duque de Norfolk; aqui me encontro por haver jurado ­
Deus não permita que perjuro eu fique! ­ lutar por minha lealdade e pela fé que me liga a Deus, ao rei e a
sua linhagem, contra o duque de Hereford, que me acusa, e, desta arte, com o auxílio de Deus e deste
braço, demonstrar-lhe, ao tempo em que a mim próprio me defendo, que ele traiu a Deus, ao rei e a mim.
Como estou com a verdade, o céu me ampare.
(Senta-se no seu lugar.)
(Soam trombetas. Entra Bolingbroke, apelante, com armadura e precedido de um arauto.)
REI RICARDO ­ Pergunta, marechal, ao cavaleiro que armado ali se encontra, qual seu nome, por
que razão aqui se acha vestido de couraça de guerra e, sempre às luzes de nossas leis, lhe obtém o
depoimento da justiça da causa que defende.
MARECHAL ­ Como te chamas? Por que causa te achas diante do rei Ricardo e em sua liça? Contra
quem te apresentas? Qual a queixa que aqui te trouxe? Como cavaleiro, dize a verdade e o céu que te
defenda.
BOLINGBROKE ­ Sou Harry de Hereford, Lencastre e Derby. Armado me apresento nesta liça para,
com a ajuda do Senhor e minha própria força, provar que Mowbray, duque de Norfolk, execrando e
perigoso, traiu a Deus, ao rei Ricardo e a mim. Como estou com a verdade, o céu me ampare.
MARECHAL ­ Pois, sob pena de morte, ninguém seja tão atrevido que ouse entrar na liça, senão
somente o marechal e quantos oficiais ele tenha designado para a alta direção deste torneio.
BOLINGBROKE ­ Permiti, marechal, que a mão eu beije de Sua Graça e que os joelhos dobre ante o
meu rei, porque Mowbray e eu próprio somos como pessoas que se aprestam para uma viagem longa e
cansativa. Permiti, pois, façamos despedida cerimoniosa e adeus muito saudoso aos amigos que ficam
presentemos.
MARECHAL ­ O apelante saúda com respeito Vossa Grandeza e solicita a graça de vos beijar a mão
e despedir-se.
REI RICARDO (descendo do trono) ­ Para abraçá-lo, o trono nós deixamos. Primo Hereford, em
sendo a causa justa, ampare-te a Fortuna nesta justa. Se meu sangue perderes, a departe te poderei chorar,
mas sem vingar-te.
BOLINGBROKE ­ Olho nobre nenhum de mim se importe, se a espada de Mowbray me der a morte.
Como o falcão no vôo, assim, confiante, contra Mowbray me atiro, a meu talante. Meu amado senhor, eu
me despeço de vós e de meu primo, lorde Aumerle, não abatido, ainda que a morte eu vejo, mas moço e
alegre e com vigor sobejo. Como nas festas pátrias, eu saúdo o mais doce manjar no fim de tudo: Ó tu,
autor terreno do meu sangue, cujo espírito moço, renovado dentro de mim, me empresta vigor duplo para
que eu me alce à. altura da vitória que, airosa, plana sobre a minha fronte, com tuas orações invulnerável
a armadura me deixa, e, com tuas bênçãos, torna mais fina a ponta desta lança porque ela possa penetrar
na cota de cera de Mowbray e brilho ao nome de João de Gaunt ainda aumentar consiga na atitude
altanada de seu filho.
GAUNT ­ Deus te auxilie em tua causa justa. Como o raio, sê rápido na luta; que teus golpes,
dobrados, redobrados, qual o trovão atroador, no casco de teu inimigo pernicioso caiam. Reanima o
sangue jovem desse peito.
BOLINGBROKE ­ Com a ajuda de São Jorge e do Direito.
(Senta-se em seu lugar.)
MOWBRAY (levantando-se) ­ Como a Fortuna e o céu determinarem, vai morrer ou viver aqui um
súdito fiel ao rei Ricardo, um gentil-homem honrado, leal e justo. Nenhum preso jamais com o coração
tão levantado longe os ferros jogou do cativeiro, para abraçar com mostras delirantes a liberdade de ouro,
como agora minha alma dança ao celebrar, alegre, esta festa de sangue. Poderoso monarca, companheiros
de nobreza, meus votos vos dirijo com lhaneza. Como para um passeio eu me despeço, confiante em vir a
obter alto sucesso.
