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RICARDO II, ATO V, CENA V

Pomfret. O calabouço do castelo. Entra o rei Ricardo.

REI RICARDO ­ Estive a refletir como me seja possível comparar esta angustiosa prisão ao vasto
mundo. Sendo o mundo tão populoso e aqui não existindo, além de mim, nenhuma outra criatura, não sei
como o consiga. Mas não paro de martelar a idéia: darei provas de que minha alma e o cérebro casaram e
que uma geração de pensamentos, logo após, conceberam. E, são esses pensamentos que o meu pequeno
mundo povoaram de caprichos, da maneira por que vemos no mundo, visto como jamais os pensamentos
se acomodam. Os mais graduados, como os pensamentos relativos a assuntos religiosos, de dúvidas se
mesclam, provocando conflito entre as palavras. Por exemplo: "Deixai que os pequeninos venham a
mim". E após: "É bem mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que eles alcançarem o
reino de meu pai". Os pensamentos ambiciosos cogitam só de absurdos: como estas fracas unhas abrir
possam uma passagem através das pétreas costelas deste mundo, esta minha áspera prisão. E, porque
falham, morrem vítima do próprio orgulho. Os pensamentos calmos se iludem com dizer não serem eles
os primeiros escravos da Fortuna, nem os últimos, ainda, como certos imbecis que, no potro de suplícios,
se consolam do opróbrio, com dizerem que outras pessoas por ali passaram e outras mais passarão. Com
essa idéia eles experimentam certo alívio, jogando a desventura para as costas dos que passaram por
iguais tormentos. Desta arte, eu represento ao mesmo tempo muitas pessoas, todas descontentes. Sou rei,
por vezes. A traição, nessa hora, me leva a desejar ser um mendigo, e mendigo me torno. Então o peso da
miséria de novo me persuade que eu estava melhor sendo monarca. Torno a ser rei; mas nesse mesmo
instante ponho-me a imaginar que Bolingbroke me destronou e que eu não sou mais nada. Seja o que for,
porém, nem eu nem homem algum, que seja um homem, simplesmente, com coisa alguma poderá
mostrar-se contente, enquanto não ficar tranqüilo, virando nada. Mas que ouço? Música?
(Ouve-se música.)
Conservai o compasso! Como a doce música é insuportável para o ouvido, quando falha o compasso
e não se observa nenhuma proporção. A mesma coisa se passa na harmonia da existência dos mortais.
Aqui eu tenho ouvido fino para apanhar pequena dissonância de uma corda mal posta. No entretanto, não
percebi a falta de compasso que deveria haver na consonância do meu tempo e do Estado. Malgastei todo
meu tempo; o tempo ora me gasta, porque me vejo transformado agora no relógio do tempo. Os
pensamentos são minutos, que com suspiros batem no quadrante dos olhos, onde se acha sempre meu
dedo, à guisa de ponteiro para marcar as horas e limpá-las de lágrimas. Agora, meu querido Ricardo, o
som que nos indica as horas são suspiros profundos que me batem no coração: o sino. Assim, suspiros,
lágrimas e gemidos, os minutos, o tempo e as horas marcam. Mas meu tempo corre atrás da alegria
presunçosa de Bolingbroke, enquanto eu, como um néscio, me transformo no João de seu relógio. Mas
estou quase louco com esta música! Parem com isso! Embora tenha a música restituído a razão a muitos
loucos, no meu caso, parece, deixa os sábios loucos de todo. Não; bendito seja o coração que teve tal
idéia. Revela amor; e amor para Ricardo é como jóia usada neste mundo tão cheio de ódios.
(Entra um palafreneiro.)
PALAFRENEIRO ­ Salve, real príncipe!
REI RICARDO ­ Nobre par, obrigado. O mais barato de nós dois ainda é caro dez vinténs. Mas
quem és tu, rapaz? Por que motivo vieste até onde ninguém chega, afora esse sombrio cão que não se
esquece de me trazer comida porque possa viver minha desgraça?
PALAFRENEIRO ­ Eu sou um pobre palafreneiro, ó rei, de teu serviço no tempo em que eras rei,
que, de passagem para York, após muito trabalho, obtive permissão para o rosto contemplar do meu
nobre senhor de antigamente. Como meu coração ficou apertado, quando em Londres, no dia dos festejos
da coroação eu vi montar o altivo Bolingbroke no teu ruão Berbere, justamente o cavalo em que folgavas
cavalgar, o cavalo, justamente, de que eu tratava com tamanho zelo!
REI RICARDO ­ Cavalgava o Berbere? Amigo, dize: como o animal, com ele ao dorso, estava?
PALAFRENEIRO ­ De tanto orgulho, desdenhava a terra.
REI RICARDO ­ Por carregar o altivo Bolingbroke, mostrava-se orgulhoso? Esse sendeiro já comeu
pão em minhas mãos reais; esta mão já o deixou vaidoso, apenas com lhe dar palmadinhas. No caminho
não tropeçou? Não sofreu queda alguma ­ já que é forçoso vir abaixo o orgulho ­ e o pescoço partiu do
homem vaidoso que lhe usurpava o dorso? Mas perdoa-me, cavalo. Por que causa repreender-te, se foste
criado para ser domado pelos homens e ao dorso carregá-los? Eu não nasci cavalo; no entretanto, como
um asno carrego um fardo ingente e me vejo esporeado, até à canseira máxima, pelo altivo Bolingbroke.
(Entra o carcereiro, com um prato.)
CARCEREIRO ­ Basta, rapaz; vai logo dando o fora.
REI RICARDO ­ Se amor me tens, não fiques; vai-te embora.
PALAFRENEIRO ­ Nada pode dizer a alma que chora.
(Sai.)
CARCEREIRO ­ Não quereis dar início à refeição?
REI RICARDO ­ Antes, porém, deves prová-la, não?
CARCEREIRO ­ Não me atrevo, milorde, pois sir Pierce de Exton, que veio do palácio há pouco,
trouxe ordens radicais nesse sentido.
REI RICARDO ­ O diabo leve a Henrique de Lencastre, juntamente contigo! Já está gasta minha
paciência; estou cansado disto.
(Bate no carcereiro.)
CARCEREIRO ­ Socorro! Socorro!
(Entram Exton e criados, armados.)
REI RICARDO ­ Que quer a Morte neste rude assalto? Tua própria mão me vai dar o instrumento,
bandido, de tua morte.
(Arranca a espada de um dos criados e o mata.)
E tu, vai logo, desce a ocupar outro lugar no inferno.
(Mata outro criado; então, Exton o prostra.)
Há de ficar nas chamas sempiternas essa mão que abalou minha pessoa. Exton, com sangue real tua
mão ousada manchou a própria terra ao rei sagrada. Desça meu corpo, já de tudo falto; sobe, minha alma,
teu lugar é no alto!
(Morre.)
EXTON ­ Cheio de ardor como de sangue real! Derramei ambos; não redunde em mal. O diabo, que
a princípio me dizia que era bem feito, agora me cicia que este meu ato se acha para eterno registado na
crônica do inferno. Vou levar ao rei vivo o rei defunto; enterrai estes corpos aqui junto.
(Saem.)