William Shakespeare, Sonho de uma noite de verão,ATO IV,Cena II
Atenas, um quarto em casa de Quince. Entram Quince, Flauta, Snout e Starveling.
QUINCE - Mandastes alguém à casa de Bottom? Ele já voltou para casa?
STARVELING - Não há notícias dele; decerto foi levado para alguma parte.
FLAUTA - Se ele não voltar, ficará estragada a comédia; não poderá ser representada, não é verdade?
QUINCE - De jeito nenhum; em toda Atenas não tendes ninguém como ele para fazer o papel de Píramo.
FLAUTA - É a pura verdade; ele é simplesmente o maior engenho dos artesãos de Atenas.
QUINCE - E a melhor pessoa, também; quanto à doçura da voz, é um verdadeiro fenício.
FLAUTA - "Fênix", homem é o que quereis dizer! Fenício - Deus nos acuda! - não é coisa nenhuma.
(Entra Snug.)
SNUG - Mestres, o duque vem vindo do templo, onde casaram, juntamente com ele, mais três senhores e
três senhoras. Se nossa peça não houvesse ficado apenas em ensaio, seríamos hoje gente grande.
FLAUTA - Oh, o nosso valente Bottom! Desse modo ele perde uma renda vitalícia de seis pences por
dia. Sim, não poderia deixar de ganhar seis pences por dia. Quero que me enforquem, se o duque não lhe
desse seis pences diários pela representação de Píramo. É o que ele merecia para representar Píramo: ou
seis pences por dia, ou nada.
(Entra Bottom.)
BOTTOM - Onde estão os rapazes? Onde estão esses corações?
QUINCE - Bottom! Oh dia corajoso! Que hora felicíssima!
BOTTOM - Mestres, tenho coisas maravilhosas para vos contar, mas não me pergunteis nada, porque se
eu vo-las referisse, não seria um ateniense da gema. Hei de vos contar tudo, tintim por tintim, exatamente
como se passou.
QUINCE - Conta-nos o que houve, amável Bottom.
BOTTOM - Não direi uma só palavra. Tudo o que vos posso dizer é que o duque já jantou. Ide buscar as
roupas, ponde bons atacadores nas barbas e fitas novas nos escarpins. Reunamo-nos no palácio; que
todos repassem os seus papéis, porque, para dizer tudo em poucas palavras, a nossa peça foi a preferida.
Em todo o caso, que Tisbe se apresente de roupa limpa, o que tiver de fazer o papel de leão não deve
cortar as unhas, a fim de parecerem garras. Finalmente, meus caros atores, será conveniente não
comerdes alho nem cebola, pois será preciso que exalemos um doce alento, não tendo eu dúvida de que
todos vão achar a nossa comédia muito doce. E agora nem mais uma palavra. Adiante! Marchai!
Adiante!
(Saem.)
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ATO IV,Cena II
William Shakespeare - Textos, Poesias e Frases:
casa,
duque,
flauta,
palavra,
Sonho de uma noite de verão
ATO V,Cena II
William Shakespeare, Sonho de uma noite de verão,ATO V,Cena II
Entra Puck.
PUCK - Ruge o leão a cada passo, uiva o lobo para a lua, ressona o campônio lasso, deslembrado da
charrua. Consomem-se na lareira as últimas acendalhas; o pio da ave agoureira fala ao doente em
mortalhas. Nesta hora da noite escura as pobres almas andejas se esgueiram da sepultura rumando para as
igrejas. Nós, os elfos, que a parelha de Hécate sempre seguimos, e da luz do sol, vermelha, como num
sonho, fugimos, de guarda estamos agora. Nenhum rato, em qualquer hora, a paz deixe perturbada desta
casa abençoada. Com vassoura eu vim na frente para limpar o batente e jogar nesta hora morta todo o pó
atrás da porta.
(Entram Oberon, Titânia e séqüito.)
OBERON - Por tudo a luz espalhai do quase extinto carvão. Elfos e fadas, dançai, aproveitando o clarão,
e, seguindo o meu caminho, cantai comigo baixinho.
TITÂNIA - Aprendei, primeiro, a toada com letra bem cadenciada; depois, com graça, dancemos e esta
casa abençoemos.
(Cantam e dançam.)
OBERON - Enquanto a aurora se atrasa, rondai todos esta casa, que ao tálamo principal vou lançar a
bênção real. Sua prole numerosa será sempre venturosa. Os três casais que aqui estão em concórdia
viverão; seus filhos não serão presa das manchas da Natureza. Beiço de lebre, sinais e outros defeitos que
tais, que deixam triste o aleijão, seus filhos nunca terão. Com orvalho consagrado cada elfo cumpra o
recado, este palácio abençoando e paz por tudo espalhando. Jamais caia em abandono, feliz seja sempre o
dono. Mãos à obra, agora, sem mais demora! Ide ver-me antes da aurora.
(Saem Oberon, Titânia e séqüito.)
PUCK - Se vos causamos enfado por sermos sombras, azado plano sugiro: é pensar que estivestes a
sonhar; foi tudo mera visão no correr desta sessão. Senhoras e cavalheiros, não vos mostreis zombeteiros;
se me quiserdes perdoar, melhor coisa hei de vos dar. Puck eu sou, honesto e bravo; se eu puder fugir do
agravo da língua má da serpente, vereis que Puck não mente. Liberto, assim, dos apodos, eu digo
boa-noite a todos. Se a mão me derdes, agora, vai Robim, alegre, embora.
(Sai.)
Entra Puck.
PUCK - Ruge o leão a cada passo, uiva o lobo para a lua, ressona o campônio lasso, deslembrado da
charrua. Consomem-se na lareira as últimas acendalhas; o pio da ave agoureira fala ao doente em
mortalhas. Nesta hora da noite escura as pobres almas andejas se esgueiram da sepultura rumando para as
igrejas. Nós, os elfos, que a parelha de Hécate sempre seguimos, e da luz do sol, vermelha, como num
sonho, fugimos, de guarda estamos agora. Nenhum rato, em qualquer hora, a paz deixe perturbada desta
casa abençoada. Com vassoura eu vim na frente para limpar o batente e jogar nesta hora morta todo o pó
atrás da porta.
(Entram Oberon, Titânia e séqüito.)
OBERON - Por tudo a luz espalhai do quase extinto carvão. Elfos e fadas, dançai, aproveitando o clarão,
e, seguindo o meu caminho, cantai comigo baixinho.
TITÂNIA - Aprendei, primeiro, a toada com letra bem cadenciada; depois, com graça, dancemos e esta
casa abençoemos.
(Cantam e dançam.)
OBERON - Enquanto a aurora se atrasa, rondai todos esta casa, que ao tálamo principal vou lançar a
bênção real. Sua prole numerosa será sempre venturosa. Os três casais que aqui estão em concórdia
viverão; seus filhos não serão presa das manchas da Natureza. Beiço de lebre, sinais e outros defeitos que
tais, que deixam triste o aleijão, seus filhos nunca terão. Com orvalho consagrado cada elfo cumpra o
recado, este palácio abençoando e paz por tudo espalhando. Jamais caia em abandono, feliz seja sempre o
dono. Mãos à obra, agora, sem mais demora! Ide ver-me antes da aurora.
(Saem Oberon, Titânia e séqüito.)
PUCK - Se vos causamos enfado por sermos sombras, azado plano sugiro: é pensar que estivestes a
sonhar; foi tudo mera visão no correr desta sessão. Senhoras e cavalheiros, não vos mostreis zombeteiros;
se me quiserdes perdoar, melhor coisa hei de vos dar. Puck eu sou, honesto e bravo; se eu puder fugir do
agravo da língua má da serpente, vereis que Puck não mente. Liberto, assim, dos apodos, eu digo
boa-noite a todos. Se a mão me derdes, agora, vai Robim, alegre, embora.
(Sai.)
ROMEU E JULIETA
Romeo and Juliet - William Shakespeare
PERSONAGENS
ESCALO, Príncipe de Verona.
PÁRIS, jovem nobre, parente do príncipe.
MONTECCHIO, chefe de uma das casa rivais.
CAPULETO, chefe de uma das casa rivais.
Um tio de Capuleto.
ROMEU, filho de Montecchio.
MERCÚCIO, parente do príncipe,(amigo de Romeu).
BENVÓLIO, sobrinho de Montecchio,(amigo de Romeu).
TEBALDO, sobrinho da senhora Capuleto.
FREI LOURENÇO, franciscano.
FREI JOÃO, da mesma Ordem.
BALTASAR, criado de Romeu.
SANSÃO,criado de Capuleto
GREGÓRIO, criado de Capuleto.
PEDRO, criado da ama de Julieta.
ABRAÃO, criado de Montecchio.
Um boticário.
Três músicos.
Pajem de Mercúcio; pajem de Párís; outro pajem; o oficial.
SENHORA MONTECCHIO, esposa de Montecchio.
SENHORA CAPULETO, esposa de Capuleto.
JULIETA, filha de Capuleto.
AMA de Julieta.
Coro.
PERSONAGENS
ESCALO, Príncipe de Verona.
PÁRIS, jovem nobre, parente do príncipe.
MONTECCHIO, chefe de uma das casa rivais.
CAPULETO, chefe de uma das casa rivais.
Um tio de Capuleto.
ROMEU, filho de Montecchio.
MERCÚCIO, parente do príncipe,(amigo de Romeu).
BENVÓLIO, sobrinho de Montecchio,(amigo de Romeu).
TEBALDO, sobrinho da senhora Capuleto.
FREI LOURENÇO, franciscano.
FREI JOÃO, da mesma Ordem.
BALTASAR, criado de Romeu.
SANSÃO,criado de Capuleto
GREGÓRIO, criado de Capuleto.
PEDRO, criado da ama de Julieta.
ABRAÃO, criado de Montecchio.
Um boticário.
Três músicos.
Pajem de Mercúcio; pajem de Párís; outro pajem; o oficial.
SENHORA MONTECCHIO, esposa de Montecchio.
SENHORA CAPULETO, esposa de Capuleto.
JULIETA, filha de Capuleto.
AMA de Julieta.
Coro.
ROMEU E JULIETA, ATO I, Cena I
Verona. Uma praça pública. Entram Sansão e Gregório, armados de espada e broquel.
SANSÃO - Por minha palavra, Gregório: não devemos levar desaforo para casa.
GREGÓRIO - É certo; para não ficarmos desaforados.
