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RICARDO II, ATO V, CENA II

O mesmo. Um quarto no palácio do duque de York. Entram York e a duquesa.

DUQUESA ­ Milorde, íeis contar-me o que faltava dizer do encontro, em Londres, dos dois primos,
quando o pranto vos fez cortar a história.
YORK ­ Onde parei?
DUQUESA ­ Naquele ponto triste em que dissestes como mãos grosseiras e incivis atiravam das
janelas terra e espurcícias sobre o rei Ricardo.
YORK ­ Então, como eu dizia, o grande duque, Bolingbroke, montado num fogoso e altanado corcel,
que parecia conhecer o ambicioso cavaleiro, devagar avançou, mas imponente, enquanto as bocas todas o
aclamavam num só tom: "Deus te ampare, Bolingbroke!" Direis que as janelas tinham fala, tantos olhos,
ansiosos, se alongavam de seus caixilhos, de anciões e moços, para seu rosto, e bem assim que todas as
paredes, colgadas de pinturas, a um só tempo gritavam: "Sê bem-vindo, Bolingbroke! Jesus te ampare
sempre!" Ao que ele, para todos se virando, cabeça descoberta e ainda mais baixa que o colo do cavalo,
respondia: "Meus caros compatriotas, obrigado!" E assim passou, fazendo sempre o mesmo.
DUQUESA ­ Pobre Ricardo! E, nesse meio tempo, como ele se mostrava em seu cavalo?
YORK ­ Como os espectadores de uma peça no teatro, após sair o ator querido, indiferentes olham
para o que entra depois dele, julgando insuportável sua tagarelice: desse modo, se não com mais
desprezo, os assistentes zombavam de Ricardo. Ninguém disse: "Deus te salve!" Nenhuma voz amável
lhe deu as boas-vindas; atiravam-lhe terra na fronte consagrada, que ele sacudia com gesto de tristeza tão
cativante, a luta revelando nas feições, entre as lágrimas e o riso, sinais de seu pesar e de paciência, que
se Deus, por algum desígnio oculto, não tivesse deixado empedernido o coração dos homens, fora certo
ficarem comovidos e sentirem piedade de Ricardo os próprios bárbaros. Mas nisso tem a mão Deus
poderoso, cujo alvitre acatar nos é forçoso. Agora Bolingbroke é o novo rei; obediência e lealdade eu já
jurei.
DUQUESA -- Eis Aumerle, meu filho.
YORK ­ Aumerle, outrora; mas por ter sido amigo de Ricardo, mudou de nome. De ora em diante,
minha senhora, só deveis chamar-lhe Rutland. Dei-me como fiador no parlamento de sua lealdade ao
novo rei.
(Entra Aumerle.)
DUQUESA ­ Sede bem-vindo, filho. Que violetas ora o regaço enfeitam da ridente primavera?
AUMERLE ­ Senhora, não me ocupou no mínimo, com isso. Só Deus sabe que eu não me importo
de ser uma delas.
YORK ­ Sede cauto na nova primavera; se não, a vossa vida se acelera: sereis ceifado antes do
tempo. E agora, de Oxford, que novidades? Ainda duram as justas e os festejos?
AUMERLE ­ Sim, milorde, pelo que me disseram.
YORK ­ Deveríeis comparecer às festas.
AUMERLE ­ Deus querendo, essa é a minha intenção.
YORK ­ Que selo é esse que do peito te pende? Empalideces? Deixa-me ver o escrito.
AUMERLE ­ É sem valia, milorde.
YORK ­ Pouco importa; agora eu hei de saber o que é; desejo ver o escrito.
AUMERLE ­ Peço que Vossa Graça me perdoe, mas o assunto carece de importância. Contudo, não
quisera revelá-lo.
YORK ­ Pois eu quero saber de que se trata. Tenho medo...
DUQUESA ­ De que podeis ter medo? Certamente há de ser alguma letra que ele aceitou para pagar
os gastos com o vestuário da festa.
YORK ­ Aceitou letra que ainda traz consigo? És uma tonta, mulher. Rapaz, desejo ver o escrito.
AUMERLE ­ Peço que me perdoeis, mas é impossível mostrar-vo-lo.
YORK ­ Já o disse: quero vê-lo.
(Toma-lhe, à força, o papel e o lê.)
Traição! Crime! Traidor! Escravo! Biltre!
DUQUESA ­ Que é que há, senhor?
YORK ­ Olá! Há alguém aí dentro?
(Entra um criado.)
Sela o cavalo. Deus se apiade dele. Traição inominável!
DUQUESA ­ Que há, senhor? Que aconteceu?
YORK ­ Já o disse. As minhas botas! Apronta-me o cavalo!
(Sai o criado.)
Por meu nome, minha honra, a própria vida, eu mesmo quero denunciar o vilão.
DUQUESA ­ Mas o que é que houve?
YORK ­ Silêncio, mulher tonta.
DUQUESA ­ Não, não hei de ficar calada. O que foi que houve, Aumerle?
AUMERLE ­ Boa mãe, acalmai-vos; não fiz nada que minha vida resgatar não possa.
DUQUESA ­ Resgatares com a vida!
YORK ­ Traze as botas! Vou procurar o rei.
(Entra o criado, com as botas.)
DUQUESA ­ Bate-lhe, Aumerle. Pobre menino; estás estupefacto.
(Ao criado) ­ Retira-te, vilão, da minha vista!
YORK -- Dá-me as botas, já o disse.
(Sai o criado.)
DUQUESA ­ Que pretendes fazer? Não dissimulas nem os deslizes de tua própria gente? Temos
mais filhos? Porventura estamos em condições de os ter? O tempo, acaso, não fez secar minha
fecundidade? Tencionas a velhice despojar-me do meu único filho e do bendito nome de mãe deixar-me
órfã de todo? Não tem ele os teus traços? Não é teu filho?
YORK ­ Mulher louca, sem juízo, pretendes ocultar essa monstruosa conspiração? juraram doze
deles, por ocasião do sacramento, e as próprias mãos, neste escrito, o fato confirmaram, matar o rei em
Oxford.
DUQUESA ­ Não deixamos que ele vá; ficará aqui conosco. Que lhe importa tudo isso?
YORK ­ Sai, maluca, mulher sem juízo! Fosse vinte vezes ele meu filho e, certo, o denunciara.
DUQUESA ­ Se tivesses passado pelas dores que por ele eu passei, tu te mostraras mais compassivo.
Mas somente agora compreendo o teu pensar: é que suspeitas que eu não fui leal ao nosso próprio leito.
Um bastardo vês nele, não teu filho. Doce York, amado esposo, expunge ao espírito tão suspeitosa idéia!
Tanto quanto possível, ele tem tuas feições. Não tem meus traços, nem de meus parentes. No entanto, eu
o amo.
YORK ­ Sai, mulher indócil!
(Sai.)
DUQUESA ­ Vai atrás dele, Aumerle, em seu cavalo! Apressa-te; esporeia-o, porque possas chegar
diante do rei primeiro que ele, para pedir perdão antes de seres acusado por ele. Eu não demoro;
conquanto seja velha, não duvido que possa cavalgar tanto quanto York. Não me levantarei do solo,
enquanto não te houver perdoado Bolingbroke. Vai logo! Não demores!
(Saem.)