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JULIO CESAR, ATO II, Cena II

O mesmo. Em casa de César. Trovões e relâmpagos. Entra César, em camisa de dormir.

CÉSAR - Não ficaram em paz o céu e a terra durante toda a noite. Em meio ao sono, por três vezes gritou
Calpúrnia: "Acudam!" Estão matando César!" - Venha alguém!
(Entra um criado.)

CRIADO - Senhor?

CÉSAR - Manda que os sacerdotes sacrifiquem e traze-me depressa um bom augúrio.

CRIADO - Pois não, senhor.
(Entra Calpúrnia)

CALPÚRNIA - César, que pretendeis? Quereis sair? Não poreis hoje o pé fora de casa.

CÉSAR - César sairá. As coisas que me ameaçam, só me olham pelas costas; quando devem de César ver
o rosto, já sumiram.

CALPÚRNIA - César, jamais dei crédito a prodígios, mas ora tenho medo. Aí dentro há alguém que a
tudo que nós vimos e escutamos acrescenta visões apavorantes que aos guardas esta noite apareceram.
Uma leoa na rua teve o parto; abriram-se sepulcros, expulsando seus mortos; pelas nuvens incendiados
guerreiros digladiavam em fileiras e esquadrões ordenados, como em guerra, tendo sangue manchado o
Capitólio. Agitava-se no ar a gritaria da batalha; cavalos relinchavam; gemiam moribundos, e os

fantasmas, dando gritos, as ruas percorriam. Ó César! essas coisas ultrapassam a comum experiência e
me amedrontam.

CÉSAR - Podemos evitar o que por meta assentaram os deuses poderosos?

Apesar disso, César vai sair, pois essas predições se relacionam tanto ao mundo em geral como a ele
apenas.

CALPÚRNIA - Quando morrem mendigos não se vêem surgir cometas, mas o céu se incumbe de
iluminar a morte dos monarcas.

CÉSAR - Muito antes de morrer, morre o covarde; só uma vez o homem forte prova a morte. Das coisas
raras de que tenho ciência, sempre me pareceu a mais estranha terem os homens medo, embora saibam
que a morte, um fim a todos necessário, vem quando vem.
(Volta o criado.)

Os áugures que dizem?

CRIADO - Que não deveis hoje sair de casa. Retirando da vítima as entranhas, verificaram que ao animal
faltava o coração.

CÉSAR - Os deuses fazem isso para vergonha, só, da covardia. César fora animal sem coração, se hoje,
de medo, não saísse à rua. Não; César vai sair. Sabe o perigo que mais do que ele é César perigoso.
Somos dois leões, nascidos num só dia; mas o mais velho eu sou e o mais terrível. César sairá.

CALPÚRNIA - Ó meu senhor! Anula-se vossa sabedoria ante esse arrojo. Não saiais hoje. Declarai a
todos que o que vos prende em casa é o meu receio, não o vosso. Mandaremos ao senado Marco António,
incumbido de dizer-lhes que não vos sentis bem. Que assim, de joelho, eu consiga de vós alcançar isso.

CÉSAR - Marco António dirá que estou indisposto; para agradar-te ficarei em casa.
(Entra Décio.)

Eis Décio Bruto; ele dará o recado.

DÉCIO - Salve, César! Bom dia, digno César. Só vim para levar-vos ao senado.

CÉSAR - Chegais na hora precisa, para aos dignos senadores levardes meus saudares e lhes comunicar
que hoje não saio. Que não posso... seria uma mentira. Não me atrevo... pior. Dize-lhes, Décio, apenas
que hoje não sairei de casa.

CALPÚRNIA - Podeis acrescentar que ele está doente.

CÉSAR - César pode mentir? Teria, acaso, tão longe o braço posto nas conquistas, para vir a ter medo de
a verdade dizer a uns barbas-brancas? Décio, dize-lhes que César não sairá.

DÉCIO - Mui poderoso César, contai-me alguma causa, ao menos, porque de mim não riam ao falar-lhes.

CÉSAR - Minha vontade é a causa: não sairei. Como razão para o senado, basta. Mas, porque vos
estimo, para vossa satisfação, vou ser-vos mais explícito. Minha esposa, Calpúrnia, é que me prende, não
querendo que eu saia. Viu, em sonho, minha estátua, esta noite, como fonte que despejava sangue por
cem bocas, na qual as mãos banhavam, sorridentes e robustos romanos. Ela toma semelhante visão como
advertência de perigo iminente e mau agouro, tendo, de joelho, suplicado que hoje de casa eu não saísse.

DÉCIO - Mas o sonho foi mal interpretado! É auspiciosa toda a visão e de feliz agouro. Vossa estátua a
jorrar por muitos canos o sangue em que romanos sorridentes mergulhavam as mãos, é sinal certo de que
de vós há de tirar mui breve sangue renovador a grande Roma, empenhando-se os homens mais ilustres
por alcançar de vós brasões mais novos, relíquias e penhores. Isso, apenas, é o que revela o sonho de
Calpúrnia.

CÉSAR - Mui bem o interpretaste desse modo:

DÉCIO - Máxime, quando ouvirdes o que tenho para comunicar. Ouvi, portanto.

Decidiu o senado ofertar hoje uma coroa ao poderoso César. Se ficardes em casa e lhes mandardes
recado por alguém, nesse sentido, talvez mudem de idéia. Além do mais, poderão pilheriar a esse
respeito, se alguém vier a dizer: "Será prudente adiarmos a sessão até que a esposa de César tenha sonhos
mais risonhos". Pode a ausência de César ser motivo de cochichar alguém ao companheiro: "Olá! César
tem medo". Perdoai-me, César! Mas é o amor profundo por quanto vos atinja que me leva a criticar
assim vossa atitude. E à razão segue o amor sempre em tais casos.

CÉSAR - Calpúrnia, como o vosso medo agora se nos mostra ridículo! Envergonho-me de lhe ter dado
ouvidos. Dai-me a toga, pois resolvi sair.
(Entram Públio, Bruto, Ligário, Metelo, Casca, Trebônio e Cina)

Eis aí Metelo; veio buscar-me.

PÚBLIO - Salve, grande César!

CÉSAR - Sede bem-vindo, Públio. Como, Bruto! Tão cedo e já de pé? Bom dia, Casca.

Caio Ligário, nunca vosso imigo foi César tanto, como agora a febre que vos deixou tão magro. Que
horas são?

BRUTO - César, bateram oito.

CÉSAR - Muito grato vos sou pelo trabalho e cortesia.
(Entra Antônio.)

Vede! Antônio, que as noites passa em festa, já está de pé tão cedo. Salve, Antônio!

ANTÔNIO - Bom dia ao nobre César.

CÉSAR - Dai dentro ordem para que se preparem. A demora vai deixar-me passível de censura. Como?
Cina e Metelo, então? Trebônio, temos uma horazinha de conversa. Não vos esqueça visitar-me ainda
hoje; ficai perto de mim, porque me lembre.

TREBÔNIO - Pois não, César.
(A parte.)

Tão perto hei de ficar, que hão de querer os vossos partidários ver-me um pouco mais longe.

CÉSAR - Entrai, amigos; bebamos vinho juntos. Depois disso, sigamos todos como bons amigos.

BRUTO - (à parte) - Que o que parece igual nem sempre é o mesmo, sangra ao pensar o coração de
Bruto.

(Saem.)