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OTELO, ATO III, Cena III

Diante do castelo. Entram Desdêmona, Cássio e Emília.

DESDÊMONA - Podeis ficar tranqüilo, meu bom Cássio; farei por vós o que me for possível.

EMÍLIA - Sim, bondosa senhora; meu marido se aborreceu tanto com isso, como se fosse dele o caso.

DESDÊMONA - Oh! Que homem de valor! Não tenhais dúvida, Cássio, que hei de fazer que vós e Otelo
vos torneis bons amigos como dantes.

CÁSSIO - Generosa senhora, seja a sorte qual for de Miguel Cássio, nunca ele há de ser outra coisa,
senão tão-somente vosso leal servidor.

DESDÊMONA - Tenho certeza disso e vos agradeço. Amais a Otelo; há muito o conheceis. Ficai, pois,
certo que a frieza dele durará somente, enquanto as conveniências o exigirem.

CÁSSIO - Pois não, senhora; mas as conveniências poderão ser morosas e viverem com dieta tão aguada
e delicada ou com tais circunstâncias se nutrirem, que, ausente eu me encontrando e já ocupado meu
posto, acabará por olvidar-se meu general do meu amor e préstimos.

DESDÊMONA - Que isso não te preocupe. Aqui, em frente de Emília te asseguro o antigo posto. Podes
ficar tranqüilo; quando eu faço um voto de amizade, cumpro-o à risca. Meu marido não mais terá
sossego; hei de amansá-lo à custa de vigílias; sua paciência será posta à prova; escola vai virar o leito
dele; confessionário, a mesa. Em tudo quanto quiser fazer, misturarei a súplica de Cássio. Por tudo isso,
Cássio, alegra-te; porque, antes de desistir de tua causa há de a vida perder teu advogado.
(Entram Iago e Otelo e se conservam a distância.)

EMÍLIA - Senhora, aí vem meu amo.

CÁSSIO - Senhora, aqui despeço-me.

DESDÊMONA - Esperai para ouvir-me defender-vos.

CÁSSIO - Noutra ocasião, senhora; estou indisposto e incapaz de servir meu próprio intuito.

DESDÊMONA - Como quiserdes.
(Sai Cássio.)

IAGO - Isso não me agrada!

OTELO - Como disseste?

IAGO - Nada, meu senhor; ou, talvez... Já não sei.

OTELO - Não era Cássio que estava a conversar com minha esposa?

IAGO - Cássio, senhor? Acreditar não posso que ele como culpado se esgueirasse, quando vos viu
chegar.

OTELO - Creio que era ele.

DESDÊMONA - Oh! meu marido! Estive a conversr com um suplicante; que vosso desfavor faz
definhar.

OTELO - A quem vos referis?

DESDÊMONA - Oh! a vosso tenente Cássio. Caro marido, se eu possuo graça ou força para vos
comover, reconciliai-vos com ele desde já. Se não se trata de uma pessoa que vos é afeiçoada
sinceramente, e errou mais por descuido do que por intenção, não sei, de fato, reconhecer uma feição
honesta. Peço-te que o reintegres no seu posto.

OTELO - Daqui não saiu ele agora mesmo?

DESDÊMONA - Sim, e tão abatido que comigo deixou parte das mágoas que ainda me compungem.
Chama-o, caro!

OTELO - Mais tarde, agora não, cara Desdêmona.

DESDÊMONA - Mas será logo?

OTELO - Logo que possível, minha querida, já que assim desejas.

DESDÊMONA - Hoje de noite, à ceia?

OTELO - A noite, não.

DESDÊMONA - Então amanhã cedo, à hora do almoço?

OTELO - Não estarei em casa amanhã cedo; almoçarei com os capitães no forte.

DESDÊMONA - Quando? Amanhã à noite? Ou terça-feira pela manhã? ou à noite? ou quarta-feira
cedinho? Por obséquio: marca a data; contanto que não passe de três dias. Arrependeu-se, é certo. Aliás,
seu erro, segundo o são juízo - se não fosse dizerem que na guerra é necessário castigar os melhores, para
exemplo - é falta que mal pode ser punida. Quando poderá vir? Dizei-me, Otelo. Pergunto-me, admirada,
o que podíeis pedir-me que eu negasse, ou me deixasse vacilante a esse ponto. É incompreensível!
Miguel Cássio, esse mesmo que se achava convosco, quando a corte me fizestes, e que, mais de uma vez,

se acontecia eu de vós dizer algo em desacordo, vos defendia logo: terei tanto trabalho para reempossá-lo
agora? Acreditai-me: eu poderia muito...

OTELO - Por favor, não prossigas. Pois que venha, quando bem entender; não te recuso coisa nenhuma.

DESDÊMONA - Ora, isso não é graça; é como se eu pedisse que pusésseis as luvas ou comêsseis pratos
pingues, não vos resfriásseis, insistindo muito sobre algo que vos fosse de proveito. Não; se vos faço
algum pedido, para pôr vosso amor à prova, será sempre de muito peso e mui penoso fardo, de grave
concessão.