SANSÃO - O que quero dizer é que quando eu fico encolerizado puxo logo da espada.
GREGÓRIO - Sim, mas se. quiseres viver, toma cuidado para não ficares encolarinhado.
SANSÃO - Quando me irritam, eu ataco prontamente.
GREGÓRIO - Mas não te irritas prontamente para atacar.
SANSÃO - Até um cachorro da casa dos Montecchios me deixa irritado.
GREGÓRIO - Ficar irritado é pôr-se em movimento, e ser valente é estacar. Logo, se ficares irritado,
pôr-te-ás a correr.
SANSÃO - Um cachorro daquela casa me fará fazer pé firme. Encostar-me-ei na parede contra qualquer
homem ou rapariga da casa de Montecchio.
GREGÓRIO - Isso prova que não passas de um escravo fraco, porque o mais fraco é que se encosta à
parede.
SANSÃO - É certo; é por isso que as mulheres, como vasilhas mais fracas, são sempre encostadas à
parede. Por isso, afastarei da parede os homens de Montecchio e encostarei nela as raparigas.
GREGÓRIO - A pendência é entre nossos amos e nós, seus servidores.
SANSÃO - Pouco importa; hei de revelar-me tirano: depois de lutar com os homens, serei cruel com as
raparigas; arranharei a pele de todas as virgens.
GREGÓRIO - Corno! A pele de todas as virgens?
SANSÃO - Perfeitamente; a pele de todas as virgens, ou sua pele de virgem. Interpreta isso no sentido
que quiseres.
GREGÓRIO - As que o sentirem, que o interpretem no seu verdadeiro sentido.
SANSÃO - A mim elas terão de sentir, enquanto eu for capaz de resistir, pois bem sabes que sou um belo
pedaço de carne.
GREGÓRJO - É bom que não sejas peixe; porque se o fosses, não passarias de bacalhau. Vamos; arranca
teus instrumentos, que ai vêm vindo dois da casa de Montecchio.
(Entram Abraão e Baltasar.)
SANSÃO - Minha arma nua já está fora; briga tu que eu defenderei tuas costas.
GREGÓRIO - Como assim? Viras as costas e corres?
SANSÃO - Não tenhas medo de mim.
GREGÓRIO - Ora essa! Eu, ter medo de ti?
SANSÃO - Fiquemos com a lei do nosso lado; eles que principiem.
GREGÓRIO - Vou franzir o rosto, quando passar por eles; e eles que interpretem isso corno entenderem.
SANSÃO - Não; como ousarem. Vou morder o polegar, o que para eles será desonroso, no caso de não
retrucarem.
ABRAÃO - É para nós que estais mordendo o polegar. senhor?
SANSÃO - Estou mordendo o polegar, senhor.
ABRAÃO - É para nós que mordeis o polegar, senhor?
SANSÃO - (à parte, a Gregório) - Se eu disser que sim, ficaremos com a lei de nosso lado?
GREGÓRIO -
(à parte, a Sansão)
- Não.
SANSÃO - Não, senhor; não é para vós que estou mordendo o polegar; mas estou mordendo o polegar,
senhor.
GREGÓRIO - Estais querendo brigar, senhor?
ABRAÂO - Eu, senhor, querendo brigar? Não, senhor.
SANSÃO - Porque, se o quiserdes, senhor, estou às vossas ordens; sirvo a um senhor tão bom quanto o
vosso.
ABRAÃO - Porém não melhor.
SANSÃO - Perfeitamente, senhor.
GREGÓRIO (à parte, a Sansão) - Dize "melhor"; aí vem vindo um parente de nosso amo.
SANSÃO - Sim, senhor: melhor.
ABRAÃO - Estais mentindo.
SANSÃO - Desembainhai, se fordes homem! Gregório, não te esqueças de teu bote de fundo.
(Batem-se.)
(Entra Benvólio.)
BENVÓLIO - Loucos, parai com isso! Guardai vossas espadas. Não sabeis o que fazeis.
(Entra Tebaldo.)
TEBALDO - Corno! Sacas da espada contra uns pobres corçozinhos sem força? Aqui, Benvólio! Vem
encarar a morte!
BENVÓLIO - Procurava separar esta gente. Guarda a espada e me ajuda a acalmá-los.
TEBALDO - Como! Falas em paz e a espada arrancas? Tão grande ódio tenho a esse termo corno ao
próprio inferno, a todos os Montecchios e a ti mesmo. Defende-te, covarde!
(Batem-se.)
(Entram partidários das duas casas, que se misturam com os combatentes; depois entram cidadãos,
armados de paus e partasanas.)
CIDADÃOS - Varas e partasanas! Derrubai-os! Descei o pau! Abaixo os Capuletos! Fora os
Montecchios!
(Entra Capuleto, de roupão de dormir, e a Senhora Capuleto.)
CAPULETO -Que barulho é esse? Minha espada comprida! Ide buscá-la! Olá
SENHORA CAPULETO - Muletas, isso sim: muletas! Por que pedir espada?
CAPULETO - A espada! digo. Chega o velho Montecchio e brande a lâmina, para fazer-me acinte.
(Entram Montecchio e a Senhora Montecchio.)
MONTECCHIO - Capuleto, Vilão!... Deixai! Tem de se haver comigo.
SENHORA MONTECCHIO - Não darás um só passo para o imigo.
(Entra o príncipe com seu séqüito.)
PRÍNCIPE - Súditos revoltosos, inimigos da paz, que profanais vossas espadas no sangue dos vizinhos...
Quê! Não ouvem? Olá, senhores, animais selvagens que as chamas apagais de vossa fúria perniciosa na
fonte purpurina de vossas próprias veias Sob ameaça de tortura, jogai das mãos sangrentas as armas para
o mal, só, temperadas, e a sentença escutai de vosso príncipe irritado. Três vezes essas lutas civis,
nascidas de palavras aéreas, por tua causa, velho Capuleto, por ti, Montecchio, a paz de nossas ruas três
vezes perturbaram. Os provectos cidadãos de Verona, despojando-se das vestes graves que tão bem os
ornam, nas velhas mãos lanças antigas brandem, vosso ódio enferrujado. Se de novo vierdes a perturbar
nossa cidade, pela quebrada paz dareis as vidas. Por agora, que todos se retirem. Vós, Capuleto, seguireis
comigo, e vós Montecchio, à tarde ireis à velha Cidade-franca, à corte da Justiça, para conhecimento,
assim, tomardes de quanto resolvermos sobre o caso. Já! Sob pena de morte, dispersai-vos!
(Saem todos, com exceção de Montecchio, a senhora Montecchio e Benvólio.)
MONTECCHIO - Quem reavivou esta querela antiga? Sobrinho, dize: onde te achavas na hora?
BENVÓLIO - Antes de eu vir aqui já se encontravam em luta engalfinhados vossos homens e os de
vosso inimigo. Tencionando separá-los, saquei de minha espada. Nesse instante, porém, chegou o ardente
Tebaldo, espada em punho, que, soprando-me desafios sem conta, não parava de voltear a arma em torno
da cabeça, cortando, assim, os ventos que, de nada molestados com isso, só faziam assobiar para ele com
desprezo. Enquanto revidávamos os botes e as estocadas, foi chegando gente que aumentou o furor de
ambas as partes, até que o duque separasse as partes.
SENHORA MONTECCHIO - Oh! E onde está Romeu? Sabes, acaso? Alegra-me não vê-lo neste caso.
BENVÓLIO - Uma hora antes de haver o sol sagrado cortado as franjas de ouro do nascente, senhora, me
levou o inquieto espírito a fazer um passeio lá por fora, onde à sombra de um bosque de sicômoros que
se estende para oeste da cidade vi vosso filho a andar, que madrugara. Dirigi-me para ele; mas,
havendo-me pressentido, esgueirou-se para a sombra mais densa do arvoredo. Eu, que seu íntimo medira
pelo meu, que mais procura justamente onde nada achar consegue, demais já sendo para mim eu próprio,
meu capricho segui, deixando o dele, e de grado evitei quem me evitava.
MONTECCHIO - Muitas manhãs tem ele sido visto nesse bosque, a aumentar com suas lágrimas o
orvalho matutino e acrescentando com seus suspiros fundos novas nuvens às nuvens existentes. Porém
logo que principia o sol, que tudo alegra, a abrir- no este longínquo o véu sombroso do tálamo da Aurora,
da luz foge meu filho atribulado, recolhendo-se a casa, onde se fecha no seu quarto. cerra as janelas, a luz
clara expulsa, e noite artificial, assim, prepara. Poderá acabar mal todo esse enliço, se não for afastada a
causa disso.
BENVÓLIO - Meu nobre tio, conheceis a causa?
MONTECCHIO - Não, nem consigo saber dele nada.
BENVÓLIO - Acaso já insististes junto dele?
MONTECCHIO - Não só eu, como alguns amigos nossos. Mas ele confidente de suas próprias
inclinações - ignoro até que ponto verdadeiro se mostra - tão discreto consigo mesmo é sempre e tão
distante de se deixar sondar e patentear-se corno o botão que o verme escuro morde antes que no ar
ostente as doces folhas e a formosura à luz do sol dedique. Se a causa eu conhecesse da tristeza
deixá-lo-ia curado, isso é certeza.
BENVÓLIO - Ei-lo que chega. Ponde-vos de lado; há de falar-me ou se mostrar zangado.
MONTECCHIO - Oh! Quem dera que o ouvisses, em boa hora, em confissão! Vamos, madame, embora.
(Saem Montecchio e a senhora.)
(Entra Romeu.)
BENVÓLIO - Bom dia, primo.
ROMEU - Como assim! Já é dia?
BENVÓLIO - São nove horas.
ROMEU - A dor é um tardo guia. Não foi meu pai que se afastou com pressa?
BENVÓLIO - Perfeitamente; mas que dor as horas retarda de Romeu?
ROMEU - Não ter aquilo que, se o tivesse, as deixaria curtas.
BENVÓLIO - No amor?
ROMEU - Fora...
BENVÓLIO - Do amor?
ROMEU - Fora do amor de quem me traz cativo.