REI RICARDO ­ Adeus, milorde; nesses olhos vejo da virtude e valor forte lampejo. Dai logo início,
marechal, à pugna.
(O rei e os nobres voltam para seus lugares.)
MARECHAL ­ Henrique de Hereford, Lencastre e Derby, recebe a lança e que o Direito vença.
BOLINGBROKE (levantando-se) ­ Qual torre de esperança, "Amém" eu digo.
MARECHAL (a um oficial) ­ Leva ao duque de Norfolk esta lança.
PRIMEIRO ARAUTO ­ Henrique de Hereford, Lencastre e Derby, diante de Deus, do rei e de si
próprio aqui se acha, sob pena de ser tido como impostor sem fé e sem coragem, para trazer a prova de
que o duque Tomás Mowbray faltou com a lealdade ante Deus, ante o rei e ante ele mesmo,
desafiando-o, por isso, para duelo.
SEGUNDO ARAUTO ­ Aqui também está o duque de Norfolk, Tomás Mowbray, sob pena de ser
tido como desleal e falto de coragem, não somente em defesa de si próprio, como também para trazer a
prova de que Harry de Hereford, Lencastre e Derby foi desonesto a Deus, ao rei e a ele, o que faz com
vontade livre e altiva, só aguardando o sinal para o combate.
MARECHAL ­ Trombetas soai! À frente, combatentes!
(Toque de ataque.)
Parai! Parai! O rei soltou o bastão!
REI RICARDO ­ Pondo de lado o capacete e a lança, voltem a ocupar ambos seus lugares. Vinde
conosco, e que as trombetas soem até voltarmos e trazermos nossa resolução que será dita aos duques.
(Toque demorado de fanfarra)
(Aos combatentes) ­ Aproximai-vos e ouvi o que decidimos no conselho. Porque o solo do reino não
se manche com o caro sangue a que ele dera vida; por nos ser repugnante à vista o aspecto cruel das civis
chagas, produzidas por espadas afins; e por pensarmos que o orgulho de asas de águia e os pensamentos
cuja ambição ao céu remontam sempre, de par com a inveja que os rivais odeia foram causa de terdes
despertado nossa paz que dormia infantil sono no berço calmo desta nossa terra, e que assim despertada
pelo ruído dos tambores discordes, pelos gritos selvagens e estridentes das trombetas e o áspero choque
das irosas armas, expulsará, talvez, a paz formosa dos nossos quietos lindes, resultando o mal de em
sangue amigo mergulharmos: vos banimos de nossos territórios. Primo Hereford, sob pena de perderdes a
vida, enquanto duas vezes cinco verões nossas campinas não dourarem, não saudareis nossos domínios
belos mas os caminhos pisareis do exílio.
BOLINGBROKE ­ Seja como o dizeis. Minha alegria será, tão-só, no exílio, todo dia saber que o sol
que aqui vos ilumina me dará, também, luz, e que a ruína de minha vida triste e malfadada dourará, como
em fúlgida alvorada.
REI RICARDO ­ Norfolk, é mais pesada a tua pena, digo-te a contragosto: as sorrateiras horas não
marcarão jamais o termo do teu exílio caro e sem limite. Contra ti pronunciamos a implacável palavra
"Nunca mais!" Ou isto ou a morte.
MOWBRAY ­ A sentença é terrível, soberano senhor. Eu não contava que da boca de Vossa
Majestade ela me viesse. Dádiva mais valiosa, não tão grave mutilação como me ver lançado na infinda
vastidão que a todos cabe, das mãos de Vossa Alteza eu merecera. A língua que durante quarenta anos eu
aprendi, o inglês nativo, devo-a doravante esquecer. Vai ela, agora, ser para mim como viola ou harpa
sem cordas, ou qualquer fino instrumento sempre no estojo, ou, quando fora dele, posto em mãos que de
todo o jeito ignoram de tirar dele acordes harmoniosos. Em minha boca a língua me prendestes,
trancando-a duplamente com a barreira dos dentes e dos lábios e deixando que a estúpida Ignorância,
bronca e estéril, como meu carcereiro, de mim cuide. Sou muito velho para adular ama, muito avançado
em anos para aluno voltar a ser. O que é, pois, a sentença cominada, senão a morte muda, que me tira da
língua toda a ajuda?