OTELO - Não te recuso coisa nenhuma. Mas, por isso mesmo te suplico um favor; vais conceder-mo,
deixando-me um pouquinho a sós comigo.

DESDÊMONA - Eu, recusar-to? Não. Adeus, senhor.

OTELO - Adeus, querida; é só por uns momentos.

DESDÊMONA - Emília, vamos logo. Seja tudo como vossos caprichos entenderem. Tal como fordes,
hei de obedecer-vos.
(Sai com Emília.)

OTELO - Adorável criatura! Que minha alma a apanhe a perdição, se eu não te amar; e se não te amo,
que este mundo volte de novo para o caos.

IAGO - Nobre senhor... OTELO - Que queres, Iago? IAGO - Acaso Miguel Cássio estava a par de
vossos sentimentos, quando a corte fizestes à senhora?

OTELO - Desde o início até o fim. Por que o perguntas?

IAGO - Para satisfazer o pensamento; não há malícia alguma.

OTELO - Como, Iago! Que pensamento?

IAGO - E que eu pensava que ele então não a conhecesse.

OTELO - Oh! Conhecia! Muitas vezes serviu de intermediário entre nós dois.

IAGO - Realmente?

OTELO - Sim, realmente. Encontras algo, nisso, censurável? Ele não é honesto?

IAGO - Honesto, meu senhor?

OTELO - Honesto, sim; honesto.

IAGO - Por tudo o que sei dele...

OTELO - E que é que pensas?

IAGO - Que penso, meu senhor?

OTELO - "Que penso, meu senhor?" Oh! Pelo céu! Ele me serve de eco! Só parece que traz no
pensamento um monstro horrível, horrível por demais, para ser visto. Alguma coisa deves ter em mente.

Há pouco, quando Cássio se afastava, Iago, disseste-me: "Isso não me agrada". Que é que não te agrada?
E ao declarar-te que ele de confidente me servira, quando eu fazia a corte à minha esposa, exclamaste:
"Realmente?" e contraíste, fechaste o sobrecenho, parecendo que trancavas, então, dentro do cérebro,
alguma idéia horrível. Caso me ames, revela-me o que pensas.

IAGO - Sabeis, senhor, quanto vos quero bem.

OTELO - Sei disso; e por saber quanto és honesto, quanta afeição albergas, e que pesas tuas palavras
antes de insuflar-lhes o sopro animador, mais intranqüilo me deixa o interrompê-las. Se essas coisas se
passassem com algum sujeito à-toa, sem lealdade nem fé, eu as tomara por manhas habituais. Em se
tratando, porém, de um homem justo, são avisos e delações sinceras, escapadas de um coração que
dominar não pode seus próprios movimentos.

IAGO - Quanto a Cássio, atrevo-me a jurar que ele é honesto.

OTELO - É também o que eu penso.

IAGO - Deveriam os homens ser somente o que parecem, ou então não parecer o que não fossem.

OTELO - Sim, deveriam ser o que parecem.

IAGO - Sendo assim, considero Cássio honesto.

OTELO - Não, não; ocultas algo. Peço-te que me fales o que pensas, como as idéias fores ruminando, e
as mais terríveis digas com palavras mais terríveis também.

IAGO - Senhor, perdoai-me; mas conquanto obrigado esteja a todos os atos do dever, sinto-me livre para
me recusar a fazer algo que dos próprios escravos não se exige. Qual é o palácio em que não se
introduzem, por vezes, coisas sujas? E que peito tão puro pode haver, que não contenha culpáveis
apreensões, que não se assentem nos tribunais, para emitir sentenças lado a lado às idéias mais legítimas?

OTELO - Conspiras, Iago, contra teu amigo se, julgando-o ultrajado, seus ouvidos deixas como
estrangeiros ao que pensas.

IAGO - Suplico-vos, no caso de algo errôneo haver no que suspeito - pois confesso que minha natureza
se ressente desse defeito de aventar maldades e que por vezes meu ciúme inventa faltas que não existem -
que ora a vossa sabedoria não empreste a mínima importância a quem pensa por maneira tão defeituosa,
nem fundeis vexames no que ele possa ter conjeturado por modo tão disperso e pouco firme. Não fora de
vantagem para vosso repouso e paz de espírito, nem para minha sabedoria, honestidade, meus
sentimentos de homens, conhecerdes o que ora estou pensando.

OTELO - Que pretendes dizer com isso?

IAGO - Um nome imaculado, caro senhor, para a mulher e o homem é a melhor jóia da alma. Quem da
bolsa me priva, rouba-me uma ninharia; é qualquer coisa, nada; pertenceu-me, é dele, escravo foi de mil
pessoas. Mas quem do nome honrado me espolia, me priva de algo que não o enriquece, mas me deixa
paupérrimo.

OTELO - Pelo céu, saber quero o que ora pensas.

IAGO - Não o poderíeis, mesmo que tivésseis meu coração nas mãos, máxime, achando-se ele sob minha

guarda.

OTELO - Ah!