BENVÓLIO - Ah! que aparência tenha amor tão branda, mas, de fato, seja áspero e tirano
ROMEU - Ah! que, apesar da venda, amor consiga descobrir seus caminhos sem fadiga. Onde iremos
comer? Oh! que batalha por aqui houve? Mas não contes nada, que já soube de tudo. O ódio dá muito
trabalho por aqui; mas mais, o amor. Então, amor brigão! Ó ódio amoroso! És tudo, sim; do nada toste
criado desde o princípio. Leviandade grave, vaidade séria, caos imano e informe de belas aparências,
chumbo leve, fumaça luminosa, chama fria. saúde doente, sono sempre esperto, que não é nunca o que é.
Eis aí o amor que eu sinto e que me causa apenas dor. Não queres rir?
BENVÓLIO - Não, primo; chorar quero.
ROMEU - Por quê, bondoso amigo?
BENVÓLIO - Por ver que tens opresso o coração.
ROMEU - Do amor é sempre assim a transgressão. As dores próprias pesam-me no peito; mas agora
redobras-lhes o efeito com mostrares as tuas; o tormento que revelaste, ao meu deu mais alento. O amor é
dos suspiros a fumaça; puro, é fogo que os olhos ameaça; revolto, um mar de lágrimas de amantes... Que
mais será? Loucura temperada, fel ingrato, doçura refinada. Adeus, primo.
(Faz menção de retirar-se.)
BENVÓLIO - Mais calma; irei também; se me deixardes não procedeis bem.
ROMEU - Ora, já me perdi. Não sou Romeu. Esse está longe. Está não sei bem onde.
BENVÓLIO - Dizei-me seriamente a quem amais.
ROMEU - Como! Precisarei gemer o tempo todo que te falar?
BENVÓLIO - Gemer? Oh, não! Mas dizer, em verdade, quem seja ela.
ROMEU - Mandai fazer o doente o testamento.
Que idéia triste para o desalento! Primo, em verdade: adoro uma mulher.
BENVÓLIO - Acertado também nesse alvo eu tinha, ao vos imaginar apaixonado.
ROMEU - Ótimo atirador! E ela é formosa.
BENVÓLIO - Primo, acertar assim é grande dita.
ROMEU - Nisso vos enganais. Ela é catita. A seta de Cupido não cogita de bater nela. Sábia como
Diana, a castidade é sua soberana. Do arco gentil do amor está amparada e, assim, da lenga-lenga
apaixonada. Resistir pode a todos os assaltos dos olhares morteiros, não chegando nunca a cair-lhe no
regaço a chuva de ouro que os próprios santos tem vencido. Oh! é rica em beleza, mais que bela, porque
a beleza morrerá com ela.
BENVÓLIO - Então jurou que sempre há de ser casta?
ROMEU - Jurou; e sua avareza tão nefasta grandes estragos fez, pois a beleza com tal severidade, de
fraqueza quase veio a morrer, tendo ficado sem prole alguma. Incrível atentado! É muito bela e sábia,
sabiamente formosa para estar sempre contente com me fazer sofrer. Fez juramento de não amar jamais,
um só momento. E nesse voto infausto eu vivo morto só de a todos contar meu desconforto.
BENVÓLIO - Por mim guiar te deixes nisso: esquece-a
ROMEU - Oh! A esquecer-me ensina o pensamento.
BENVÓLIO - Dá liberdade aos olhos; examina outras belezas.
ROMEU - Esse é o meio certo de mais consciente me tornar ainda de sua formosura em tudo rara. Essas
felizes máscaras que as frontes beijam das jovens belas, sendo pretas pensar nos fazem que a beleza
escondem. Quem chegou a cegar, jamais se esquece da jóia rara que perdeu com a vista. Mostrai-me uma
mulher de inexcedível formosura; para algo servir pode, senão de sugestão para que eu leia quem a
excedeu em tanta formosura? Não, nunca hás de ensinar-me o esquecimento.
BENVÓLIO - Hei de nisso empregar o meu talento.
(Saem.)
SANSÃO - Por minha palavra, Gregório: não devemos levar desaforo para casa.
GREGÓRIO - É certo; para não ficarmos desaforados.
SANSÃO - O que quero dizer é que quando eu fico encolerizado puxo logo da espada.
GREGÓRIO - Sim, mas se. quiseres viver, toma cuidado para não ficares encolarinhado.
SANSÃO - Quando me irritam, eu ataco prontamente.
GREGÓRIO - Mas não te irritas prontamente para atacar.
SANSÃO - Até um cachorro da casa dos Montecchios me deixa irritado.
GREGÓRIO - Ficar irritado é pôr-se em movimento, e ser valente é estacar. Logo, se ficares irritado,
pôr-te-ás a correr.
SANSÃO - Um cachorro daquela casa me fará fazer pé firme. Encostar-me-ei na parede contra qualquer
homem ou rapariga da casa de Montecchio.
GREGÓRIO - Isso prova que não passas de um escravo fraco, porque o mais fraco é que se encosta à
parede.
SANSÃO - É certo; é por isso que as mulheres, como vasilhas mais fracas, são sempre encostadas à
parede. Por isso, afastarei da parede os homens de Montecchio e encostarei nela as raparigas.
GREGÓRIO - A pendência é entre nossos amos e nós, seus servidores.
SANSÃO - Pouco importa; hei de revelar-me tirano: depois de lutar com os homens, serei cruel com as
raparigas; arranharei a pele de todas as virgens.
GREGÓRIO - Corno! A pele de todas as virgens?
SANSÃO - Perfeitamente; a pele de todas as virgens, ou sua pele de virgem. Interpreta isso no sentido
que quiseres.
GREGÓRIO - As que o sentirem, que o interpretem no seu verdadeiro sentido.
SANSÃO - A mim elas terão de sentir, enquanto eu for capaz de resistir, pois bem sabes que sou um belo
pedaço de carne.
GREGÓRJO - É bom que não sejas peixe; porque se o fosses, não passarias de bacalhau. Vamos; arranca
teus instrumentos, que ai vêm vindo dois da casa de Montecchio.
(Entram Abraão e Baltasar.)
SANSÃO - Minha arma nua já está fora; briga tu que eu defenderei tuas costas.
GREGÓRIO - Como assim? Viras as costas e corres?
SANSÃO - Não tenhas medo de mim.
GREGÓRIO - Ora essa! Eu, ter medo de ti?
SANSÃO - Fiquemos com a lei do nosso lado; eles que principiem.
GREGÓRIO - Vou franzir o rosto, quando passar por eles; e eles que interpretem isso corno entenderem.
SANSÃO - Não; como ousarem. Vou morder o polegar, o que para eles será desonroso, no caso de não
retrucarem.
ABRAÃO - É para nós que estais mordendo o polegar. senhor?
SANSÃO - Estou mordendo o polegar, senhor.
ABRAÃO - É para nós que mordeis o polegar, senhor?
SANSÃO - (à parte, a Gregório) - Se eu disser que sim, ficaremos com a lei de nosso lado?
GREGÓRIO -
(à parte, a Sansão)
- Não.
SANSÃO - Não, senhor; não é para vós que estou mordendo o polegar; mas estou mordendo o polegar,
senhor.
GREGÓRIO - Estais querendo brigar, senhor?
ABRAÂO - Eu, senhor, querendo brigar? Não, senhor.
SANSÃO - Porque, se o quiserdes, senhor, estou às vossas ordens; sirvo a um senhor tão bom quanto o
vosso.
ABRAÃO - Porém não melhor.
SANSÃO - Perfeitamente, senhor.
GREGÓRIO (à parte, a Sansão) - Dize "melhor"; aí vem vindo um parente de nosso amo.
SANSÃO - Sim, senhor: melhor.
ABRAÃO - Estais mentindo.
SANSÃO - Desembainhai, se fordes homem! Gregório, não te esqueças de teu bote de fundo.
(Batem-se.)
(Entra Benvólio.)
BENVÓLIO - Loucos, parai com isso! Guardai vossas espadas. Não sabeis o que fazeis.
(Entra Tebaldo.)
TEBALDO - Corno! Sacas da espada contra uns pobres corçozinhos sem força? Aqui, Benvólio! Vem
encarar a morte!
BENVÓLIO - Procurava separar esta gente. Guarda a espada e me ajuda a acalmá-los.
TEBALDO - Como! Falas em paz e a espada arrancas? Tão grande ódio tenho a esse termo corno ao
próprio inferno, a todos os Montecchios e a ti mesmo. Defende-te, covarde!
(Batem-se.)
(Entram partidários das duas casas, que se misturam com os combatentes; depois entram cidadãos,
armados de paus e partasanas.)
CIDADÃOS - Varas e partasanas! Derrubai-os! Descei o pau! Abaixo os Capuletos! Fora os
Montecchios!
(Entra Capuleto, de roupão de dormir, e a Senhora Capuleto.)
CAPULETO -Que barulho é esse? Minha espada comprida! Ide buscá-la! Olá
SENHORA CAPULETO - Muletas, isso sim: muletas! Por que pedir espada?
CAPULETO - A espada! digo. Chega o velho Montecchio e brande a lâmina, para fazer-me acinte.
(Entram Montecchio e a Senhora Montecchio.)
MONTECCHIO - Capuleto, Vilão!... Deixai! Tem de se haver comigo.
SENHORA MONTECCHIO - Não darás um só passo para o imigo.
(Entra o príncipe com seu séqüito.)
PRÍNCIPE - Súditos revoltosos, inimigos da paz, que profanais vossas espadas no sangue dos vizinhos...
Quê! Não ouvem? Olá, senhores, animais selvagens que as chamas apagais de vossa fúria perniciosa na
fonte purpurina de vossas próprias veias Sob ameaça de tortura, jogai das mãos sangrentas as armas para
o mal, só, temperadas, e a sentença escutai de vosso príncipe irritado. Três vezes essas lutas civis,
nascidas de palavras aéreas, por tua causa, velho Capuleto, por ti, Montecchio, a paz de nossas ruas três
vezes perturbaram. Os provectos cidadãos de Verona, despojando-se das vestes graves que tão bem os
ornam, nas velhas mãos lanças antigas brandem, vosso ódio enferrujado. Se de novo vierdes a perturbar
nossa cidade, pela quebrada paz dareis as vidas. Por agora, que todos se retirem. Vós, Capuleto, seguireis
comigo, e vós Montecchio, à tarde ireis à velha Cidade-franca, à corte da Justiça, para conhecimento,
assim, tomardes de quanto resolvermos sobre o caso. Já! Sob pena de morte, dispersai-vos!
(Saem todos, com exceção de Montecchio, a senhora Montecchio e Benvólio.)