REI RICARDO ­ Por que do teu sofrer fazer alarde? Para lamentações é muito tarde.
MOWBRAY ­ Então vou procurar onde me acoite: na treva espessa da infinita noite.
(Faz menção de retirar-se.)
REI RICARDO ­ Espera mais um pouco e faze um voto: ponde as banidas mãos na real espada que
aqui tendes, e pela obediência que ao céu deveis ­ convosco nós banimos a porção que era nossa ­
prometei-nos cumprir a jura que ora formulamos: Que jamais ­ a verdade e Deus vos guiem! ­ vos
ligareis no exílio pelos laços da amizade, nem nunca face a face vos vereis; que não há de haver entre
ambos troca de cumprimentos ou de cartas, que não atenuareis a tempestade desses ódios domésticos e
nunca vos vereis de pensado, ou seja para tramar, ou para maquinar alguma coisa contra nós próprios,
nosso Estado, qualquer vassalo nosso ou nossa terra.
BOLINGBROKE ­ Juro.
MOWBRAY ­ Eu, também, juro cumprir tudo isto.
BOLINGBROKE ­ Norfolk, como entre inimigos se permite: a esta hora, se tivesse o rei querido,
uma de nossas almas vaguearia pelo ar, banida do sepulcro frágil da nossa carne, como nossa carne
banida agora se acha da Inglaterra. Confessa-te traidor, pois, antes de ires do reino. Já que partes para
longe, não carregues por todo o mundo o fardo, tão pesado, de uma alma criminosa.
MOWBRAY ­ Não, Bolingbroke; se traidor eu fosse, quisera ver meu nome derriscado do livro da
existência, e ser banido do céu, como da pátria. Mas o que és, só Deus, tu e eu sabemos. Mas suspeito de
que cedo o rei venha a arrepender-se. Adeus, meu rei; é minha toda a terra, salva a estrada que vier ter à
Inglaterra.
(Sai.)
REI RICARDO ­ Tio, no espelho desses olhos vejo que o coração te sangra. O triste aspecto
conseguiu apagar quatro dos anos do exílio.
(A Bolingbroke) ­ Decorridos seis invernos, tragam-te a este país ventos galernos.
BOLINGBROKE ­ Que tempo enorme uma palavra encerra! Fala um monarca: quatro invernos frios
ele respira e alegres quatro estios!
GAUNT ­ Agradeço ao meu rei ter encurtado, por consideração a mim, quatro anos do exílio de meu
filho. Mas é mínima a vantagem que eu possa auferir disso. Porque antes de mudarem os seis anos do
exílio de meu filho as suas luas e o curso completarem, minha lâmpada sem óleo, minha luz quase
apagada, os anos as farão mergulhar cedo numa noite infinita. O meu pequeno pavio vai perder, em
pouco, o brilho, sem que eu possa rever meu caro filho.
REI RICARDO ­ Tio, ainda contas com uma longa vida.
GAUNT ­ Não, porém, com uma hora mal sofrida que um rei me possa dar. Sim, poderias deixar
mais curtos meus tristonhos dias, roubar-me longas noites de veladas, mas dar não podes róseas
alvoradas. Ajudarás o tempo em seu trabalho de abrir sulcos em mim; mas será falho qualquer intento de
deter o passo das lentas rugas em tão pouco espaço. Podes matar-me, sim, ninguém duvida; mas, morto
eu, nem teu reino me dá vida.
REI RICARDO ­ Teu filho foi banido após conselho demorado, em que tua língua teve parte no
veredicto. Por que causa procurar rebaixar nossa justiça?