IAGO - Acautelai-vos senhor, do ciúme; é um monstro de olhos verdes, que zomba do alimento de que
vive. Vive feliz o esposo que, enganado, mas ciente do que passa, não dedica nenhum afeto a quem lhe
causa o ultraje. Mas que minutos infernais não conta quem adora e duvida, quem suspeitas contínuas
alimenta e ama deveras!

OTELO - Oh miséria!

IAGO - Quem com sua pobreza está contente, é rico, muito rico; nas riquezas infinitas são como o frio
inverno, para quem medo tem de ficar pobre. Livrai-me, céu bondoso, e as almas todas de minha tribo,
de sentir ciúmes!

OTELO - Por quê? Por que tudo isso? Crês, de fato, que eu passaria a vida tendo ciúmes e as mudanças
da lua acompanhara 8com suspeitas crescentes? Não; a dúvida já me traria a solução do caso. Troca-me
por um bode, se o andamento de minha alma eu torcer, com base apenas em infiadas e vácuas conjeturas,
como ora as apresentas. Não me deixa enciumado dizerem-me que minha mulher é linda, que aprecia a
mesa, gosta da sociedade, é de linguagem mui desembaraçada, dança, canta e representa bem. Onde há
virtude, tudo isso mais virtuoso, ainda, se torna. Não tirarei de meu modesto mérito o menor medo ou
dúvida a respeito de seu procedimento; ela tinha olhos e me escolheu. Não, Iago; primeiro hei de ver para
duvidar. E após a dúvida, precisarei de provas; feitas essas, uma só coisa resta: liquidemos de vez o amor
e o ciúme.

IAGO - Isso me alegra, porque me enseja base suficiente para provar-vos com mais franco espírito a
afeição e lealdade que vos voto. Assim, já que o dever a isso me obriga, sincero vou falar, mas não de
provas, por enquanto. Vigiai vossa consorte; observai bem como ela e Cássio falam; lançai-lhe olhar
assim, nem enciumado, nem confiante demais. Não desejara que vossa natureza leal e nobre vítima
viesse a ser por causa, apenas, da generosidade que lhe é própria. Vigiai-os bem. Conheço minha terra;
em Veneza as mulheres não se correm de confessar ao céu as leviandades que ocultam dos maridos. Para
todas a virtude consiste apenas nisto: Não deixes de fazer, mas em segredo.

OTELO - Crês que seja assim mesmo?

IAGO - Ao pai ela enganou com desposar-vos; ao fingir que tremia à vossa vista, mais vos era afeiçoada.

OTELO - Isso é verdade.

IAGO - Tirai a conclusão: uma donzela que finge a ponto de deixar os olhos do pai como vendados,
obrigando-o a achar que era feitiço... Mas confesso-me passível de censura. Humildemente vos peço me
perdoeis tanta amizade.

OTELO - Obrigado te fico para sempre.

IAGO - Percebo que ficastes abalado com o que vos disse.

OTELO - Nada! Nem um pouco!

IAGO - Em verdade, receio-o. Mas espero que considerareis tudo o que eu disse como oriundo, tão-só,
do meu afeto. Mas estais comovido. Instantemente vos peço não tirar de meu discurso forçadas

conclusões, nem distendê-lo senão até à suspeita.

OTELO - Apenas isso.

IAGO - Se tal fizésseis, meu senhor, tiráreis de minha fala conseqüências crassas, que não me obriga a
mente. Considero Cássio meu digno amigo. Porém vejo, senhor, quanto abalado...

OTELO - Nada disso! Mas não posso deixar de ter Desdêmona como muito virtuosa.

IAGO - Vida longa tenha ela assim, e vós também, guardando semelhante certeza.

OTELO - No entretanto, como pode transviar-se a natureza...

IAGO - Sim, esse é o ponto. Para falar franco convosco: recusado haver propostas de casamento de sua
própria terra, estado e parentesco, em que se achara conforme em tudo a própria natureza... Bah!
poder-se-ia farejar no caso uma vontade mais do que corrupta, instintos pervertidos, pensamentos
contrários à natura. Mas perdoai-me; não avanço essas coisas, tendo em vista a ela precisamente, muito
embora chegue a recear que seus desejos possam vir dar de encontro a um juízo mais sadio e com seus
compatriotas confrontar-vos, levando-a, porventura, a arrepender-se.

OTELO - Adeus, adeus; se de algo mais souberes, não deixes de contar-mo. Dá à tua esposa a
incumbência de espiá-la. Deixa-me, Iago.

IAGO - Despeço-me, senhor.
(Retirando-se.)

OTELO - Por que casei? Esta criatura honesta sabe mais, muito mais do que revela.

IAGO (retomando) - Desejara, senhor, poder pedir-vos que não pensásseis mais sobre esse assunto.
Confiai-o ao tempo. Embora Cássio deva ser reintegrado em seu antigo posto - em que, em verdade, ele
se desempenha com muita habilidade - no entretanto se mantê-lo quisésseis afastado mais algum tempo,
poderíeis logo conhecer o indivíduo e seus processos. Notai se vossa esposa pede a volta dele com
insistência muito incômoda. Já fora muita coisa. Nesse em meio, deixai-me parecer exagerado nos meus
receios - como tenho causas para pensar que o seja - e inteiramente livre a deixai; é o que a Vossa Honra
eu peço.