MONTECCHIO - Quem reavivou esta querela antiga? Sobrinho, dize: onde te achavas na hora?
BENVÓLIO - Antes de eu vir aqui já se encontravam em luta engalfinhados vossos homens e os de
vosso inimigo. Tencionando separá-los, saquei de minha espada. Nesse instante, porém, chegou o ardente
Tebaldo, espada em punho, que, soprando-me desafios sem conta, não parava de voltear a arma em torno
da cabeça, cortando, assim, os ventos que, de nada molestados com isso, só faziam assobiar para ele com
desprezo. Enquanto revidávamos os botes e as estocadas, foi chegando gente que aumentou o furor de
ambas as partes, até que o duque separasse as partes.
SENHORA MONTECCHIO - Oh! E onde está Romeu? Sabes, acaso? Alegra-me não vê-lo neste caso.
BENVÓLIO - Uma hora antes de haver o sol sagrado cortado as franjas de ouro do nascente, senhora, me
levou o inquieto espírito a fazer um passeio lá por fora, onde à sombra de um bosque de sicômoros que
se estende para oeste da cidade vi vosso filho a andar, que madrugara. Dirigi-me para ele; mas,
havendo-me pressentido, esgueirou-se para a sombra mais densa do arvoredo. Eu, que seu íntimo medira
pelo meu, que mais procura justamente onde nada achar consegue, demais já sendo para mim eu próprio,
meu capricho segui, deixando o dele, e de grado evitei quem me evitava.
MONTECCHIO - Muitas manhãs tem ele sido visto nesse bosque, a aumentar com suas lágrimas o
orvalho matutino e acrescentando com seus suspiros fundos novas nuvens às nuvens existentes. Porém
logo que principia o sol, que tudo alegra, a abrir- no este longínquo o véu sombroso do tálamo da Aurora,
da luz foge meu filho atribulado, recolhendo-se a casa, onde se fecha no seu quarto. cerra as janelas, a luz
clara expulsa, e noite artificial, assim, prepara. Poderá acabar mal todo esse enliço, se não for afastada a
causa disso.
BENVÓLIO - Meu nobre tio, conheceis a causa?
MONTECCHIO - Não, nem consigo saber dele nada.
BENVÓLIO - Acaso já insististes junto dele?
MONTECCHIO - Não só eu, como alguns amigos nossos. Mas ele confidente de suas próprias
inclinações - ignoro até que ponto verdadeiro se mostra - tão discreto consigo mesmo é sempre e tão
distante de se deixar sondar e patentear-se corno o botão que o verme escuro morde antes que no ar
ostente as doces folhas e a formosura à luz do sol dedique. Se a causa eu conhecesse da tristeza
deixá-lo-ia curado, isso é certeza.
BENVÓLIO - Ei-lo que chega. Ponde-vos de lado; há de falar-me ou se mostrar zangado.
MONTECCHIO - Oh! Quem dera que o ouvisses, em boa hora, em confissão! Vamos, madame, embora.
(Saem Montecchio e a senhora.)
(Entra Romeu.)
BENVÓLIO - Bom dia, primo.
ROMEU - Como assim! Já é dia?
BENVÓLIO - São nove horas.
ROMEU - A dor é um tardo guia. Não foi meu pai que se afastou com pressa?
BENVÓLIO - Perfeitamente; mas que dor as horas retarda de Romeu?
ROMEU - Não ter aquilo que, se o tivesse, as deixaria curtas.
BENVÓLIO - No amor?
ROMEU - Fora...
BENVÓLIO - Do amor?
ROMEU - Fora do amor de quem me traz cativo.
BENVÓLIO - Ah! que aparência tenha amor tão branda, mas, de fato, seja áspero e tirano
ROMEU - Ah! que, apesar da venda, amor consiga descobrir seus caminhos sem fadiga. Onde iremos
comer? Oh! que batalha por aqui houve? Mas não contes nada, que já soube de tudo. O ódio dá muito
trabalho por aqui; mas mais, o amor. Então, amor brigão! Ó ódio amoroso! És tudo, sim; do nada toste
criado desde o princípio. Leviandade grave, vaidade séria, caos imano e informe de belas aparências,
chumbo leve, fumaça luminosa, chama fria. saúde doente, sono sempre esperto, que não é nunca o que é.
Eis aí o amor que eu sinto e que me causa apenas dor. Não queres rir?
BENVÓLIO - Não, primo; chorar quero.
ROMEU - Por quê, bondoso amigo?
BENVÓLIO - Por ver que tens opresso o coração.
ROMEU - Do amor é sempre assim a transgressão. As dores próprias pesam-me no peito; mas agora
redobras-lhes o efeito com mostrares as tuas; o tormento que revelaste, ao meu deu mais alento. O amor é
dos suspiros a fumaça; puro, é fogo que os olhos ameaça; revolto, um mar de lágrimas de amantes... Que
mais será? Loucura temperada, fel ingrato, doçura refinada. Adeus, primo.
(Faz menção de retirar-se.)
BENVÓLIO - Mais calma; irei também; se me deixardes não procedeis bem.
ROMEU - Ora, já me perdi. Não sou Romeu. Esse está longe. Está não sei bem onde.
BENVÓLIO - Dizei-me seriamente a quem amais.
ROMEU - Como! Precisarei gemer o tempo todo que te falar?
BENVÓLIO - Gemer? Oh, não! Mas dizer, em verdade, quem seja ela.
ROMEU - Mandai fazer o doente o testamento.
Que idéia triste para o desalento! Primo, em verdade: adoro uma mulher.
BENVÓLIO - Acertado também nesse alvo eu tinha, ao vos imaginar apaixonado.
ROMEU - Ótimo atirador! E ela é formosa.
BENVÓLIO - Primo, acertar assim é grande dita.
ROMEU - Nisso vos enganais. Ela é catita. A seta de Cupido não cogita de bater nela. Sábia como
Diana, a castidade é sua soberana. Do arco gentil do amor está amparada e, assim, da lenga-lenga
apaixonada. Resistir pode a todos os assaltos dos olhares morteiros, não chegando nunca a cair-lhe no
regaço a chuva de ouro que os próprios santos tem vencido. Oh! é rica em beleza, mais que bela, porque
a beleza morrerá com ela.
BENVÓLIO - Então jurou que sempre há de ser casta?
ROMEU - Jurou; e sua avareza tão nefasta grandes estragos fez, pois a beleza com tal severidade, de
fraqueza quase veio a morrer, tendo ficado sem prole alguma. Incrível atentado! É muito bela e sábia,
sabiamente formosa para estar sempre contente com me fazer sofrer. Fez juramento de não amar jamais,
um só momento. E nesse voto infausto eu vivo morto só de a todos contar meu desconforto.
BENVÓLIO - Por mim guiar te deixes nisso: esquece-a
ROMEU - Oh! A esquecer-me ensina o pensamento.
BENVÓLIO - Dá liberdade aos olhos; examina outras belezas.
ROMEU - Esse é o meio certo de mais consciente me tornar ainda de sua formosura em tudo rara. Essas
felizes máscaras que as frontes beijam das jovens belas, sendo pretas pensar nos fazem que a beleza
escondem. Quem chegou a cegar, jamais se esquece da jóia rara que perdeu com a vista. Mostrai-me uma
mulher de inexcedível formosura; para algo servir pode, senão de sugestão para que eu leia quem a
excedeu em tanta formosura? Não, nunca hás de ensinar-me o esquecimento.
BENVÓLIO - Hei de nisso empregar o meu talento.
(Saem.)
ROMEU E JULIETA, ATO I, Cena II
O mesmo. Uma rua. Entram Capuleto, Páris e um criado.
CAPULETO - Tanto eu como Montecchio recebemos igual penalidade. Corno velhos em paz viver não
nos será difícil.
PÁRIS - Ambos gozais de altíssimo conceito, sendo de lastimar que há tanto tempo vivais em desavença.
Mas agora, milorde, que dizeis de meu pedido?
CAPULETO - Repito o que já disse. Minha filha ainda é uma estrangeira neste mundo; mal o curso
notou de quatorze anos. De dois estios murchará o orgulho, sem que ouçamos das núpcias o barulho.
PÁRIS - Mães venturosas já são muitas outras jovens mais moças ainda.
CAPULETO - As que começam antes do tempo, também morrem cedo. Todas as minhas esperanças
foram tragadas pela terra; somente essa me resta, herdeira grata do que tenho. Mas meu Páris gentil, falai
com ela; nisso, minha vontade uma parcela, tão-só, do seu querer. Sendo do gosto dela, no mesmo ponto
estou disposto a dar, alegre, o meu consentimento. Seguindo agora o velho regimento, darei hoje uma
festa de alegria para a qual convidei a companhia de pessoas amigas. Vós, também, sendo mais um,
fazeis, como ninguém, jus ao convite. Completai a lista, sem ser preciso que eu sobre isso insista. Em
minha pobre casa heis de irradiantes estrelas hoje ver, que, mui galantes, da terra lançam luz ao céu
sombrio. A sensação que tem o homem sadio, quando abril ataviado segue os passos do coxo inverno,
trêmulos e lassos, em casa hoje heis de ter, no mesmo instante em que virdes o bando deslumbrante de
botões femininos. Sede atento para todas, mostrai contentamento com a que vos parecer mais bem
prendada. Entre muitas, também, examinada minha filha há de ser, que embora possa ter mérito, a
nenhuma fará mossa. Vinde comigo.
(Entrega um papel a um dos criados.)
Olá, rapaz! Depressa corre a bela Verona e os nomes dessa lista procura, a todos anunciando que hoje
terão de minha casa o marido.
(Saem Capuleto e Páris.)
CRIADO - Procurar os donos dos nomes desta lista! Está escrito que o sapateiro se ocupará com sua
jarda, o alfaiate com suas formas, o pescador com seu pincel, o pintor com suas redes. Mas a mim me
incumbem de procurar os donos dos nomes escritos aqui, sem que eu jamais possa encontrar os nomes
anotados pela pessoa que escreveu isto. Tenho de procurar gente instruída. Oh! Em boa hora!
(Entram Benvólio e Romeu.)
BENVÓLIO - Ora, rapaz! Incêndio a incêndio cura. Uma dor faz minguar a mais antiga. Desvirar do
virar sara a tontura. Um desespero a velha dor mitiga. Deixa os olhos pegar nova infecção, porque da
velha possas ficar são.
ROMEU - Vossa folha de plátano para isso fora excelente.
