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RICARDO II, ATO V, CENA III

Windsor. Um quarto no castelo. Entram Bolingbroke, como rei; Henrique Percy e outros nobres.

BOLINGBROKE ­ Ninguém me dá notícias de meu filho perdulário? Três meses já passaram da
última vez que o vi. Se há malefício que sobre nós impenda, é ele, sem dúvida. Prouvera a Deus,
senhores, que o encontrásseis. Investigai em Londres, nas tavernas, por ser aí, segundo dizem, que ele
diariamente se encontra, acompanhado de gente licenciosa e sem princípios, tal como essas pessoas, é o
que dizem, que ficam pelas vielas, procurando bater nos guardas e roubar quem passa, enquanto ele, esse
moço libertino, rapaz efeminado, considera ponto de honra amparar tamanha corja de desbriados.
HENRIQUE PERCY ­ Milorde, eu vi o príncipe há cerca de dois dias e lhe disse que os festejos
iriam ser em Oxford.
BOLINGBROKE ­ E que disse esse estúrdio?
HENRIQUE PERCY ­ Disse que tencionava ir a um alcouce para tomar a luva a uma rameira, que
ele, como penhor, carregaria, jurando derrubar da sela quantos ousassem desafiá-lo nestas justas.
BOLINGBROKE ­ Tão libertino quanto ousado. Réstias entrevejo, no entanto, de melhores
esperanças, que podem, de futuro, patentear-nos dias mais risonhos. Mas quem vindo aí?
(Entra Aumerle.)
AUMERLE ­ Onde está o rei?
BOLINGBROKE ­ Que quer o primo que olha desse modo?
AUMERLE ­ Deus guarde Vossa Graça. Imploro a Vossa Majestade secreta conferência com Vossa
Graça.
BOLINGBROKE ­ Retirai-vos todos: deixai-nos sós.
(Saem Henrique Percy e nobres.)
E agora, primo, que há?
AUMERLE (ajoelha-se) ­ Desejo ter os joelhos ao chão presos, grudada a língua ao paladar. se acaso
não me perdoardes antes de me ouvirdes e de eu ficar de pé.
BOLINGBROKE ­ Foi essa falta concebida somente ou posta em prática? Se o pensamento mau não
alçou vôo, para ganhar-te o afeto eu te perdôo.
AUMERLE ­ Então permite que esta porta eu feche, para que interromper ninguém nos venha antes
de eu dizer tudo.
BOLINGBROKE ­ Como queiras.
(Aumerle corre o ferrolho da porta.)
YORK (fora) ­ Cautela, meu senhor; tomai cuidado, que está um traidor junto de Vossa Graça!
229 BOLINGBROKE (arrancando da espada) ­ Miserável! Vou pôr-te em condições de não me fazer
mal.
AUMERLE ­ Sustai o braço vingador; nada tendes a recear.
YORK (dentro) ­ Abre a porta, acautela-te, rei louco! Será preciso, então, que, por lealdade, tenha eu
de ser traidor? Abre essa porta, se não a arrombarei.
(Bolingbroke abre a porta, correndo, de novo, logo depois, o ferrolho.)
(Entra York.)
BOLINGBROKE ­ Tio, que é que houve? Falai; retomai fôlego; dizei-nos quão perto está o perigo,
porque seja possível removê-lo pelas armas.
YORK ­ Verás por este escrito que perigo correste e corres, que ele está contigo.
AUMERLE ­ Lembra-te, quando o leres, da promessa que me fizeste. Estou arrependido. Não leias o
meu nome; divorcia-se meu coração da mão que isso subscreve.
YORK ­ Mas estava a ela unida, biltre, até antes de teres assinado. Eu tirei isso do peito do traidor,
meu soberano. Não é a dedicação, é o medo, apenas, que o induz a se mostrar arrependido. Não te
lembres, portanto, de perdoar-lhe, porque tua piedade não se mude numa serpente que te morda o peito.
BOLINGBROKE ­ Oh, que monstruosa, enorme, temerária conspiração! Que pai sincero e digno de
um filho falso! Ó fonte argêntea e límpida de onde provém esta corrente suja que por desvãos imundos se
conspurca! Teu transbordante bem em mal se muda; mas há de ser o excesso de bondade que vai atenuar
o mortal crime de teu transviado filho.
YORK ­ Desse modo será minha virtude a alcoviteira de seus vícios, pagando ele a vergonha com
minha honra, como sempre o fazem os filhos perdulários com o dinheiro dos avarentos. Para ficar viva
minha honra, há de morrer sua desonra; mas se esta não morrer, já não tenho honra. Se o deixares com
vida, dás-me a morte. Decide, pois, ó rei, da nossa sorte.
DUQUESA (dentro) ­ Deixai-me entrar, meu caro soberano, por tudo o que é sagrado!