OTELO - Serei discreto em tudo.

IAGO - Mais uma vez despeço-me.
(Sai.)

OTELO - Esse rapaz é a própria honestidade; de espírito experiente, os móveis todos discemir sabe das
ações humanas: Se ela se revelar falcão rebelde, ainda que seus atilhos fossem fibras do próprio coração
que aqui me bate, assobiarei, soltando-a, para que alce vôo a favor do vento e faça presas como a sorte o
ensejar. Porque sou negro e de fala melíflua não disponho qual petimetre, ou porque já me encontro no
declive da idade - mas não tanto - ela se foi, havendo-me enganado. Meu consolo vai ser agora, apenas,
ter aversão por ela. Oh! Maldição do casamento! Ser-nos facultado nossas chamar a essas criaturas
frágeis e não seus apetites! Preferira ser um sapo e viver só dos vapores de um cárcere, a ceder uma
partícula da coisa amada para que outrem a use. Serem os grandes sempre flagelados por ter quinhão
menor que o dos pequenos, é coisa inevitável como a morte. Esta peste farpada já se achava para nós

destinada ao nascimento. Mas vede que ela chega! Se for falsa, é que o céu de si próprio está zombando.
(Entram Desdêmona e Emília.)

DESDÊMONA - Então, querido Otelo? A ceia e os nobres insulanos que havíeis convidado estão à vossa
espera.

OTELO - Sou passível de censura.

DESDÊMONA - Por que falais tão fraco? Sentis-vos indisposto?

OTELO - Dói-me a fronte.

DESDÊMONA - É que tendes velado todo o tempo. Há de passar; deixai que vos aperte bem a cabeça e
heis de sarar numa hora.

OTELO - É por demais pequeno vosso lenço.
(Desdêmona deixa cair o lenço.)
Deixai! Deixai! Vamos; irei convosco.
(Saem Otelo e Desdêrnona.)

EMÍLIA - Fico contente por haver achado justamente este lenço, que é a primeira lembrança a ela
ofertada pelo Mouro. Meu estranho marido umas cem vezes me pediu que o roubasse. Mas tão grato para
ela é o mimo - por pedir-lhe o esposo que o conservasse sempre - que a toda hora o traz consigo, e o
beija, e com ele fala. Mandarei que me tirem uma cópia e darei este a Iago. Qual a sua intenção, não sei
dizê-lo; mas seus caprichos me despertam zelo.
(Entra Iago.)

IAGO - Que fazeis aqui só?

EMÍLIA - Não vos zangueis; tenho um presente a dar-vos.

IAGO - Um presente? Coisa é muito comum...

EMÍLIA - Ah!

IAGO - ... ter uma mulher louca.

EMÍLIA - Oh! nada mais? Então, que me daríeis por este lenço aqui?

IAGO - Como! Que lenço?

EMÍLIA - Que lenço? Ora, o que o Mouro deu como primeiro mimo de seu amor, e me mandastes tantas
vezes roubar.

IAGO - Dela o tiraste?

EMÍLIA - Não; por descuido ela o deixou cair. Aproveitando o ensejo, estando eu perto, levantei-o do
chão. Ei-lo; aqui o vedes.

IAGO - És um rapariga e tanto! Dá-mo.

EMÍLIA - Que pretendeis fazer com ele, para que me pedísseis com tamanho empenho que o
escamoteasse?

IAGO - E que vos importa isso?
(Arrebata-lhe o lenço.)

EMÍLIA - Se não for para alguma coisa boa, restituí-mo. Coitada da senhora! Ficará louca ao dar por
falta dele.

IAGO - Finge que nada sabes. Tenho emprego para ele. Podes ir.
(Sai Emília.)
Dentro do quarto de Cássio jogarei o lenço, para que ele o venha a encontrar. As ninharias leves com o
ar, para quem tem ciúmes, são verdades tão firmes como trechos da sagrada Escritura. Disto pode sair
alguma coisa. Meu veneno já produziu alterações no Mouro. Certos conceitos são por natureza
verdadeiros venenos que, de inicio, não provocam nenhuma repugnância, mas logo que no sangue atuam,
queimam como mina de enxofre. Não me engano. Ei-lo que chega!
(Entra Otelo.)
Agora, nem papoula, mandrágora, nem todos os xaropes sonolentos do mundo poderiam dar-te de novo o
doce sono de ontem.

OTELO - Ah! Ah! Ela, enganar-me?

IAGO - Então, meu general? Parai com isso.

OTELO - Retira-te! Retira-te! Puseste-me a tratos. Pelo céu, é preferível ser enganado muito, a saber
pouco do que se passa.

IAGO - Como, meu senhor?