BENVÓLIO - Para quê, amigo?
ROMEU - Para perna quebrada.
BENVÓLIO -- Estás maluco, Romeu?
ROMEU - Maluco? Não; mas mais atado do que um louco furioso; encarcerado, morto de fome,
chibateado, posto no banco de tormento e... Salve, amigo
CRIADO - Deus vos salve, senhor. Por obséquio, senhor, sabeis ler?
ROMEU - Sei, sim; minha miséria e a própria sorte.
CRIADO - Talvez tivésseis aprendido isso sem o auxilio de livros. Mas, por obséquio, sereis capaz de ler
tudo o que virdes?
ROMEU - Sou, se souber a língua e vir o escrito.
CRIADO - Falais com honestidade. Passai bem.
(Faz menção de retirar-se.)
ROMEU - Espera aí, rapaz; sei ler. "Signior Martino, sua esposa e filhas; o conde Anselmo com suas
encantadoras irmãs; a senhora viúva de Vitrúvio; signior Placêncio e suas amáveis sobrinhas; Mercúcio e
seu irmão Valentino; meu tio Capuleto, sua esposa e filhas; minha linda sobrinha Rosalina; Lívia: o
signior Valêncio com seu primo Tebaldo; Lúcio e a encantadora Helena." Belo conjunto. Onde é que será
isso?
CRIADO - Lá em cima.
ROMEU - Onde?
CRIADO - Na ceia em nossa casa.
ROMEU - Casa de quem?
CRIADO - Do meu amo.
ROMEU - Com efeito; é o que eu deveria ter perguntado em primeiro lugar.
CRIADO - Mas vou dizer-vos, sem que mo pergunteis. Meu amo é o grande e rico Capuleto, e se não
fordes da casa dos Montecchios, peço-vos que também vades esvaziar uma taça de vinho. Prossegui
alegre.
(Sai.)
BENVÓLIO - Nessa tradicional festividade de Capuleto vai cear a tua formosa Rosalina, juntamente
com as demais beldades de Verona. Vai também, e com olhos imparciais compara o rosto dela com o de
quantas eu te mostrar por lá, que sem estorvo, verás teu cisne transformado em corvo.
ROMEU - Se meus olhos devotos falsidade tão grande sustentarem, que em fogueira de suas lágrimas
morra sem piedade, como hereges passíveis de cegueira. Mais linda que ela! Nunca o sol radiante no
mundo todo viu tão bela amante.
BENVÓLIO - Pesaste-a nos dois pratos da balança de teus olhos, sem outra vizinhança. Mas sopesa nos
pratos de cristal tua beldade e outra qualquer vestal que eu te mostrar brilhante nessa festa, e logo a tua te
será indigesta.
ROMEU - Irei; não para ver tal resplendor, mas para me ofuscar em meu amor.
(Saem.)
CAPULETO - Tanto eu como Montecchio recebemos igual penalidade. Corno velhos em paz viver não
nos será difícil.
PÁRIS - Ambos gozais de altíssimo conceito, sendo de lastimar que há tanto tempo vivais em desavença.
Mas agora, milorde, que dizeis de meu pedido?
CAPULETO - Repito o que já disse. Minha filha ainda é uma estrangeira neste mundo; mal o curso
notou de quatorze anos. De dois estios murchará o orgulho, sem que ouçamos das núpcias o barulho.
PÁRIS - Mães venturosas já são muitas outras jovens mais moças ainda.
CAPULETO - As que começam antes do tempo, também morrem cedo. Todas as minhas esperanças
foram tragadas pela terra; somente essa me resta, herdeira grata do que tenho. Mas meu Páris gentil, falai
com ela; nisso, minha vontade uma parcela, tão-só, do seu querer. Sendo do gosto dela, no mesmo ponto
estou disposto a dar, alegre, o meu consentimento. Seguindo agora o velho regimento, darei hoje uma
festa de alegria para a qual convidei a companhia de pessoas amigas. Vós, também, sendo mais um,
fazeis, como ninguém, jus ao convite. Completai a lista, sem ser preciso que eu sobre isso insista. Em
minha pobre casa heis de irradiantes estrelas hoje ver, que, mui galantes, da terra lançam luz ao céu
sombrio. A sensação que tem o homem sadio, quando abril ataviado segue os passos do coxo inverno,
trêmulos e lassos, em casa hoje heis de ter, no mesmo instante em que virdes o bando deslumbrante de
botões femininos. Sede atento para todas, mostrai contentamento com a que vos parecer mais bem
prendada. Entre muitas, também, examinada minha filha há de ser, que embora possa ter mérito, a
nenhuma fará mossa. Vinde comigo.
(Entrega um papel a um dos criados.)
Olá, rapaz! Depressa corre a bela Verona e os nomes dessa lista procura, a todos anunciando que hoje
terão de minha casa o marido.
(Saem Capuleto e Páris.)
CRIADO - Procurar os donos dos nomes desta lista! Está escrito que o sapateiro se ocupará com sua
jarda, o alfaiate com suas formas, o pescador com seu pincel, o pintor com suas redes. Mas a mim me
incumbem de procurar os donos dos nomes escritos aqui, sem que eu jamais possa encontrar os nomes
anotados pela pessoa que escreveu isto. Tenho de procurar gente instruída. Oh! Em boa hora!
(Entram Benvólio e Romeu.)
BENVÓLIO - Ora, rapaz! Incêndio a incêndio cura. Uma dor faz minguar a mais antiga. Desvirar do
virar sara a tontura. Um desespero a velha dor mitiga. Deixa os olhos pegar nova infecção, porque da
velha possas ficar são.
ROMEU - Vossa folha de plátano para isso fora excelente.
BENVÓLIO - Para quê, amigo?
ROMEU - Para perna quebrada.
BENVÓLIO -- Estás maluco, Romeu?
ROMEU - Maluco? Não; mas mais atado do que um louco furioso; encarcerado, morto de fome,
chibateado, posto no banco de tormento e... Salve, amigo
CRIADO - Deus vos salve, senhor. Por obséquio, senhor, sabeis ler?
ROMEU - Sei, sim; minha miséria e a própria sorte.
CRIADO - Talvez tivésseis aprendido isso sem o auxilio de livros. Mas, por obséquio, sereis capaz de ler
tudo o que virdes?
ROMEU - Sou, se souber a língua e vir o escrito.
CRIADO - Falais com honestidade. Passai bem.
(Faz menção de retirar-se.)
ROMEU - Espera aí, rapaz; sei ler. "Signior Martino, sua esposa e filhas; o conde Anselmo com suas
encantadoras irmãs; a senhora viúva de Vitrúvio; signior Placêncio e suas amáveis sobrinhas; Mercúcio e
seu irmão Valentino; meu tio Capuleto, sua esposa e filhas; minha linda sobrinha Rosalina; Lívia: o
signior Valêncio com seu primo Tebaldo; Lúcio e a encantadora Helena." Belo conjunto. Onde é que será
isso?
CRIADO - Lá em cima.
ROMEU - Onde?
CRIADO - Na ceia em nossa casa.
ROMEU - Casa de quem?
CRIADO - Do meu amo.
ROMEU - Com efeito; é o que eu deveria ter perguntado em primeiro lugar.
CRIADO - Mas vou dizer-vos, sem que mo pergunteis. Meu amo é o grande e rico Capuleto, e se não
fordes da casa dos Montecchios, peço-vos que também vades esvaziar uma taça de vinho. Prossegui
alegre.
(Sai.)
BENVÓLIO - Nessa tradicional festividade de Capuleto vai cear a tua formosa Rosalina, juntamente
com as demais beldades de Verona. Vai também, e com olhos imparciais compara o rosto dela com o de
quantas eu te mostrar por lá, que sem estorvo, verás teu cisne transformado em corvo.
ROMEU - Se meus olhos devotos falsidade tão grande sustentarem, que em fogueira de suas lágrimas
morra sem piedade, como hereges passíveis de cegueira. Mais linda que ela! Nunca o sol radiante no
mundo todo viu tão bela amante.
BENVÓLIO - Pesaste-a nos dois pratos da balança de teus olhos, sem outra vizinhança. Mas sopesa nos
pratos de cristal tua beldade e outra qualquer vestal que eu te mostrar brilhante nessa festa, e logo a tua te
será indigesta.
ROMEU - Irei; não para ver tal resplendor, mas para me ofuscar em meu amor.
(Saem.)
ROMEU E JULIETA, ATO I, Cena V
O mesmo. Um salão em casa de Capuleto. Músicos esperam. Entram criados.
PRIMEIRO CRIADO - Onde está o Caçarola, que não vem ajudar a tirar a mesa? Aquele troca-pratos!
Olá, Raspa-pratos!
SEGUNDO CRIADO - Retira esses tamboretes, arrasta o aparador. Cuidado com a baixela! Amigo,
separa para mim um pedaço de massapão. E se me tens amizade, dize ao porteiro que deixe entrar Nell e
Susana Grindstone. Antônio! Caçarola!
TERCEIRO CRIADO - Aqui, rapaz! Estamos prontos.
PRIMEIRO CRIADO - Estão vos chamando, estão vos procurando, reclamam vossa presença na sala
grande.
TERCEIRO CRIADO - Não podemos estar aqui e lá ao mesmo tempo.
SEGUNDO CRIADO - Alegria, rapazes! Ficai lépidos pelo menos uma vez na vida. Quem viver mais
tempo, ficará com tudo.
(Afastam-se para o fundo.)
(Entram Capuleto, Julieta e outras pessoas da casa, que se encontram com hóspedes e mascarados.)
CAPULETO - Cavalheiros, bem-vindos. As senhoras que não sofrerem no dedão de calos hão de dançar
convosco. Olá, senhoras! Qual de vós há de agora recusar-se a dar uma voltinha? A que mimosa se
mostrar por demais, faço uma aposta em como terá calos. Como! Agora ficamos juntos? Sede aqui
bem-vindos, meus senhores! Já vi também os dias em que punha uma máscara e sabia cochichar uma ou
duas palavrinhas nuns ouvidos bonitos. E agradavam! Mas já lá vai o tempo... Tudo passa. Sois
bem-vindos, senhores. Vinde, músicos! Tocai logo! Licença! Abri caminho... Com licença! Meninas,
ligeireza!
(Música e dança.)
