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RICARDO II, ATO III, CENA II

Praia no País de Gales. Ao longe, um castelo. Toque de clarins. Tambores e trombetas. Entram o rei
Ricardo, o bispo de Carlisle, Aumerle e soldados.
REI RICARDO ­ E o castelo de Barkloughly que vemos?
AUMERLE ­ Sim, milorde. Como acha Vossa Graça o ar, depois de sofrer tantos abalos no mar
revolto?
REI RICARDO ­ Bom tenho de achá-lo. A alegria me faz derramar lágrimas por de novo pisar o solo
pátrio. Com a mão eu te saúdo, cara terra, muito embora com os cascos dos cavalos os rebeldes te firam.
Qual saudosa mãe que longe do filho tenha estado e, ao revê-lo, sorri, terna, brincando com as próprias
lágrimas: assim, sorrindo, minha terra, e chorando eu te saúdo e com estas reais mãos te acaricio. Não
alimentes, minha gentil terra. os inimigos de teu soberano, nem com tuas doçuras satisfaças seus vorazes
sentidos. Os caminhos lhes enche com as aranhas que te sugam o veneno e com os sapos vagarosos,
porque lhes façam mal aos pés traiçoeiros que usurpadoramente te machucam. Aos meus inimigos dá
somente acúleos: se de teu seio eles colherem flores, põe como guarda delas, eu te peço, uma serpente
cuja língua bífida, de contacto fatal, a morte leve a quantos a teu rei adversos forem. Senhores, não
zombeis desta insensata conjuração. Primeiro a terra é que há de sentidos revelar e destas pedras hão de
sair soldados aguerridos, antes de vir seu rei a cair vitima dos golpes de uma infame rebelião.
CARLISLE ­ Milorde, não temais; a mesma força que vos fez rei terá poder bastante para vos
conservar no vosso posto contra todas as forças. É preciso não desprezar os celestiais recursos, mas saber
acatá-los; do contrário, se o céu o quisesse e nós nos opuséssemos aos seus intentos, eqüivaleria tal
proceder a recusar o auxílio celeste e a toda oferta de socorro.
AUMERLE ­ Milorde, ele, com isso, está dizendo que somos indolentes e que a nossa tranqüilidade
enseja a Bolingbroke aumentar os recursos e os amigos.
REI RICARDO ­ Primo desanimado, então não sabes que quando o olho do céu fica escondido por
trás do globo, e o mundo lá de baixo deixa claro, passeiam sem ser vistos, por aqui, os ladrões e os
bandoleiros, cometendo façanhas sanguinárias? Mas quando se alça da terrestre esfera e os cimos
orgulhosos dos pinheiros orientais ilumina, dardejando sua luz pelos recantos criminosos, as traições, os
pecados detestandos, todos os assassínios, porque o manto da noite os deixa agora descobertos, se
patenteiam, nus e, de si próprios, dão mostras de pavor. Do mesmo modo, quando o ladrão, o biltre
Bolingbroke ­ que se entrega, no escuro, a essas orgias, enquanto nós estávamos no lado dos antípodas ­
vir que nós surgimos em nosso claro trono do nascente, rubra a traição no rosto há de ficar-lhe, sem
poder suportar a luz do dia, tremendo de si mesmo e do pecado. Toda a água do mar áspero e selvagem o
óleo santo não tira que foi posto na fronte de um monarca. O curto sopro de homens terrenos é impotente
para depor um rei que foi por Deus eleito. Para cada homem alistado à força por Bolingbroke, para o aço
astucioso levantar contra a nossa áurea coroa, tem Deus para Ricardo um dos seus anjos gloriosos, a que
dá celeste paga. Se não há homem que essa força enfrente, vencerá a justiça plenamente.
(Entra Salisbury.)
Sede bem-vindo. A que distância se acham nossas forças, milorde?
SALISBURY ­ Não mais longe, gracioso soberano, nem mais perto do que este fraco braço. A falta
de ânimo me guia a língua, não deixando que ela nada anuncie senão o desespero. Um dia apenas de
retardo, temo, nobre senhor, escureceu teus dias felizes sobre a terra. Chama o dia de ontem, faze que o
tempo atrás retorne, e doze mil soldados serão teus. Mas este hoje, este dia de amargura te destrói os
amigos e a ventura, pois os galenses, que te julgam morto, foram buscar abrigo noutro porto.