OTELO - Que percepção eu tinha de suas horas roubadas de luxúria? Não sabia de nada, não pensava em
coisa alguma, nada me compungia. A noite toda dormia bem; livre me achava e alegre. Não encontrava
em sua boca os beijos de Cássio. Quem não dá por falta nunca de algo que lhe tirassem, continue na
ignorância, pois nunca foi roubado.

IAGO - Entristece-me ouvir-vos.

OTELO - Feliz teria sido, muito embora todo o campo, inclusive a recovagem, lhe tivesse provado o
doce corpo, sem que eu conhecimento houvesse disso. Oh! mas agora, adeus tranqüilidade de espírito!
Oh! Adeus, contentamento! Para sempre. Adeus, tropas de penacho, exércitos altivos, que em virtude
mudam toda ambição! Adeus! Adeus! Adeus cavalos relinchantes, trompas belicosas, tambores
animosos, pífaros estrindentes, reais bandeiras, tudo o que o orgulho constitui, a pompa e a aparelhagem
da gloriosa guerra! E a vós também, adeus, mortais engenhos, cujas rudes gargantas os estrondos
terrorantes imitam do alto Jove: a obra de Otelo já não tem sentido.

IAGO - É possível, senhor?

OTELO - Infame, dá-me a prova de que minha mulher é prostituta. Fica certo: quero prova evidente; ou,
pelo mérito de minha alma imortal, melhor te fora teres nascido cão que responderes agora à minha
cólera desperta.

IAGO - Chegamos a esse ponto?

OTELO - Quero prova visível ou, no mínimo, uma coisa que não tenha nem gancho nem presilha onde a

dúvida possa pendurar-se. Se não, ai de tua vida!

IAGO - Muito nobre senhor...

OTELO - Se a caluniaste e me torturas, rezar já não precisas; abandona todo o remorso; sobre o horror
empilha novos horrores; com teus crimes faze chover o céu, estarrecer a terra: não acrescentarás mais
nada à tua condenação que aquilo sobrepuje.

IAGO - Oh Graça! Céu, ampara-me! Sois homem? Tendes alma e sentidos! Deus vos guarde. Tirai-me o
posto. Ó desgraçado idiota, teres vivido até hoje, para veres tachar de vício tua honestidade! Mundo
monstruoso! Toma nota, mundo! E perigoso ser sincero e honesto. Agradeço a lição; mas doravante
renuncio à amizade, pois ofensa pode causar quem nisso menos pensa.

OTELO - Não, fica; deverias ser honesto.

IAGO - Não; devera ser sábio. A honestidade, como tolo, ao patrão só dá prejuízo.

OTELO - Pelo mundo! Ora penso que é virtuosa, ora penso que é infiel; sincero te acho, e, ao mesmo
tempo, falso. Quero provas. O nome dela, que era tão singelo como o rosto de Diana, ora se encontra
como meu próprio rosto: negro e sujo. Se cordas ainda houver, facas, veneno, fogo ou água asfixiante,
então não hei de suportar esse insulto. Oh! se eu tivesse uma prova qualquer!

IAGO - Meu senhor, vejo que a paixão vos corrói. Arrependido me sinto por ter sido a causa disso.
Quereríeis a prova?

OTELO - Quereria, não; quero!

IAGO - Podeis tê-la. De que modo? Como haveis de vos dar por convencido? Aberta a boca, ficareis no
posto de espectador estúpido, no instante em que ela for coberta?

OTELO - Morte e inferno.

IAGO - Quero crer que seria uma tarefa assaz dificultosa convencê-los a se deixarem ver sob esse
aspecto. O demo que os carregue, se possível for a olhar de mortais, tirante o deles, vê-los deitados
juntos. Que me resta para dizer? Que provas posso dar-vos? Não vos será possível ver tal coisa, embora
ardentes fossem como bodes, quentes como macacos, luxuriosos como lobos no cio e tão grosseiros
como o ser mais alvar, quando embriagado. Contudo, vos direi, se alguns indícios, circunstâncias de
peso, que conduzem diretamente à porta da verdade vos deixarem convicto, haveis de tê-las.

OTELO - Dá-me uma prova real de que ela é falsa.

IAGO - Não me agrada esse ofício. Mas já que fui tão longe nesse caso, levado pela honestidade estúpida
e a amizade, tão-só, não me detenho. Passei com Cássio uma das noites últimas; mas por estar sentindo
dor de dentes, não podia dormir. Ora, há pessoas de alma tão largada que no sono revelam seus negócios.
Cássio é dos tais; pois estando a dormir, ouvi quando ele murmurava: "Desdêmona querida, sejamos
cautelosos, encubramos bem nosso amor!" Então, senhor, pegando-me das mãos e as apertando,
suspirava: "Oh criatura adorável!" e beijava-me com tamanho furor, como se os beijos pela raiz colhesse
de meus lábios. Depois, a perna colocou por cima de minha coxa, suspirou, beijou-me de novo e disse:
"Oh fado amaldiçoado, que te foi entregar para esse Mouro!"

OTELO - Oh! Monstruoso! Monstruoso!

IAGO - Mas tudo isso era somente sonho.