Mais luz, marotos! Arrastai as mesas e apagai esse fogo, que está muito quente aqui dentro. Ah! essas
brincadeiras inesperadas chegam sempre a tempo. Sim, sentai-vos, sentai-vos, caro primo Capuleto; nós
dois já não estamos na idade de dançar. Há quanto tempo deixamos de pôr máscara?
SEGUNDO CAPULETO -- Trinta anos, pela Virgem; trinta anos.
CAPULETO - Como, primo! Não, não faz tanto tempo; é muita coisa. Foi desde o casamento de
Lucêncio. Venha quando quiser o Pentecostes, serão vinte e cinco anos.... Nós, de máscara...
SEGUNDO CAPULETO - Muito mais! Muito mais! O filho dele, senhor, tem mais idade; tem trinta
anos.
CAPULETO - Que dizeis! Pois se esse filho dele há uns dois anos maior não era ainda!
ROMEU - Que dama é aquela que enriquece o braço daquele cavalheiro?
CRIADO - Desconheço-a, meu senhor.
ROMEU - Oh! ela ensina a tocha a ser luzente. Dir-se-ia que da face está pendente da noite, tal qual jóia
mui preciosa da orelha de uma etíope mimosa. Bela demais para o uso, muito cara para a vida terrena.
Como clara pomba ao lado de gralhas tagarelas, anda no meio das demais donzelas. Vou procurá-la, ao
terminar a dança porque a esta rude mão possa dar ansa de tocar nela e, assim, ficar bendita. Meu
coração, até hoje, teve a dita de conhecer o amor? Oh! que simpleza! Nunca soube até agora o que é
beleza.
TEBALDO - Pela voz este aqui é algum Montecchio. Rapaz, vai buscar logo minha espada. Como! Esse
escravo atreve-se a, com máscara grotesca, vir aqui, para de nossa festividade rir e fazer pouco? Pela
honra do meu sangue e nobre estado, dar-lhe a morte não julgo ser pecado.
CAPULETO - Que tens, sobrinho? Que se dá contigo?
TEBALDO - Tio, aquele é um Montecchio, nosso imigo; um vilão que aqui entrou por zombaria, para
nos estragar toda a alegria.
CAPULETO - Não é o jovem Romeu?
TEBALDO - O mesmo, o biltre Romeu.
CAPULETO - Gentil sobrinho, fica quieto; deixa-o tranqüilo. Ele se tem mostrado perfeito
gentil-homem. Para ser-te franco, Verona tem orgulho dele, como rapaz virtuoso e mui polido. Nem por
toda a riqueza da cidade quisera que ele aqui fosse ofendido. Acalma-te, portanto, e fica alegre; essa é a
minha vontade. Se a acatares, fica alegre e desfaze essa carranca que não vai bem com nossa alacridade.
TEBALDO - Vai, sim, quando um vilão se mete nela. Não o suporto.
CAPULETO - Terás de suportá-lo. Como, rapaz! Estou mandando: deixa-o! Quem manda aqui, acaso;
vós ou eu? Ora, não o suportais! Deus me salve a alma. Quereis fazer barulho entre meus hóspedes?
Provocar briga? Ser mandão na festa?
TEBALDO - Mas, tio, é vergonhoso...
CAPULETO - Ide, ide. Sois petulante, não? Prejudicar-vos ainda pode esta história. Sei de tudo.
Procurais contrariar-me? Eis o momento. - Muito bem, corações! - Sois um fedelho. Ide acalmar-vos -
Luz! Mais luz! - Que opróbrio! Já vou deixar-vos quieto. - Assim, meus caros! Alegria! Alegria!
TEBALDO - A paciência e o furor, equilibrados, inativos me deixam com seus brados. Vou sair; mas o
intruso que hoje é mel, será amanhã o mais amargo fel.
(Sai.)
ROMEU - (a Julieta) - Se minha mão profana o relicário em remissão aceito a penitência: meu lábio,
peregrino solitário, demonstrará, com sobra, reverência.
JULIETA - Ofendeis vossa mão, bom peregrino, que se mostrou devota e reverente. Nas mãos dos santos
pega o paladino. Esse é o beijo mais santo e conveniente.
ROMEU - Os santos e os devotos não têm boca?
JULIETA - Sim, peregrino, só para orações.
ROMEU - Deixai, então, ó santa! que esta boca mostre o caminho certo aos corações.
JULIETA - Sem se mexer, o santo exalça o voto.
ROMEU - Então fica quietinha: eis o devoto. Em tua boca me limpo dos pecados.
(Beija-a.)
JULIETA - Que passaram, assim, para meus lábios.
ROMEU - Pecados meus? Oh! Quero-os retornados. Devolve-mos.
JULIETA - Beijais tal qual os sábios.
AMA - Vossa mãe quer falar-vos, senhorita.
ROMEU - Quem é a mãe dela?
AMA -.Ora essa, cavalheiro! A dona desta casa, certamente, uma digna senhora, honesta e sábia.
Amamentei-lhe a filha, a senhorita com que falastes. E uma coisa eu digo, com certeza: quem vier a
desposá-la, ficará cheio de ouro.
ROMEU - É Capuleto? Oh conta cara! Minha vida é dívida de hoje em diante no livro do inimigo.
BENVÓLIO - A festa já acabou; vamos embora.
ROMEU - Acabou? Para mim começa agora.
CAPULETO - Não, cavalheiros, não saiais tão cedo; ainda teremos uma ceiazinha. Mas partis mesmo? A
todos, obrigado. Muito obrigado, honesto cavalheiro. Boa noite. - Trazei-me aqui mais tochas! Sendo
assim, vou deitar-me. É certo, amigo: já está ficando tarde. Vou deitar-me.
(Saem todos, com exceção de Julieta e a ama.)
JULIETA - Ama, quem é aquele gentil-homem?
AMA - Herdeiro e filho de Tibério, o velho.
JULIETA - E aquele que ora passa pela porta?
AMA - Se não me engano, é o filho de Petrucchio.
JULIETA - E aquele que ali vai, que não dançou?
AMA - Não sei quem seja.
JULIETA - Então vai perguntar-lhe como se chama. Vai! Se for casado, um túmulo será todo o meu
fado.
AMA - Romeu é o nome dele; é um dos Montecchios, filho único do vosso grande imigo.
JULIETA - Como do amor a inimizade me arde! Desconhecido e asnado muito tarde. Como esse
monstro, o amor, brinca comigo: apaixonada ver-me do inimigo!
AMA - Como assim? Como assim?
JULIETA - Isso é uma rima que aprender fui com quem dancei há pouco.
AMA - Já vamos! Um momento! - Está na hora; já se foram os hóspedes embora.
(Saem.)
PRÓLOGO
(Entra o coro.)
CORO - Moribundo se encontra o antigo afeto, querendo o novo amor ser seu herdeiro; da beldade fatal
o externo aspecto frente a Julieta é monstro verdadeiro. Ama Romeu, sendo também amado. Cada um
nos olhos do outro acha feitiço; queixa-se ele do imigo proclamado; na mais pungente dor cria ela viço.
Sendo inimigo, acesso junto dela não obtém ele para suas juras; nem ela sabe, como, com cautela, lhe
poderá dizer palavras puras. Mas o amor, em tamanha extremidade. sabe fazer da dor felicidade.
PRIMEIRO CRIADO - Onde está o Caçarola, que não vem ajudar a tirar a mesa? Aquele troca-pratos!
Olá, Raspa-pratos!
SEGUNDO CRIADO - Retira esses tamboretes, arrasta o aparador. Cuidado com a baixela! Amigo,
separa para mim um pedaço de massapão. E se me tens amizade, dize ao porteiro que deixe entrar Nell e
Susana Grindstone. Antônio! Caçarola!
TERCEIRO CRIADO - Aqui, rapaz! Estamos prontos.
PRIMEIRO CRIADO - Estão vos chamando, estão vos procurando, reclamam vossa presença na sala
grande.
TERCEIRO CRIADO - Não podemos estar aqui e lá ao mesmo tempo.
SEGUNDO CRIADO - Alegria, rapazes! Ficai lépidos pelo menos uma vez na vida. Quem viver mais
tempo, ficará com tudo.
(Afastam-se para o fundo.)
(Entram Capuleto, Julieta e outras pessoas da casa, que se encontram com hóspedes e mascarados.)
CAPULETO - Cavalheiros, bem-vindos. As senhoras que não sofrerem no dedão de calos hão de dançar
convosco. Olá, senhoras! Qual de vós há de agora recusar-se a dar uma voltinha? A que mimosa se
mostrar por demais, faço uma aposta em como terá calos. Como! Agora ficamos juntos? Sede aqui
bem-vindos, meus senhores! Já vi também os dias em que punha uma máscara e sabia cochichar uma ou
duas palavrinhas nuns ouvidos bonitos. E agradavam! Mas já lá vai o tempo... Tudo passa. Sois
bem-vindos, senhores. Vinde, músicos! Tocai logo! Licença! Abri caminho... Com licença! Meninas,
ligeireza!
(Música e dança.)
Mais luz, marotos! Arrastai as mesas e apagai esse fogo, que está muito quente aqui dentro. Ah! essas
brincadeiras inesperadas chegam sempre a tempo. Sim, sentai-vos, sentai-vos, caro primo Capuleto; nós
dois já não estamos na idade de dançar. Há quanto tempo deixamos de pôr máscara?
SEGUNDO CAPULETO -- Trinta anos, pela Virgem; trinta anos.
CAPULETO - Como, primo! Não, não faz tanto tempo; é muita coisa. Foi desde o casamento de
Lucêncio. Venha quando quiser o Pentecostes, serão vinte e cinco anos.... Nós, de máscara...
SEGUNDO CAPULETO - Muito mais! Muito mais! O filho dele, senhor, tem mais idade; tem trinta
anos.
CAPULETO - Que dizeis! Pois se esse filho dele há uns dois anos maior não era ainda!
ROMEU - Que dama é aquela que enriquece o braço daquele cavalheiro?
CRIADO - Desconheço-a, meu senhor.
ROMEU - Oh! ela ensina a tocha a ser luzente. Dir-se-ia que da face está pendente da noite, tal qual jóia
mui preciosa da orelha de uma etíope mimosa. Bela demais para o uso, muito cara para a vida terrena.
Como clara pomba ao lado de gralhas tagarelas, anda no meio das demais donzelas. Vou procurá-la, ao
terminar a dança porque a esta rude mão possa dar ansa de tocar nela e, assim, ficar bendita. Meu
coração, até hoje, teve a dita de conhecer o amor? Oh! que simpleza! Nunca soube até agora o que é
beleza.