GAUNT ­ Quanto a gula insaciável mais cobiça, mais nos pesa no estômago. Mandaste que eu fosse
juiz direito num contraste com minhas emoções; eu preferira que falar me deixasses sem mentira, na
posição de pai. Mais indulgente me teria mostrado, se na frente um estranho tivesse, não meu filho.
Porque a suspeita não manchasse o brilho do meu nome, com a pecha de parcial, fui parte em minha pena
capital. Esperei que um de vós me reprochasse tanto rigor e me dissesse em face que eu muito exagerava
por ter sido fautor de meu destino dolorido. Consentistes, assim, que minha língua venha a ser causa de
eu morrer à míngua.
REI RICARDO ­ Adeus, primo; repete-lhe, bom tio, que o exílio é de seis anos; seis, a fio.
(Toque de clarins; saí o rei Ricardo com seu séquito.)
AUMERLE ­ Adeus, primo; do exílio, por escrito, direis o mais que houver para ser dito.
MARECHAL ­ Não me despedirei, é só o que eu falo; até à fronteira iremos a cavalo.
GAUNT ­ Por que amealhas, assim, tuas palavras, não dando uma resposta aos teus amigos?
BOLINGBROKE -- De muito poucas eu disponho agora para me despedir, quando devera pródiga
ser a língua em seu ofício, para exprimir a dor que me angustia.
GAUNT ­ Tua dor é só ausência de algum tempo.
BOLINGBROKE ­ Sem alegria, é dor todo esse tempo.
GAUNT ­ Seis invernos que são? Passam depressa.
BOLINGBROKE ­ Para quem é feliz; mas a tristeza transforma uma hora em dez.
GAUNT ­ Pensa que te achas viajando por vontade e com proveito.
BOLINGBROKE ­ A esse nome de viagem suspirara-me o coração, por oprimi-lo a angústia da
peregrinação forçada e longa.
GAUNT ­ Imagina que o círculo sombrio de teus cansados passos seja apenas o caixilho em que tens
de pôr a jóia preciosa de tua volta para a pátria.
BOLINGBROKE ­ Não; cada trecho que eu andar, tedioso, lembrado me fará da porção grande do
mundo que me afasta dessa jóia. Terei de entrar em longo aprendizado no estrangeiro, somente para, ao
cabo do meu exílio, vir a vangloriar-me de que fui operário do infortúnio?
GAUNT ­ Qualquer lugar que o olho do céu visita, para o sábio é feliz enseada e porto de
salvamento. Ensinar deves tua necessidade a assim julgar as coisas. Não há melhor virtude do que a
própria necessidade. Pensa que não foste banido pelo rei, mas que, ao contrário, tu és o que o baniste. O
sofrimento pesa mais onde observa que é levado com mais dificuldade. Ora imagina que eu te enviei para
buscares honras, não que o rei te exilou. Supõe, ainda, que em nosso ar voraz peste ora se encontra, razão
de procurares outros climas. Deves pensar que o que à alma te for caro se acha no ponto de chegada,
nunca no lugar de onde vieste; considera músicos os canoros passarinhos, a grama em que pisares, lindo
junco, belas mulheres quantas flores vires e teus passos não mais do que a cadência deliciosa da dança.
Que a tristeza rosnadora com menos força morde quem com ela se põe menos acorde.
BOLINGBROKE ­ Oh! Quem nas mãos sustentaria fogo, imaginando ser o frio Cáucaso? Ou
embotara a ponta do apetite, pensando apenas em manjares finos? Ou, nu, passeara as neves de
dezembro, evocando fantásticos calores? Não! A imaginação do que é agradável torna mais doloroso o
sentimento do que nos causa dor. Nunca destila tanto veneno o dente da tristeza como quando não mata
logo a presa.
GAUNT ­ Quero mostrar-te, filho, o teu caminho: se eu fosse a ti, deixara o pátrio ninho.
BOLINGBROKE ­ Seja assim; adeus, solo da Inglaterra; querida terra, minha mãe, minha ama que
me nutres ainda, adeus! Eu parto e, ufano, mostrar-me-ei ao mundo inteiro, sempre inglês, muito embora
no estrangeiro.
(Saem.)