OTELO - Sim, mas sonho que experiências passadas nos inculcam; suspeita atroz, embora só de sonhos.

IAGO - E que podem deixar mais consistentes outras provas que tênues ainda se achem.

OTELO - Vou deixá-la em pedaços.

IAGO - Sede cauto; ainda não vimos nada; é bem possível que seja honesta. Ora dizei-me apenas o
seguinte: não vistes porventura na mão de vossa esposa, algumas vezes, um lenço com bordados de
morangos?

OTELO - Dei-lhe um assim; foi meu primeiro mimo.

IAGO - Ignorava esse fato; porém tenho certeza plena de ter hoje visto Cássio passar na barba um lenço
desses, que foi de vossa esposa. OTELO - Se era o mesmo...

IAGO - O mesmo, ou outro qualquer dos lenços dela, é prova muito forte, ao lado de outras.

OTELO - Oh! Se a escrava tivesse dez mil vidas! Uma só será pouco, muito pouco, para minha vingança.
Agora vejo que tudo era verdade.

IAGO, olha aqui: sopro assim para o céu meu amor néscio; já não existe. Negra vingança, surge do oco
inferno! Passa tua coroa, ó amor, e o trono do coração para o ódio mais ferino! Intumesce-te, peito, com
tua carga de línguas de serpentes!

IAGO - Ficai calmo.

OTELO - Oh! Sangue! sangue! sangue!

IAGO -Ficai calmo, torno a dizer; podeis mudar de idéia.

OTELO - Jamais, Iago. Tal como o Ponto Euxino, cuja corrente fria e o forte curso não se ressentem do
refluxo nunca, e seguem sem parar para a Propôntida, para o Helesponto: assim meus pensamentos
sanguinários, com passos furibundos avançam sempre, sem jamais olharem para trás nem refluírem para
o amor, até que uma vingança avassalante e ampla os envolva e absorva.
(Ajoelhando-se.)
Por aquele céu de mármore, empresto a essas palavras a gravidade de um sagrado voto.

IAGO - Não vos levanteis ainda.
(Ajoelha-se.)
Testemunhas me sede, luzes sempiternas do alto; vós, também, elementos, que por todas as partes nos
cingis: Iago dedica as mãos, o coração e todo o espírito ao ultrajado Otelo. Dando ele ordens, por mais
cruéis que sejam, será caso, para mim, de consciência, obedecer-lhe.

OTELO - Agradeço teu voto, não com termos formais, apenas, mas com sentimento de gratidão, estando
decidido a recorrer já aos teus serviços: nestes três dias quero que me digam que Cássio já morreu.

IAGO - Morto está meu amigo; será feita vossa vontade. Mas poupai Desdêmona.

OTELO - Que baixe para o inferno essa lasciva prostituta! Que baixe para o inferno! Fica à parte

comigo; retirar-me desejo, para refletir nalguma modalidade suave de extermínio para esse belo diabo.
Doravante serás o meu tenente.

IAGO - E eu me declaro vosso por toda a vida.
(Saem.)

Cena IV

Diante do castelo. Entram Desdêmona, Emília e o bobo.

DESDÊMONA - Maroto, por acaso sabes onde pousa o tenente Cássio?

BOBO - Não me atrevo a dizer que ele pouse em qualquer parte.

DESDÊMONA - Por quê, homem?

BOBO - Por ser ele soldado; dizer que um soldado pousa, é arriscar-se a ser apunhalado.

DESDÊMONA - Vamos, dize, maroto! Onde ele mora?

BOBO - Se eu vos dissesse onde ele mora, era o mesmo que dizer onde iria pôr o pescoço.

DESDÊMONA - Haverá quem possa entender isso?

BOBO - Não sei onde ele mora; se lhe atribuísse qualquer morada e vos dissesse que ele se deita neste ou
naquele lugar, seria pôr em risco o próprio pescoço.

DESDÊMONA - E não poderias informar-te a esse respeito?

BOBO - Vou catequizar o mundo inteiro a respeito dele, isto é, apresentar perguntas e responder a elas.

DESDÊMONA - Vai procurá-lo e dizer-lhe que venha até aqui. Participa-lhe que eu já deixei meu
marido inclinado a seu favor, e que espero termine tudo bem. BOBO - Semelhante incumbência cai
dentro do âmbito do entendimento humano; por isso vou tentá-la.
(Sai.)

DESDÉMONA - Onde eu deixei aquele lenço, Emília?

EMILLA - Não sei, minha senhora.

DESDÊMONA - Podes crer: preferira ter perdido minha bolsa, repleta de cruzados. Não fosse ter meu
pobre Mouro o espírito estreme de suspeita e das escórias das criaturas ciumentas, essa perda poderia
inspirar-lhe pensamentos de todo maus.

EMÍLIA - Ele não é ciumento?

DESDÊMONA - Quem? Ele? Ao vir ao mundo, estou bem certa, o sol lhe retirou do sangue todos os
humores do ciúme.

EMÍLIA - Ei-lo que chega!