TEBALDO - Pela voz este aqui é algum Montecchio. Rapaz, vai buscar logo minha espada. Como! Esse
escravo atreve-se a, com máscara grotesca, vir aqui, para de nossa festividade rir e fazer pouco? Pela
honra do meu sangue e nobre estado, dar-lhe a morte não julgo ser pecado.
CAPULETO - Que tens, sobrinho? Que se dá contigo?
TEBALDO - Tio, aquele é um Montecchio, nosso imigo; um vilão que aqui entrou por zombaria, para
nos estragar toda a alegria.
CAPULETO - Não é o jovem Romeu?
TEBALDO - O mesmo, o biltre Romeu.
CAPULETO - Gentil sobrinho, fica quieto; deixa-o tranqüilo. Ele se tem mostrado perfeito
gentil-homem. Para ser-te franco, Verona tem orgulho dele, como rapaz virtuoso e mui polido. Nem por
toda a riqueza da cidade quisera que ele aqui fosse ofendido. Acalma-te, portanto, e fica alegre; essa é a
minha vontade. Se a acatares, fica alegre e desfaze essa carranca que não vai bem com nossa alacridade.
TEBALDO - Vai, sim, quando um vilão se mete nela. Não o suporto.
CAPULETO - Terás de suportá-lo. Como, rapaz! Estou mandando: deixa-o! Quem manda aqui, acaso;
vós ou eu? Ora, não o suportais! Deus me salve a alma. Quereis fazer barulho entre meus hóspedes?
Provocar briga? Ser mandão na festa?
TEBALDO - Mas, tio, é vergonhoso...
CAPULETO - Ide, ide. Sois petulante, não? Prejudicar-vos ainda pode esta história. Sei de tudo.
Procurais contrariar-me? Eis o momento. - Muito bem, corações! - Sois um fedelho. Ide acalmar-vos -
Luz! Mais luz! - Que opróbrio! Já vou deixar-vos quieto. - Assim, meus caros! Alegria! Alegria!
TEBALDO - A paciência e o furor, equilibrados, inativos me deixam com seus brados. Vou sair; mas o
intruso que hoje é mel, será amanhã o mais amargo fel.
(Sai.)
ROMEU - (a Julieta) - Se minha mão profana o relicário em remissão aceito a penitência: meu lábio,
peregrino solitário, demonstrará, com sobra, reverência.
JULIETA - Ofendeis vossa mão, bom peregrino, que se mostrou devota e reverente. Nas mãos dos santos
pega o paladino. Esse é o beijo mais santo e conveniente.
ROMEU - Os santos e os devotos não têm boca?
JULIETA - Sim, peregrino, só para orações.
ROMEU - Deixai, então, ó santa! que esta boca mostre o caminho certo aos corações.
JULIETA - Sem se mexer, o santo exalça o voto.
ROMEU - Então fica quietinha: eis o devoto. Em tua boca me limpo dos pecados.
(Beija-a.)
JULIETA - Que passaram, assim, para meus lábios.
ROMEU - Pecados meus? Oh! Quero-os retornados. Devolve-mos.
JULIETA - Beijais tal qual os sábios.
AMA - Vossa mãe quer falar-vos, senhorita.
ROMEU - Quem é a mãe dela?
AMA -.Ora essa, cavalheiro! A dona desta casa, certamente, uma digna senhora, honesta e sábia.
Amamentei-lhe a filha, a senhorita com que falastes. E uma coisa eu digo, com certeza: quem vier a
desposá-la, ficará cheio de ouro.
ROMEU - É Capuleto? Oh conta cara! Minha vida é dívida de hoje em diante no livro do inimigo.
BENVÓLIO - A festa já acabou; vamos embora.
ROMEU - Acabou? Para mim começa agora.
CAPULETO - Não, cavalheiros, não saiais tão cedo; ainda teremos uma ceiazinha. Mas partis mesmo? A
todos, obrigado. Muito obrigado, honesto cavalheiro. Boa noite. - Trazei-me aqui mais tochas! Sendo
assim, vou deitar-me. É certo, amigo: já está ficando tarde. Vou deitar-me.
(Saem todos, com exceção de Julieta e a ama.)
JULIETA - Ama, quem é aquele gentil-homem?
AMA - Herdeiro e filho de Tibério, o velho.
JULIETA - E aquele que ora passa pela porta?
AMA - Se não me engano, é o filho de Petrucchio.
JULIETA - E aquele que ali vai, que não dançou?
AMA - Não sei quem seja.
JULIETA - Então vai perguntar-lhe como se chama. Vai! Se for casado, um túmulo será todo o meu
fado.
AMA - Romeu é o nome dele; é um dos Montecchios, filho único do vosso grande imigo.
JULIETA - Como do amor a inimizade me arde! Desconhecido e asnado muito tarde. Como esse
monstro, o amor, brinca comigo: apaixonada ver-me do inimigo!
AMA - Como assim? Como assim?
JULIETA - Isso é uma rima que aprender fui com quem dancei há pouco.
AMA - Já vamos! Um momento! - Está na hora; já se foram os hóspedes embora.
(Saem.)
PRÓLOGO
(Entra o coro.)
CORO - Moribundo se encontra o antigo afeto, querendo o novo amor ser seu herdeiro; da beldade fatal
o externo aspecto frente a Julieta é monstro verdadeiro. Ama Romeu, sendo também amado. Cada um
nos olhos do outro acha feitiço; queixa-se ele do imigo proclamado; na mais pungente dor cria ela viço.
Sendo inimigo, acesso junto dela não obtém ele para suas juras; nem ela sabe, como, com cautela, lhe
poderá dizer palavras puras. Mas o amor, em tamanha extremidade. sabe fazer da dor felicidade.
ROMEU E JULIETA, ATO IV, Cena II
O mesmo, Sala em casa de Capuleto. Entram Capuleto, senhora Capuleto, ama e criados.
CAPULETO - Convidai as pessoas desta lista.
(Sai o criado.)
E tu, maroto aí! Vai contratar-me vinte hábeis cozinheiros.
SEGUNDO CRIADO - Não arranjareis nenhum cozinheiro ruim, senhor, porque eu me incumbirei de
verificar se eles sabem lamber os dedos.
CAPULETO - E de que modo conseguirás isso?
SEGUNDO CRIADO - Ora, senhor, o cozinheiro que não sabe lamber os dedos, não presta. Por isso,
deixarei de trazer os que não souberem fazê-lo.
CAPULETO - Está bem; vai logo.
(Sai o segundo criado.)
Vai faltar muita coisa; o tempo é curto. Quem saberá dizer-me se Julieta foi à cela do monge?
AMA - Foi, realmente.
CAPULETO - Talvez ele lhe dê um bom conselho. É uma rapariguinha cabeçuda.
AMA - Ei-la contente; vem da confissão.
(Entra Julieta.)
CAPULETO - Então, cabeçudinha? Onde estivestes saracoteando?
JULIETA - Onde aprendi, realmente, a arrepender-me do pecado grave de desobedecer a vossas ordens,
tendo-me frei Lourenço, esse santo homem, ordenado que viesse aqui prostrar-me para pedir perdão.
Perdão vos peço. De hoje em diante sereis meu guia em tudo.
CAPULETO - Ide chamar o conde; contai-lhe isso. Será firmado o enlace amanhã cedo.
JULIETA - Vi o conde na cela de Lourenço, tendo-lhe dado tudo o que é possível conceder dentro da
área da modéstia.
CAPULETO - Isso me alegra muito. Bem; levanta-te. Assim vai tudo bem. Vou ver o conde. Com a
breca! Olá, maroto! vai buscá-lo. Deus louvado. Esse frade reverendo, toda a cidade o tem em grande
estima.
JULIETA - Quereis, ama, ir comigo até o meu quarto para escolhermos juntas os enfeites que mais
próprios achardes para a festa?
SENHORA CAPULETO - Não; até quinta-feira há muito tempo.
CAPULETO - Vai, ama; vai com ela. Nós iremos até à igreja amanhã.
(Saem Julieta e a ama.)
SENHORA CAPULETO - Vão faltar provisões, e é quase noite.
CAPULETO - Oh diabo! Vou mexer-me; e tudo, tudo, mulher, termina bem, posso afirmar-te. Vai ajudar
Julieta nos enfeites. Deixem-me só; hoje não vou deitar-me. Por esta vez serei dona de casa. Olá,
rapazes! Qual! saíram todos. Irei sozinho ver o Conde Páris, para animá-lo para amanhã cedo. O coração
por demais leve sinto desde que essa menina criou juízo.
(Saem.)
CAPULETO - Convidai as pessoas desta lista.
(Sai o criado.)
E tu, maroto aí! Vai contratar-me vinte hábeis cozinheiros.
SEGUNDO CRIADO - Não arranjareis nenhum cozinheiro ruim, senhor, porque eu me incumbirei de
verificar se eles sabem lamber os dedos.
CAPULETO - E de que modo conseguirás isso?
SEGUNDO CRIADO - Ora, senhor, o cozinheiro que não sabe lamber os dedos, não presta. Por isso,
deixarei de trazer os que não souberem fazê-lo.
CAPULETO - Está bem; vai logo.
(Sai o segundo criado.)
Vai faltar muita coisa; o tempo é curto. Quem saberá dizer-me se Julieta foi à cela do monge?
AMA - Foi, realmente.
CAPULETO - Talvez ele lhe dê um bom conselho. É uma rapariguinha cabeçuda.
AMA - Ei-la contente; vem da confissão.
(Entra Julieta.)
CAPULETO - Então, cabeçudinha? Onde estivestes saracoteando?
JULIETA - Onde aprendi, realmente, a arrepender-me do pecado grave de desobedecer a vossas ordens,
tendo-me frei Lourenço, esse santo homem, ordenado que viesse aqui prostrar-me para pedir perdão.
Perdão vos peço. De hoje em diante sereis meu guia em tudo.
CAPULETO - Ide chamar o conde; contai-lhe isso. Será firmado o enlace amanhã cedo.
JULIETA - Vi o conde na cela de Lourenço, tendo-lhe dado tudo o que é possível conceder dentro da
área da modéstia.
