Um quarto de dormir, no castelo. Desdêmona dorme, no leito. Uma candeia acesa. Entra Otelo.
OTELO - Esta é a causa, minha alma. Oh! Esta é a causa! Não vo-la nomearei, castas estrelas! Esta é a
causa! Não quero verter sangue, nem ferir-lhe a epiderme ainda mais branca do que neve e mais lisa que
o alabastro. Mas é fatal que morra; do contrário, virá ainda a enganar mais outros homens. Apaga a luz!
Depois... Apaga a luz! Se te apagar, ministro flamejante, poderei restituir-te a luz primeira, se vier a
arrepender-me. Mas extinta que seja tua luz, ó tu, modelo primoroso da excelsa natureza! de onde o fogo
trazer de Prometeu, para dar nova luz à tua chama? Se tua rosa colher, é-me impossível o vital
crescimento restituir-lhe: fatal é que feneça. Vou aspirá-la no próprio galho. (Beija-a.) O hálito aromoso,
que quase a convencer chegaste a própria Justiça a espedaçar a sua espada! Mais um! Mais um! Se assim
ficares, morta, quero tirar-te a vida, e, após, amar-te. Mais outro; será o último; um tão doce jamais foi
tão fatal. Chorar preciso lágrimas impiedosas; é celeste meu sofrimento, pois castiga ao que ama. Vai
acordar!
DESDÊMONA - Quem está aí? Otelo?
OTELO - Sim, Desdêmona.
DESDÊMONA - Não vindes para o leito, meu senhor?
OTELO - Desdêmona, rezastes esta noite?
DESDÊMONA - Oh, decerto, senhor!
OTELO - Se vos lembrardes de alguma falta não perdoada ainda pelo céu e sua graça, cuidai logo de
tê-la redimida.
DESDÊMONA - O meu senhor! Que pretendeis dizer com isso?
OTELO - Bem; fazei o que vos disse e sede breve. Passarei nesse em meio; não desejo trucidar-vos o
espírito manchado. Não pelo céu! Não vos matarei a alma. DESDÊMONA - Quê! Falais em matar?
OTELO - Sim, é isso mesmo.
DESDÊMONA - Então que o céu de mim tenha piedade.
OTELO - Amém, de coração.
DESDÊMONA - Se assim falais, é que não pretendeis matar-me agora.
OTELO - Hum!
DESDÊMONA - Contudo, sinto medo, pois terrível sois sempre, quando revirais os olhos dessa maneira.
A causa desse medo, não sei dizê-lo, pois não sou culpada; porém sinto que tenho muito medo.
OTELO - Pensa nos teus pecados.
DESDÊMONA - Só consistem no amor que vos dedico.
OTELO - Pois por ele vais agora morrer.
DESDÊMONA - É contra a natureza dar a morte a alguém por ter amor. Ah! Por que causa mordeis o
lábio assim? Toda a postura tendes ora abalada, por alguma sanguinária paixão. E mau agouro; contudo
espero, espero que nenhuma ameaça me comine.
OTELO - Paz e aquieta-te.
DESDÊMONA - Estou quieta. Que é que há?
OTELO - O lenço que te dei, que eu tanto amava, a Cássio o deste?
DESDÊMONA - Não, por minha vida, por minha alma, não o dei. Mandai chamá-lo e interrogai-o.
OTELO - Juízo, querida alma, não jures falso, pois estás agora no teu leito de morte.
DESDÊMONA - Sim, no leito, mas não para morrer.
OTELO - Sim, neste instante. Assim, confessa francamente a culpa, pois se com juramentos contestasses
ponto por ponto, em nada isso alterara ou sustara o propósito em que me acho e que gemer me faz. Urge
que morras.
DESDÊMONA - Que Deus de mim se apiade.
OTELO - Digo amém.
DESDÊMONA - Sede também piedoso. Em toda a vida jamais vos ofendi. Nunca amei Cássio, só lhe
tendo dicado essa amizade que o céu permite, e nunca o presenteei.
OTELO - Pelo céu, vi meu lenço na mão dele. Mulher perjura, em pedra me transmudas o coração e o
nome dás de crime ao que eu pensava ser um sacrifício. Vi o lenço! Eu mesmo!
DESDÊMONA - Então, é que ele o achou. Nunca lho dei. Mandai chamá-lo, para vir confessar o que há.
OTELO - Já confessou.
DESDÊMONA - Confessou quê, senhor?
OTELO - Que te possuiu.
DESDÊMONA - Como? Ilicitamente?
OTELO - Sim.