DESDÊMONA - Não o deixarei, enquanto no seu posto não tiver sido Cássio reintegrado.
(Entra Otelo.)

Como passais, senhor?

OTELO - Dai-me essa mão. Úmida está, senhora.

DESDÊMONA - Até este instante, não conheceu velhice nem cuidados.

OTELO - Isso revela desperdício e, em tudo, coração liberal. Umida e quente!

Esses sinais indicam que é preciso cercear a liberdade e, assim, impor-vos jejuns e rezas, pios exercícios
e mortificações, pois um demônio suarento aqui demora, que costuma rebelar-se. A mão tendes muito
boa, muito franca, em verdade.

DESDÊMONA - A vós assiste razão para afirmá-lo, pois foi ela que de meu coração voz fez presente.

OTELO - Mão liberal. Os corações antigos davam mãos; mas a nova ciência heráldica de coração carece;
só tem mãos.

DESDÊMONA - Sobre isso nada entendo. Mas falemos outra vez da promessa.

OTELO - Que promessa, minha pomba?

DESDÊMONA - Mandei recado a Cássio, para vos vir falar.

OTELO - Estou sofrendo de um catarro importuno. Por obséquio, empresta-me teu lenço.

DESDÊMONA - Ei-lo, senhor.

OTELO - Aquele que vos dei.

DESDÊMONA - Não o tenho aqui.

OTELO - Não?

DESDÊMONA - Realmente, senhor.

OTELO - É grande falta. Esse lenço foi dado a minha mãe por uma egípcia. Era uma feiticeira que podia
ler, quase, os pensamentos das pessoas. Disse-lhe, então, que enquanto o conservasse, grata a meu pai
seria, e ao amor dela preso o teria sempre. Mas no caso de perdê-lo ou presente fazer dele, os olhos de
meu pai com repugnância passariam a vê-la e seu espírito correria após outras fantasias. Ao morrer,
minha mãe mo deu de herança, tendo recomendado que, no instante em que o destino me trouxesse
esposa, com ele a presenteasse, o que já fiz. Tomai cuidado, pois, e o tende sempre como jóia tão cara
quanto os olhos. Perdê-lo ou dá-lo a alguém fora desgraça de proporções incríveis.

DESDÊMONA - É possível?

OTELO - É como estou dizendo. Seu tecido contém virtude mágica; por uma sibila que na terra já
contara do sol duzentas voltas foi bordado durante acessos de furor profético. De vermes consagrados
viera o fio, que tinto foi no suco retirado de corações de virgens e habilmente conservado até então.

DESDÊMONA - Realmente! É certo?

OTELO - Mais do que certo. Assim, tomai cuidado.

DESDÊMONA - Quem dera, então, que nunca o houvesse visto!

OTELO - Oh! Por quê?

DESDÊMONA - Por que causa me falais assim brusco e violento?

OTELO - Foi perdido? Como Dizei-me: não podeis achá-lo?

DESDÊMONA - O céu nos abençoe.

OTELO - Que disseste?

DESDÊMONA - Perdido não se encontra. Mas, no caso...

OTELO - Como?

DESDÊMONA - Repito: não está perdido.

OTELO - Então trazei-o aqui; desejo vê-lo.

DESDÊMONA - Ora, senhor; faria, se o quisesse; mas não agora. Vejo que isso é um meio para que eu
não vos faça meu pedido. Por obséquio, chamai de novo Cássio.

OTELO - Ide buscar o lenço; meu espírito pressente algo funesto.

DESDÊMONA - Vamos, vamos; não achareis ninguém mais competente.

OTELO - O lenço!

DESDÊMONA - Por favor, falai de Cássio.

OTELO - O lenço!

DESDÊMONA - Uma pessoa que durante toda a vida fundou sua fortuna. sobre vossa amizade e sempre
esteve nos perigos convosco.

OTELO - O lenço, digo!

DESDÊMONA - Sois digno de censura.

OTELO - Fora! Fora!,
(Sai.)

EMÍLIA - Então este homem não será ciumento?

DESDÊMONA - Nunca o vi assim antes. É certeza conter aquele lenço algo de extraordinário. Desolada
me sinto com sua perda.

EMÍLIA - Nem dois anos são suficientes para conhecermos os homens. São estômago, somente, e nós, os
alimentos. Todos eles nos devoram com ânsia; mas, repletos, nos vomitam. Oh! Cássio e meu marido!
(Entram Iago e Cássio.)

IAGO - Não há outro caminho senão esse ela há de consegui-lo. Oh! Quanta sorte! Insisti junto dela.

DESDÊMONA - Então, bom Cássio, que há de novo convosco?

CÁSSIO - Ainda e sempre, minha senhora, aquele meu pedido. Peço-vos que, por vossa interferência
virtuosa, eu existir outra vez possa, voltando a ser um membro da amizade de quem com todo o coração
venero. Basta de dilações; se minha falta tão mortal se afigura, que os serviços passados, as tristezas do
presente e a determinação de comportar-me melhor para o futuro não conseguem devolver-me a amizade
de meu chefe, que ao menos disso eu possa ter certeza. Já me fizera bem, pois assumira alegria forçada e
me dispunha a aguardar o que a sorte me aprestasse por vias diferentes.