AUMERLE ­ Coragem! Por que causa ficais pálido?
REI RICARDO ­ De doze mil soldados aguerridos o sangue, há pouco, eu tinha, na cabeça; se ele me
foge e fico sem sentidos, que muito, pois, que pálido eu pareça? Quem quiser se salvar, me deixe agora,
que a mão do tempo o meu brasão esflora.
AUMERLE ­ Lembrai-vos de quem sois, meu soberano.
REI RICARDO ­ Havia-me esquecido de mim próprio. Não sou rei? Indolente majestade, desperta!
Estás dormindo. Pois não vale o só nome de rei vinte mil nomes? Às armas, nome! Um súdito mesquinho
se atreveu a atacar tua grande glória. Não prossigais olhando para o solo, favoritos de um rei! Grandes
não somos? Sejam grandes os nossos pensamentos. Meu tio York, estou certo, ainda tem forças para nos
ajudar. Mas quem vem vindo?
(Entra sir Stephen Scroop.)
SCROOP ­ Mais saúde e ventura em sorte caiba ao meu rei do que pode ser-lhe dito por minha
língua que a tristeza inspira.
REI RICARDO ­ O coração já tenho preparado e abertos os sentidos. Não me podes anunciar senão
perdas deste mundo, nada mais. Dize, pois: perdi a coroa? Era preocupação. Será, então, perda ficarmos
sem cuidados? Ora entende Bolingbroke igualar-nos em grandeza? Ultrapassar-nos não será possível. Se
ele a Deus serve, a Deus nós serviremos também, para ficarmos ao seu lado. Revoltaram-se, acaso, os
nossos súditos? Nada posso fazer; o juramento violaram, feito a Deus, como o fizemos. Fala de dor, de
males em porfia; o pior é a morte, e essa há de ter seu dia.
SCROOP ­ Alegra-me saber que Vossa Alteza se encontra assim armado contra os golpes da
adversidade. Como tempestuoso dia, fora de tempo, que os regatos cristalinos obriga a derramar-se pelos
meigos vergéis, como se o mundo todo estivesse em lágrimas desfeito: desta arte os seus limites passa a
raiva de Bolingbroke, vosso amedrontado país cobrindo de aço duro e fúlgido e de peitos mais que o aço
resistentes. Os barbas-brancas as cabeças calvas armaram contra Vossa Majestade; meninos de vozinha
efeminada, que eles procuram deixar grave, os membros gráceis agitam dentro de armaduras tesas para
atacarem-te a coroa. Até teus próprios capelães aprendem a armar o arco de teixo, duplamente fatal,
contra o teu reino; as fiandeiras deixam as rocas e, com paus tostados, avançam contra ti. Moços e velhos
se revoltam. É grave a situação, muito mais do que a minha descrição.
REI RICARDO ­ Contaste muito bem tua triste história. Mas onde se acha Green? Onde está o conde
de Wiltshire? Onde está Bagot? Que foi feito de Bushy, para que eles permitissem que inimigo, desta arte
perigoso, medisse nossas terras com seus passos imperturbáveis? Se ganharmos, todos me pagarão com a
vida. Aposto que eles já firmaram a paz com Bolingbroke.
SCROOP ­ Sim, milorde; é verdade: já firmaram.
REI RICARDO ­ Biltres! Serpentes! Réprobos! Danados sem salvação possível! Cães, dispostos
sempre a rojar aos pés de todo mundo! Víboras aquecidas no meu peito, que o coração me pungem! Oh!
Três Judas, cada um mais traiçoeiro do que Judas! Fizeram paz? Que o inferno pavoroso a suas almas
imundas faça guerra sem tréguas, pela ofensa praticada.
SCROOP ­ Vejo que o doce amor, quando se altera, em amargo e mortal ódio se muda. Retira a
maldição que lhes lançaste: com a cabeça a paz eles fizeram, não com as mãos. Os que assim amaldiçoas,
já os visitou a Morte que não erra, e em repouso se encontram sob a terra.
AUMERLE ­ Bushy está morto, e Green, e o conde Wiltshire?
SCROOP ­ Em Bristol a cabeça lhes cortaram.
AUMERLE ­ E onde está meu pai York com suas forças?