DESDÊMONA - Absurdo! Não dirá isso.
OTELO - Não, porque tapada já tem a boca, pois o honesto Iago tomou suas providências.
DESDÊMONA - Oh! Meu medo tinha razão de ser! Então, morreu?
OTELO - Se seus cabelos todos vivos fossem, minha grande vingança os devorara.
DESDÊMONA - Ai de mim! Foi traído e estou perdida!
OTELO - Sai, prostituta infame! Vais chorá-lo na minha frente?
DESDÊMONA - O meu senhor! Bani-me de vossa vista, mas deixai-me viva.
OTELO - Para trás, prostituta!
DESDÊMONA - Hoje, não; amanhã! Deixai-me viva!
OTELO - Se resistires...
DESDÊMONA - Meia hora apenas.
OTELO - Não há trégua; está feito.
DESDÊMONA - Ó tempo, apenas, de rezar uma vez.
OTELO - É muito tarde.
(Asfixia-a.)
EMÍLIA (dentro) - Senhor! Senhor! Olá Senhor! Senhor!
OTELO - Que ruído é esse? Como! Não morreu? Não morreu de uma vez? Embora eu seja cruel, sou
compassivo. Não desejo causar-te sofrimento prolongado. Asstm... Assim...
EMÍLIA (dentro) - Olá, senhor! Senhor!
OTELO - Quem está aí?
EMÍLIA (dentro) - Senhor, uma palavra convosco, por obséquio.
OTELO - Sim; é Emília... Devagar... Está morta... Com certeza vem me falar de Cássio; fez barulho.
Como! Já não se mexe? Está quieta como uma sepultura... Deixo-a entrar? Seria de vantagem?... Penso
que ainda se mexe um pouco. Não. Que fazer devo? Se eu deixar que entre, há de querer falar com minha
esposa... Que esposa? É o que não tenho. Que hora pesada! Oh coisa insuportável! Fora bem se se desse
um grande eclipse do sol como da lua e que o assustado globo em dois se fendesse a essa mudança.
EMÍLIA (dentro) - Por obséquio, senhor, uma palavra! Ó bondoso senhor! OTELO - Ia esquecendo de ti.
Oh, entra, Emília! Neste instante. - Só o tempo de correr estas cortinas. - Onde estás?
(Abre a porta.)
Que é que tens para dizer-me?
EMÍLIA - O bondoso senhor! Um crime horrível aconteceu lá fora!
OTELO - Como! Agora?
EMÍLIA - Neste momento, meu senhor.
OTELO - É efeito do desvio da lua; ela aproxima-se agora mais da terra do que de hábito, e deixa os
homens loucos.
EMÍLIA - Cássio matou Rodrigo, meu senhor, um moço de Veneza.
OTELO - Quê! Rodrigo foi morto? E Cássio, também morto?
EMÍLIA - Não, não! Cássio não foi morto.
OTELO - Não foi morto? Então está fora de tom a morte e a agradável vingança desafina.
DESDÊMONA - Oh dor! Assassinada injustamente!
EMÍLIA - Que é que há? Que grito é esse?
OTELO - Como? Como?
EMÍLIA - Oh! É a voz da senhora. Aqui! Socorro! O senhora, falai de novo! Doce Desdêmona, falai!
Minha senhora!
DESDÊMONA - Morro, e morro inocente.
EMÍLIA - Oh! Quem fez isso?
DESDÊMONA - Ninguém; eu mesma. Adeus! Faze que sempre de mim se lembre meu querido esposo.
(Morre.)
OTELO - Por que haveria de ter sido morta?
EMÍLIA - Quem poderá sabê-lo?
OTELO - Ouvistes que ela disse que não fui eu.
EMÍLIA - Sim, ela o disse; vou espalhar a verdade.
OTELO - Para as chamas do inferno foi como uma mentirosa: quem a matou fui eu.
EMÍLIA - Tanto mais anjo ela é por isso; e vós, demônio negro.
OTELO - Entregara-se ao vício; era rameira.
EMÍLIA - Não passas de um demônio e caluniá-la.
OTELO - Era falsa como a água.
EMÍLIA - E tu és selvagem como o fogo, dizendo que era falsa. Não! Ela te era fiel celestialmente.
OTELO - Cássio a manchou. Pergunta a teu marido o mais que desejares. Condenado devera eu ser no
ponto mais profundo do inferno, se tivesse procedido dessa maneira sem motivos justos. Teu marido está
a par de tudo o que houve.
EMÍLIA - Meu marido?
OTELO - Sim, teu marido.
EMÍLIA - Que aos seus deveres ela fora falsa?
