Compartilhe

ANTONIO E CLEOPATRA, ATO I, Cena IV

Roma. Um quarto em casa de César. Entram Otávio César, Lépido e criados.

CÉSAR - Lépido, podeis ver e, doravante, sabendo ficareis que não é vício próprio de César odiar o nosso grande competidor. De Alexandria são estas as notícias: ele pesca, bebe e consome as lâmpadas da noite em contínuas orgias; não se mostra mais viril do que Cleópatra, nem esta - viúva de Ptolomeu - efeminada também é mais do que é ele. Raramente dá audiência ou condescende em recordar-se de que ainda tem colegas. Nele vedes um indivíduo que os defeitos todos dos homens compendia.

LÉPIDO - A convencer-me não chego de que possa haver defeitos bastantes para obnubilar-lhe os traços nativos de bondade. Nele as faltas são como as manchas que no céu se vêem, no contraste das trevas mais terríveis, que ele mudar não pode, sendo força seguir-lhes o pendor.

CÉSAR - Sois indulgente por demais. Admitamos que não haja grande mal em no tálamo deitar-se de Ptolomeu, em dar um reino em troco de uma pilhéria, em se sentar ao lado de um escravo e beber com ele à roda, cambalear pelas ruas a desoras e trocar socos com qualquer labrego que fede a suor... Dizei-me que isso lhe orna - conquanto deva ser muito estranhável a natureza que não sai manchada de semelhantes atos. - Mas é certo que não se justifica dos defeitos, porque sobre nós pesa todo o fardo de sua leviandade. Se o ócio ele enche com a volúpia, terá de justar contas com a saciedade e a consumpção dos ossos. Mas malgastar o tempo que o desperta dos prazeres com toques de rebate, e que tão alto como a nós. lhe fala do dever a cumprir, é revelar-se merecedor de justa reprimenda, como criança de saber maduro que por fugaz prazer empenha todas as lições do passado e se rebela contra a própria razão. (Entra um mensageiro.)

LÉPIDO - Mais novidades.

MENSAGEIRO - Executadas foram tuas ordens, ó muito nobre César. De hora em hora novas receberás do que se passa lá por longe. Pompeu domina os mares, parecendo que é amado por aqueles que só temiam César. Para os portos os descontentes correm, comentando todos que ele sofreu grande injustiça.

CÉSAR - Fácil me fora tal coisa ter previsto. Ensina-nos a história desde o início do tempo que quem é, só e querido até chegar a ser, e que a pessoa que se acha no declínio e que não fora prezada enquanto digna era de sê-lo, grata se torna por estar ausente. Essa turba sem nome se assemelha aos sargaços que bóiam na corrente, sem direção nenhuma, servos sempre da variável maré e que com o próprio movimento se esfazem.

MENSAGEIRO - César, trago-te a nova de que Menas e Menécrates, corsos de alto valor, o mar obrigam a obedecer-lhes, que com muitas quilhas eles lavram, abrindo fundos sulcos. Feros assaltos dão por toda a Itália; os moradores da orla ficam pálidos só de pensar em tal; a mocidade valorosa se insurge. Nenhum barco pode sair do porto; sendo visto, tomado é incontinenti, pois só o nome de Pompeu pode mais do que sua própria campanha organizada.

CÉSAR - Antônio, deixa teus banquetes lascivos! Quando, há tempo, foste expulso de Módena por teres morto Hirto e Pansa, cônsules, a fome seguiu-te os calcanhares. Mas lutaste com ela, muito embora sempre vida tivesses dissipada, revelando resistência maior que a de um selvagem. Urina de cavalo então bebeste e o charco cintilante que refugam os próprios animais. Não desdenhava teu paladar o mais azedo fruto das mais silvestres sebes. Como o cervo, quando a neve recobre todo o pasto, chegaste a roer das árvores a casca. Nos Alpes, dizem, de uma carne estranha te alimentaste que causava a muitos a morte só de ver. E todas essas privações - a lembrança delas a honra te açoita neste instante - suportaste-as como brioso soldado, de tal modo que nem murchas as faces te ficaram.

LÉPIDO - Dá pena.

CÉSAR - Que depressa o chame a Roma seu próprio brio, pois é mais que tempo de na campanha aparecermos juntos. Para esse fim reunamos o conselho. Lucra Pompeu com nossa ociosidade. LÉPIDO - Amanhã, César, poderei dizer-vos com segurança até que ponto chegam minhas forças de mar e terra para fazer face à presente situação.


CÉSAR - Até nos vermos, vou fazer o mesmo. Adeus.

LÉPIDO - Adeus, senhor. O que souberdes sobre as desordens que se dão lá fora, far-me-eis grande obséquio revelando-mas.

CÉSAR - Ficai tranqüilo, meu senhor, sobre isso; conheço meu dever. (Saem.)