BOLINGBROKE ­ Quem suplica com voz tão estridente e assim tão alto?
DUQUESA (dentro) ­ Uma mulher, ó rei! Sou eu, tua tia! Fala-me! Tem piedade, abre essa porta!
Quem te está implorando é uma mendiga que nunca mendigou.
BOLINGBROKE ­ A nossa peça virou comédia, permiti que o diga, e ora se chama: "O Príncipe e a
Mendiga". Meu perigoso primo, abri essa porta que é vossa mãe, eu sei; mas pouco importa, que, de
cansada, ela há de vir arfando para pedir por vosso crime infando.
(Aumerle abre o ferrolho da porta.)
YORK ­ Se lhe perdoardes, seja a que pedido, maiores crimes te farão rendido. Para que não se perca
a vida cara, corta-se o membro podre; o corpo sara.
(Entra a duquesa.)
DUQUESA ­ Não o ouças, rei, que o filho ele difama; quem não ama a si próprio, a ninguém ama.
YORK ­ A que vens, louca? Em busca de algum meio para pôr novamente o monstro ao seio?
DUQUESA ­ Paciência, meu bom York.
(Ajoelha-se.)
Ouvi-me, ó rei!
BOLINGBROKE ­ Boa tia, de pé.
DUQUESA ­ Não; falarei como me encontro, sem que possa o dia de calma jamais ver e de alegria,
Se não me deres a certeza, agora, de que meu filho não se encontra fora de teu bom coração, meu filho
amado, meu Rutland, que aqui está como culpado.
AUMERLE ­ Dobro os joelhos; reforço o seu pedido
(Ajoelha-se.)
YORK ­ Pois contra ambos, senhor, meu corpo fido se prostra neste instante.
(Ajoelha-se.)
Só desgraças te virão da brandura; não desfaças tua felicidade.
DUQUESA ­ É ele sincero? Vede-lhe o rosto: acaso está severo? Lágrimas não derrama; sua prece
não vem do coração; alma refece não traduz: é enunciada por brinquedo. Quanto ele diz, não passa de
arremedo de palavras; as nossas, do imo peito se originam; são límpidas, no jeito de quem pede com
alma e coração. Ele pede, querendo ouvir um "Não". Seus joelhos se alçariam de bom grado, sei-o bem;
mas os nossos, com o cuidado que aqui nos trouxe, estreme de malícia, lançariam no chão raiz propícia.
Sua prece revela hipocrisia; a nossa a dor e o zelo concilia. Mais do que a dele a nossa prece alcança;
dai-nos, pois, o perdão, sem mais tardança.
BOLINGBROKE ­ Ficai de pé, boa tia.
DUQUESA ­ Não "de pé"; dize "perdão", primeiro, e, após, "de pé". Se a falar eu tivesse de
ensinar-te, na palavra "perdão" toda a minha arte concentraria, para que a aprendesses em primeiro lugar.
Oh! Dá corpo a esses meus anseios, ó rei! Dize: "perdão"; seja tua mestra, nisto, a compaixão. Termo
curto, mas doce sem medida; quando um rei o profere, é a própria vida.
YORK ­ Fala, rei, em francês: "Pardonnez moy".
DUQUESA ­ Ensinas ao perdão a lição má, porque ela se destrua? Oh! que marido sem alma,
coração empedernido, que a palavra contra ela própria lança. Dize "perdão", acorde com a usança de
nossa terra. A rude algaravia dos franceses inculca barbaria. Já começam teus olhos a falar; à língua
ensina, pois, o linguajar do verdadeiro amor, ou põe o ouvido no coração piedoso, porque o ruído possas
ouvir que fazem nossas preces e o almejado perdão tu nos apresses.
BOLINGBROKE ­ Ficai de pé.
DUQUESA ­ Não vim pedir apenas para ficar de pé, senão que as penas me alivies.
BOLINGBROKE ­ Concedo-lhe o perdão, para que Deus também me estenda a mão.
DUQUESA ­ Oh! Quanto pode um joelho que se curva! Mas o temor a mente ainda me enturva.
Torna a dizer, que repetir o mesmo vocábulo não é perdoar a esmo, mas é dar-lhe asas para excelso vôo.
BOLINGBROKE ­ De todo o coração eu lhe perdôo.
DUQUESA ­ És um deus sobre a terra.
BOLINGBROKE ­ Quanto ao nosso fiel cunhado, e o abade, e todo o resto dessa malta de sócios,
vou soltar-lhes no encalço a destruição. Bondoso tio, mandai para Oxford suficientes forças, ou para
onde os traidores se encontrarem. Farei que sem demora o bando imundo de seu peso alivie o nosso
mundo. Tio, adeus; caro primo, adeus também; soube tua mãe interceder com arte.
DUQUESA ­ Vamos, meu filho; Deus vai transformar-te.
(Saem.)