OTELO - Sim, com Cássio. Se fiel tivesse sido e o céu um mundo diferente houvesse feito de um só
crisólito admirável, não o trocara por ela.
EMÍLIA - Meu marido!
OTELO - Sim, foi ele o primeiro a prevenir-me. E um homem muito honrado e odeia a lama que adere às
ações baixas.
EMÍLIA - Meu marido!
OTELO - Ora, mulher! Por que repetes isso? Teu marido, já disse.
EMÍLIA - Oh, querida ama! Diverte-se com o amor a vilania. Meu marido afirmou que ela era falsa?
OTELO - Sim, mulher; ele mesmo, teu marido. Compreendes o que digo? Teu marido, meu amigo, o
honesto Iago, mais que honesto...
EMÍLIA - Se ele for tal, que sua alma perniciosa meio grão apodreça cada dia. Mentiu conscientemente.
Apaixonada ela estava de sua indigna escolha. OTELO - Ah!
EMÍLIA - Faze o que houver de pior. Tão indigno é do céu este teu feito como és indigno dela.
OTELO - Mais lucraras se te calasses.
EMÍLIA - Não dispões de forca que me faça sofrer nem a metade do que posso agüentar. Ó néscio! Ó
estúpido! Tão ignorante como a própria lama! Cometeste uma ação... Não tenho medo dessa espada! Vou
dar-te a conhecer, embora a perder venha vinte vidas. Socorro! Assassino! Olá! Socorro!
(Entram Montano, Graciano, Iago e outros.)
MQNTANQ- Que é que houve, general? Que aconteceu?
EMÍLIA - O Iago! também viestes? Procedestes otimamente, para que ao pescoço os homens seus delitos
vos atirem.
GRACIANO - De que se trata?
EMÍLIA - Desmente este vilão, se fores homem. Ele afirmou que foi de ti que soube que a esposa lhe era
infiel. Tenho certeza de que não poderias ter dito isso. Não és pulha a esse ponto. Fala logo, que tenho o
coração por demais cheio.
IAGO - Disse-lhe o que pensava, sem que houvesse contado nada além do que ele próprio julgara natural
e verdadeiro.
EMÍLIA - Mas dissestes-lhes que ela fora infiel?
IAGO - Disse.
EMÍLIA - Dissestes uma infâmia odiosa. Por minha alma, ele mente; é um pervertido. Ela, falsa com
Cássio? E assim? Com Cássio?
IAGO - Com Cássio, sim senhora. Retirai-vos daqui e ponde cobro nessa língua. EMÍLIA - Não ponho
cobro em nada, Falar quero. Minha ama ali se encontra, assassinada.
TODOS - Não o permita o céu!
OTELO - Senhores, não vos espanteis; é a pura verdade o que ela disse.
GRACIANO - Muito estranha verdade!
MONTANO - Ato monstruoso!
EMÍLIA - Infâmia, infâmia! Penso nisso, torno a pensar... Suspeito... Oh vilania! Já havia suspeitado.
Vou matar-me só de tristeza. Oh infâmia!
IAGO - Como! Ficastes louca? Retirai-vos para casa, já, já!
EMÍLIA - Caros senhores permiti-me falar. Sei que lhe devo plena obediência; não, porém, agora.
Talvez, Iago, eu não volte para casa.
OTELO - Oh, oh, oh!
(Atira-se sobre o leito.)
EMÍLIA - Sim, rebolca-te e ruge, pois a morte deste à mulher mais inocente e meiga que jamais viu a
luz.
OTELO - Era culpada. Não vos reconheci, meu tio. Vossa sobrinha ali se encontra, cujo alento por estas
mãos foi abafado há pouco.
GRACIANO - Pobre Desdêmona! Por sorte minha, teu pai já faleceu. Este consórcio para ele foi fatal: e
débil fio da vida pela dor teve cortado. Se vivesse, esta vista o levaria, decerto, ao desespero, amaldiçoara
seu anjo tutelar, escorraçando-o de seu lado e, com isso, se perdera.
OTELO - Dá-me pena; mas Iago sabe que ela com Cássio praticou mais de mil vezes o ato impudico.
Cássio o confessou, tendo-lhe ela os trabalhos amorosos recompensado com o penhor e mimo de amor
que, de princípio, eu lhe ofertara: era um lenço, lembrança muito antiga que a minha mãe meu pai
outrora dera.
EMÍLIA - Oh céu! Poderes celestiais!
IAGO - Silêncio! Fica quieta!