REI RICARDO ­ Não importa onde esteja. Não me fale ninguém mais em conforto, mas em
túmulos, epitáfios e vermes. Transformemos em papel a poeira, e sobre o seio da terra as nossas mágoas
escrevamos com olhos inundados. Aprestemos testamenteiros, e de testamento seja nossa conversa. Não!
Cautela! Que poderíamos legar? Mais nada, senão, à terra, o corpo destronado. Nossas vidas, o reino,
tudo, agora pertence a Bolingbroke. Nada resta a que chamemos nosso, afora a morte e esse punhado de
infrutuosa argila que a nossos ossos serve de coberta. Pelo alto céu, no chão nos assentemos para contar
histórias pesarosas sobre a morte de reis: como alguns foram depostos, outros mortos em combate, outros
atormentados pelo espectro dos que eles próprios destronado haviam, outros envenenados pela esposa,
outros mortos no sono: assassinados todos! E que, no centro da vazia coroa que circunda a real cabeça
tem a Morte sua corte, e, entronizada aí, como os jograis, sempre escarnece da majestade e os dentes
arreganha para suas pompas, dando-lhe existência fugaz, somente o tempo necessário para cena pequena,
porque possa representar de rei, infundir medo, matar apenas com o olhar, inflada de ilusório conceito de
si mesma, como se a carne que nos empareda na vida fosse de aço inquebrantável. E após se divertir à
saciedade, com um pequeno alfinete ela se adianta, fura a muralha do castelo e, pronto: era uma vez um
rei! Ponde os chapéus; não zombeis, com solenes reverências, do que é só carne e sangue. Despojai-vos
do respeito, das formas, dos costumes tradicionais, dos gestos exteriores, que equivocados todos
estivestes a meu respeito. Como vós, eu vivo também de pão, padeço privações, necessito de amigos, sou
sensível às dores. Se, a tal ponto, eu sou escravo, como ousais vir dizer-me que eu sou rei?
CARLISLE ­ Milorde, os sábios nunca se detêm para chorar seus males, mas atalham, resolutos, o
passo às amarguras. Recear um inimigo, já que o medo oprime toda força, é dar mais força ao inimigo, à
custa da fraqueza que revelais. Assim, vossa loucura luta contra vós próprio. Mostrai medo, e morto já
estareis. Pior não nos pode suceder num combate. Achar a morte combatendo é destruí-la por si mesma;
com temor, é ceder a uma avantesma.
AUMERLE ­ Meu pai dispõe de forças: procurai-o, para fazerdes de uma chispa um raio.
REI RICARDO ­ Tens razão de increpar-me, tens. Vaidoso Bolingbroke, eis-me pronto para dar-te
combate e decidir nosso destino. O frio do temor era aparente; fácil coisa é ganhar o que é da gente. Fala,
Scroop: onde se acha o nosso tio? Sê brando, embora o olhar tenhas sombrio.
SCROOP ­ Pelo aspecto do céu ó pastor sabe o estado e inclinação dizer do dia; o mesmo em meu
olhar fazer vos cabe, que a língua vos falar não quereria. Sou como o algoz que a vítima atormenta pouco
a pouco, deixando a pior notícia para o fim. Vosso tio York juntou-se a Bolingbroke. Todos os castelos
do norte já caíram; os fidalgos do sul, em armas, se acham do seu lado.
REI RICARDO ­ Já falaste demais.
(A Aumerle) ­ Maldito sejas, primo, que deste modo me desviaste do meu doce caminho da
desgraça. Que ides ora dizer-me? Que esperança ainda podemos ter? Votarei ódio ­ pelo céu! ­ para toda
eternidade, a quem me vier falar ainda em conforto. Ao castelo de Flint nos recolhamos. Ali hei de
finar-me; um rei, escravo da aflição, como rei, lhe acata as ordens. Dispensai meus soldados; a esperança
da safra está perdida, a ruína avança. Vão todos se engajar para a colheita do novo rei; a minha está
desfeita. Não me retruquem nada; fora em vão procurar demover-me da intenção.
AUMERLE ­ Senhor, uma palavra.
REI RICARDO ­ Dupla ofensa me fará quem mostrar língua propensa para a bajulação. Mandai
embora todos os meus soldados, sem demora; saiam da noite de Ricardo, fria, para o de Bolingbroke
excelso dia.
(Saem.)