DESDÊMONA - Oh, três vezes amável Cássio! Minha intercessão, neste momento, está desafinada.
Otelo está mudado; não me fora fácil reconhecê-lo, se o caráter alterado tivesse como o rosto. Tão certo
como eu desejar a ajuda dos espíritos do alto, vossa causa foi por mim defendida com carinho, chegando
eu, até mesmo, a transformar-me no alvo do seu desgosto pela minha franqueza de falar. E necessário
mostrardes-vos paciente. Farei quanto me for possível; farei mais, ainda, do que me atreveria em causa
própria. Que isso vos satisfaça por enquanto.

IAGO - O general acaso está irritado?

EMÍLIA - Saiu daqui agora mesmo e, certo, num estado de estranha agitação. IAGO - Ele, irritado? É
incrível. Muitas vezes, muitas, vi o canhão lançar seus homens pelos ares e, como atroz demônio, seu
próprio irmão dos braços arrancar-lhe. Mostrar-se ele irritado? Alguma coisa de grave aconteceu. Vou
procurá-lo. Se está irritado, é que há motivo sério.

DESDÊMONA - Faze isso, por obséquio.
(Sai Iago.)

Algum negócio, certamente, de Estado, ou de Veneza, ou conluio, talvez, aqui de Chipre turvou-lhe o
claro espírito. Em tais casos, da natureza humana é muito próprio irritar-se por coisas despiciendas,
quando se ocupa com razões de peso. É sempre assim. Quando nos dói o dedo, aos membros sãos ele
transmite o incômodo. Não pensemos que os homens sejam deuses; esperar deles não podemos sempre
tratamento de noivos. Mas tens muita razão, Emília, para censurar-me, pois me portei como guerreira
injusta, na alma o acusando de ter sido duro; mas vejo que peitei as testemunhas e o acusei falsamente.

EMÍLIA - Praza aos céus que só sejam, mesmo, assuntos de Estado, como credes, não caprichos nem
veneta de ciúme, que vos digam respeito mui de perto.

DESDÊMONA - Oh dia infausto! Nunca lhe dei motivo para tanto.

EMÍLIA - Mas os ciumentos não atendem a isso; não precisam de causa para o ciúme: têm ciúme, nada
mais. O ciúme é monstro que se gera em si mesmo e de si nasce.

DESDÊMONA - Que o céu proteja o espírito de Otelo de semelhante monstro.

EMÍLIA - Amém, senhora.

DESDÊMONA - Vou procurá-lo. Neste em meio, Cássio, ficai passeando aqui. Se o achar disposto,
pleitearei vossa causa, sem recurso nenhum deixar de lado.

CÁSSIO - Agradecido vos fico humildemente.
(Saem Desdêmona e Emília.)
(Entra Bianca.) BIANCA - Bom dia, amigo Cássio.

CÁSSIO - Que negócios vos tiraram de casa? Como passa minha formosa Bianca? Francamente, caro
amor, ia agora procurar-vos.

BIANCA - E a vossa casa eu também ia, Cássio. Uma semana ausente? Sete dias e sete noites? Cento e
sessenta horas com mais oito de quebra? E horas passadas longe do amante, que mais longas são cento e
sessenta vezes do que as horas do mostrador. Oh cálculo penoso!

CÁSSIO - Bianca, perdão. Todo esse tempo estive premido por preocupações de chumbo. Mas quando
eu dispuser de alguma folga, riscarei essas dívidas da ausência. Querida Bianca,
(Dando-lhe o lenço de Desdêmona.)
tira cópia disto.

BIANCA - De onde veio isto, Cássio? Algum presente, decerto, de outra amiga. Agora entendo o motivo
da ausência tão sentida. Chegamos a esse ponto? Muito bem.

CÁSSIO - Saí daí, mulher! Jogai aos dentes do diabo vossas infernais suspeitas, pois dele as recebestes.
Só ficastes com ciúme por pensardes que é lembrança de alguma amiga. Podeis crer-me, Bianca, juro que
não.

BIANCA - Então, a quem pertence?

CÁSSIO - Não sei, querida; achei-o no meu quarto. Mas gostei do trabalho; e antes que o venham
reclamar - o que certo não demora - quero mandar copiar esse desenho. Levai-o, pois, deixando-me
sozinho.

BIANCA - Deixar-vos? Para quê?

CÁSSIO - Espero aqui o general e penso de nenhuma vantagem ser por ele visto na situação de
amaridado.

BIANCA - E o motivo, senhor?

CÁSSIO - Não é por falta de amor da minha parte.

BIANCA - É só por falta de amor da vossa parte. Por obséquio, acompanhai-me um pouco e declarai-me
se ainda vos verei antes da noite.

CÁSSIO - Não posso acompanhar-vos muito longe, pois neste ponto o espero. Será logo.

BIANCA - Que assim seja; terei de conformar-me.
(Saem.)