EMÍLIA - Preciso dizer tudo! Preciso dizer tudo! Eu, ficar quieta, senhor? De forma alguma. Falar quero
tão livre como o vento. O céu, os homens, todos os diabos, tudo, tudo pode exprobar-me esta ação, mas
falar quero.
IAGO - Sê prudente e retorna para casa.
EMÍLIA - Não vou.
(Iago ameaça ferir Emília.)
GRACIANO - Virar contra a mulher a espada!
EMÍLIA - O Mouro bruto! o lenço de que falas
foi por mim encontrado casualmente e dei-o a meu marido, pois bem vezes com mui séria insistência -
mais, de fato, do que tal ninharia merecia - pedira que o roubasse.
IAGO - Vil rascoa!
EMÍLIA - Ela o ter dado a Cássio? Não! Achei-o e o dei a meu marido.
IAGO - É falso, imunda!
EMÍLIA - Pelo céu, cavalheiros, é a verdade. Oh palhaço assassino! Que haveria de fazer um cretino
rematado com uma mulher tão boa?
OTELO - Por que as pedras todas do céu só servem para o raio? Celerado completo!
(Corre para Iago; Iago apunhala Emília e sai.) GRACIANO - Ela desmaia! Creio que ele matou a própria
esposa.
EMÍLIA - Ai, ai! Deitai-me ao lado de minha ama.
GRACIANO - Fugiu, mas a mulher deixou sem vida.
MONTANO - E um notório vilão. Guardai esta arma que eu ao Mouro tomei. Vigiai a porta, não
deixando que saia. Antes, matai-o. Vou procurar aquele miserável; é um escravo maldito.
(Saem Montano e Graciano.)
OTELO - Já valente não sou; qualquer menino me desarma. Deve a honra viver mais do que a virtude?
Que leve o demo tudo.
EMÍLIA - Que queria, senhora, pressagiar tua cantiga? Vou fazer como o cisne; morro e canto: Oh,
salgueiro, salgueiro! Mouro, ela era casta. Cruel Mouro, ela se amava muito. Assim minha alma seja
salva, como digo a pura verdade. Desse modo falando como penso... morro... morro.
(Morre.)
OTELO - Tenho outra arma no quarto, antiga espada de Espanha, temperada em água fria. Ah! Ei-la!
Tio, abri, para que eu saia.
GRACIANO (dentro) - Se tentares sair, custar-te-á caro. Não tens armas; preciso é, pois, que sofras.
OTELO - Então me olha e me fala; do contrário, embora desarmado, hei de assaltar-te.
(Volta Graciano.)
GRACIANO - Que é que se passa?
OTELO - Vê, tenho outra espada. Melhor do que esta nunca ao lado esteve da coxa de um soldado. Já vi
o dia em que este curto braço e esta boa arma me franqueavam caminho com obstáculos vinte vezes mais
sérios do que os vossos. Mas, oh bravata inútil! Quem o fado dominar pode? Já não é assim, Nada
receies, por me veres de arma. Cheguei ao fim da viagem, esta é a meta, a baliza da minha última vela.
Recuais pálido assim? E medo inútil. Se alguém vier contra Otelo com um caniço, Otelo recuará. Para
onde iria? Que aspecto tens agora, malfadada rapariga? Da cor do teu sudário. Quando nos encontrarmos
para o ajuste de contas, teu olhar há de minha alma precipitar do céu, apoderando-se dela os demônios
logo. Estás gelada, minha menina, tão gelada como tua própria castidade. Oh! maldito, maldito celerado!
Demônios, com açoites expulsai-me da vista desta aparição divina! Entregai-me aos tufões, no enxofre
assai-me, em tanques me lavai de fogo líquido. Oh Desdêmona! Morta! Oh, oh! Desdêmona!
(Entram Ludovico, Montano, Cássio carregado em uma cadeira, e oficiais com Iago, prisioneiro.)
LUDOVICO - Onde está o violento e infeliz homem?
OTELO - Esse que foi Otelo? Aqui me encontro.
LUDOVICO - E onde se encontra a víbora? Trazei-nos esse infame.
OTELO - Prpcuro ver-lhe os pés. Mas não... É pura fábula. Se fores o diabo, não conseguirei matar-te.
(Fere Iago.)
LUDOVICO - Tomai-lhe a espada.
IAGO - Estou ferido, apenas, senhor; mas não morri.
OTELO - Não me aborrece saber isso; é melhor que fiques vivo, pois a morte, a, meu ver, é grã-ventura.
LUDOVICO - O tu, Otelo, que tão bom já foste, como vieste a cair nas artimanhas de um celerado? Que
dirão de ti?
OTELO - O que quiserem. Assassino honrado, se assim vos aprouver, porque fiz tudo pela honra, não
por ódio.
LUDOVICO - Este patife já confessou em parte as vilanias. Mas é verdade, mesmo, que com ele tínheis
prçmeditado matar Cássio?
OTELO - É...
CÁSSIO - Meu general, eu nunca vos fiz nada.
OTELO - Disso estou certo e peço-vos perdão. Perguntai, por favor, a este demônio porque a alma e o
corpo me enleou a tal ponto.
IAGO - Não me pergunteis nada; o que sabeis, já sabeis. Não direi, de agora em diante, nem mais uma
palavra.
LUDOVICO - Quê! Nem mesmo para rezar?
GRACIANO - Haveis de abrir a boca no banco de tormentos.
OTELO - Sim, faze isso.
LUDOVICO - Ireis saber agora tudo o que houve, senhor, o que decerto ainda ignorais. Esta carta se
achava num dos bolsos do corpo de Rodrigo. Aqui está outra. Numa delas se lê que deveria Rodrigo
matar Cássio.
OTELO - Oh, miserável!
CÁSSIO - Bárbaro a todo ponto e repulsivo.
LUDOVICO - Esta outra carta cheia de censuras também estava num dos bolsos dele. Parece que
Rodrigo pretendia enviá-la a este malvado; mas decerto nesse em meio ele deu-lhe explicações.
OTELO - Oh biltre pernicioso! De que modo, Cássio, vos foi parar às mãos o lenço de minha esposa?
CÁSSIO - Achei-o no meu quarto, e o próprio Iago confessou, há pouco, que ali o jogara, tendo em vista
um plano que muito lhe importava.
OTELO - Oh! Tolo, tolo!
CÁSSIO - Lêem-se também na carta de Rodrigo censuras dele a Iago por havê-lo forçado a provocar-me,
quando estávamos de guarda, o que me fez perder meu posto. E agora mesmo, tendo de si voltado, depois
de estar por morto, declarou-nos que Iago o ferira e que por ele mesmo tinha sido instigado.
LUDOVICO - Forçoso é que deixeis este aposento, para virdes conosco. Do comando já fostes
destituído. Agora é Cássio quem manda em Chipre. Quanto a este bandido, se houver algum tormento
prolongado que o faça durar muito, será dele. Ficareis como nosso prisioneiro, até que o Estado de
Veneza tome conhecimento do que aqui fizestes. Vamos! levai-o logo!
OTELO - Docemente! Uma palavra ou duas antes de irdes. Prestei alguns serviços à República, o que é
sabido. Mas sobre isso, basta. Peço-vos por favor que em vossas cartas, ao relatardes estes tristes fatos,
faleis de mim tal como sou, realmente, sem exagero algum, mas sem malícia. Então a alguém tereis de
referir-vos que amou bastante, embora sem prudência; a alguém que não sabia ser ciumento, mas,
excitado, cometeu excessos, e cuja mão, tal como o vil judeu, jogou fora uma pérola mais rica do que
toda sua tribo; a alguém com olhos vencidos e que embora pouco usados aos sentimentos moles, maior
número de gotas derramaram do que as árvores da Arábia fazer soem com sua goma medicinal.
Contai-lhes isso tudo. E também que em Alepo, certo dia, um turco de turbante e malicioso bateu num
veneziano e em termos baixos falou do Estado, e que eu, pela garganta detendo aquele cão circuncidado,
o feri deste modo, assim... assim...
(Apunhala-se.)
LUDOVICO - Oh conclusão sangrenta!
GRACIANO - Foi inútil tudo quanto dissemos.
OTELO - Dei-te um beijo antes de te matar. Só me restava
(Caindo sobre o corpo de Desdêmona.)
morrer beijando a quem eu tanto amara.
(Morre.)
CÁSSIO - Receava isso mesmo; mas sem armas julgava que estivesse. Era pessoa de grande coração.
LUDOVICO (a Iago) - O cão de Esparta, mais cruel que a fome, a angústia e o próprio oceano!
Contempla nesse leito o fardo trágico. É tua obra. Envenena a vista o quadro. Tapemo-lo. Graciano, a
casa, agora, vos pertence; guardai os bens do Mouro, pois sois o herdeiro dele. A vós compete, senhor
governador, dar o castigo a este biltre infernal. Marcai o dia, o lugar e a tortura. Oh! rigorosa! De bordo
escreverei para o senado, relatando tudo isto, angustiado.
(Saem.)