CAPULETO - Isso me alegra muito. Bem; levanta-te. Assim vai tudo bem. Vou ver o conde. Com a
breca! Olá, maroto! vai buscá-lo. Deus louvado. Esse frade reverendo, toda a cidade o tem em grande
estima.
JULIETA - Quereis, ama, ir comigo até o meu quarto para escolhermos juntas os enfeites que mais
próprios achardes para a festa?
SENHORA CAPULETO - Não; até quinta-feira há muito tempo.
CAPULETO - Vai, ama; vai com ela. Nós iremos até à igreja amanhã.
(Saem Julieta e a ama.)
SENHORA CAPULETO - Vão faltar provisões, e é quase noite.
CAPULETO - Oh diabo! Vou mexer-me; e tudo, tudo, mulher, termina bem, posso afirmar-te. Vai ajudar
Julieta nos enfeites. Deixem-me só; hoje não vou deitar-me. Por esta vez serei dona de casa. Olá,
rapazes! Qual! saíram todos. Irei sozinho ver o Conde Páris, para animá-lo para amanhã cedo. O coração
por demais leve sinto desde que essa menina criou juízo.
(Saem.)
ROMEU E JULIETA, ATO IV, Cena III
O mesmo. Quarto de Julieta. Entram Julieta e a ama.
JULIETA - Sim, estas são as peças mais bonitas. Mas, gentil ama, deixa-me esta noite; desejo ficar só,
pois necessito de rezar muito, para que consiga fazer sorrir o céu para o meu lado, pois bem sabeis: tenho
a alma atormentada e cheia de pecados.
(Entra a senhora Capuleto.)
SENHORA CAPULETO - Ocupada bastante, não? Necessitais de mim?
JULIETA - Não, senhora; escolhemos, tão-somente, quanto nos pareceu mais necessário para amanhã
vestir na cerimônia. Assim, vos peço me deixeis sozinha, dormindo a ama esta noite em vosso quarto,
pois sei que vos achais assoberbada de ocupações para esta festa súbita.
SENHORA CAPULETO - Boa noite, então. E tu, podes deitar-te; não temos precisão de teus serviços.
(Saem a senhora Capuleto e a ama.)
JULIETA - Adeus. Deus sabe quando nos veremos outra vez. Pelas veias me passeia um medo frio e
lânguido, que quase deixa o calor da vida inteiriçado. Vou chamá-los de novo para darem-me coragem.
Ama!... Mas, por que vir cá? Precisarei representar sozinha meu terrível papel. Vamos, frasquinho. E se
esta droga não fizer efeito? Terei de me casar amanhã cedo? Não; isto o impedirá. Fica aqui perto.
(Põe de lado um punhal.)
E se for um veneno que esse frade com astúcia me deu para matar-me, temendo o opróbrio que podia
vir-lhe do casamento, por me haver casado com Romeu antes disso? Sinto medo. Contudo, quero crer,
não o faria, pois como santo é tido há muito tempo. Não devo ter tão baixo pensamento. E se, depois de
estar na sepultura, eu vier a despertar, sem que Romeu chegue para salvar-me? Oh caso horrível! Não
ficarei asfixiada dentro da sepultura, cuja boca imunda não respira ar sadio, e, assim, morrendo sufocada
sem vir o meu Romeu? Ou se eu viver, não será mui plausível que aquela imagem de negror e morte,
associada ao pavor do próprio ponto - um sepulcro, carneira onde há centenas de meus antepassados;
onde se acha desde pouco Tebaldo ensangüentado, a decompor-se em seu sudário branco; onde, assim
dizem, em determinadas horas da noite espíritos vagueiam?... Ai! ai de mim! Pois não será possível que
eu venha a despertar antes do tempo?... Aquele cheiro repugnante, os gritos que como o das
mandrágoras, ao serem arrancadas da terra, influem loucura em todos quantos porventura os ouvem... Ao
despertar não ficarei demente no meio desses medos pavorosos, pondo-me, louca, a remexer nos ossos de
meus antepassados, e a puxar de seu lençol Tebaldo mutilado? Ou, tomada de fúria, com um osso de um
dos meus bisavós, que irá servir-me de clava não farei saltar meu cérebro desesperado? Oh! vede! o
espírito parece de meu primo, que anda em busca de Romeu, que espetou seu pobre corpo na ponta do
punhal. Pára, Tebaldo! Romeu, aqui! Bebo isto por tua causa.
(Cai sobre o leito, para dentro das cortinas.)
JULIETA - Sim, estas são as peças mais bonitas. Mas, gentil ama, deixa-me esta noite; desejo ficar só,
pois necessito de rezar muito, para que consiga fazer sorrir o céu para o meu lado, pois bem sabeis: tenho
a alma atormentada e cheia de pecados.
(Entra a senhora Capuleto.)
SENHORA CAPULETO - Ocupada bastante, não? Necessitais de mim?
JULIETA - Não, senhora; escolhemos, tão-somente, quanto nos pareceu mais necessário para amanhã
vestir na cerimônia. Assim, vos peço me deixeis sozinha, dormindo a ama esta noite em vosso quarto,
pois sei que vos achais assoberbada de ocupações para esta festa súbita.
SENHORA CAPULETO - Boa noite, então. E tu, podes deitar-te; não temos precisão de teus serviços.
(Saem a senhora Capuleto e a ama.)
JULIETA - Adeus. Deus sabe quando nos veremos outra vez. Pelas veias me passeia um medo frio e
lânguido, que quase deixa o calor da vida inteiriçado. Vou chamá-los de novo para darem-me coragem.
Ama!... Mas, por que vir cá? Precisarei representar sozinha meu terrível papel. Vamos, frasquinho. E se
esta droga não fizer efeito? Terei de me casar amanhã cedo? Não; isto o impedirá. Fica aqui perto.
(Põe de lado um punhal.)
E se for um veneno que esse frade com astúcia me deu para matar-me, temendo o opróbrio que podia
vir-lhe do casamento, por me haver casado com Romeu antes disso? Sinto medo. Contudo, quero crer,
não o faria, pois como santo é tido há muito tempo. Não devo ter tão baixo pensamento. E se, depois de
estar na sepultura, eu vier a despertar, sem que Romeu chegue para salvar-me? Oh caso horrível! Não
ficarei asfixiada dentro da sepultura, cuja boca imunda não respira ar sadio, e, assim, morrendo sufocada
sem vir o meu Romeu? Ou se eu viver, não será mui plausível que aquela imagem de negror e morte,
associada ao pavor do próprio ponto - um sepulcro, carneira onde há centenas de meus antepassados;
onde se acha desde pouco Tebaldo ensangüentado, a decompor-se em seu sudário branco; onde, assim
dizem, em determinadas horas da noite espíritos vagueiam?... Ai! ai de mim! Pois não será possível que
eu venha a despertar antes do tempo?... Aquele cheiro repugnante, os gritos que como o das
mandrágoras, ao serem arrancadas da terra, influem loucura em todos quantos porventura os ouvem... Ao
despertar não ficarei demente no meio desses medos pavorosos, pondo-me, louca, a remexer nos ossos de
meus antepassados, e a puxar de seu lençol Tebaldo mutilado? Ou, tomada de fúria, com um osso de um
dos meus bisavós, que irá servir-me de clava não farei saltar meu cérebro desesperado? Oh! vede! o
espírito parece de meu primo, que anda em busca de Romeu, que espetou seu pobre corpo na ponta do
punhal. Pára, Tebaldo! Romeu, aqui! Bebo isto por tua causa.
(Cai sobre o leito, para dentro das cortinas.)
ROMEU E JULIETA, ATO IV, Cena IV
O mesmo. Sala da casa de Capuleto. Entram a senhora Capuleto e a ama.
SENHORA CAPULETO - Ama, toma estas chaves e nos traze mais temperos e cheiro. AMA - Os
pasteleiros querem marmelo e tâmara.
(Entra Capuleto.)
CAPULETO - Depressa! Mexam-se! Vamos! O segundo galo já cantou e o sinal de apagar fogo há muito
já foi dado. São três horas. Cuida dos bolos, minha boa Angélica, sem poupar coisa alguma.
AMA - Ide, ide embora, metediço; o lençol está chamando. Por minha fé, assim ficais doente, por
haverdes velado a noite toda.
CAPULETO - Nem um pouquinho. Ora essa! Muitas noites já passei acordado por motivos bem
menores, sem ter ficado doente.
SENHORA CAPULETO - É certo, em vossa mocidade andáveis a caçar ratos; mas agora eu tomo sobre
mim o trabalho de poupar-vos de tais caçadas.
(Saem a senhora Capuleto e a ama.)
CAPULETO - Oh ciúmes! ciúmes!
(Entram três ou quatro criados, com espetos, achas de lenha e cestos.)
Amigos, que levais aí dentro?
PRIMEIRO CRIADO - Coisas que o cozinheiro reclamou, senhor; não sei bem o que seja.
CAPULETO - Pressa! pressa!
(Sai o primeiro criado.)
e tu, maroto, traze lenha seca; Pedro pode indicar onde é o depósito.
SEGUNDO CRIADO - Tenho cabeça para achar a lenha; não vou incomodar para isso o Pedro.
(Sai.)
CAPULETO - Raios! Boa resposta! O sem-vergonha tem gênio alegre, ah! ah! Dará bom cepo. Por
minha fé, já é dia; mais um pouco e o conde chegará mais os seus músicos. Foi o que ele que disse.
(Ouve-se música..)
Ei-lo! Já o ouço. Ama! Mulher! Estou chamando. Olá!
(Volta a ama.)
Vai acordar Julieta e prepará-la. Vou conversar com Páris. Toda pressa! Mais pressa nisso! O noivo já
está pronto. Mais pressa! digo.
(Saem.)
SENHORA CAPULETO - Ama, toma estas chaves e nos traze mais temperos e cheiro. AMA - Os
pasteleiros querem marmelo e tâmara.
(Entra Capuleto.)
CAPULETO - Depressa! Mexam-se! Vamos! O segundo galo já cantou e o sinal de apagar fogo há muito
já foi dado. São três horas. Cuida dos bolos, minha boa Angélica, sem poupar coisa alguma.
AMA - Ide, ide embora, metediço; o lençol está chamando. Por minha fé, assim ficais doente, por
haverdes velado a noite toda.
CAPULETO - Nem um pouquinho. Ora essa! Muitas noites já passei acordado por motivos bem
menores, sem ter ficado doente.
SENHORA CAPULETO - É certo, em vossa mocidade andáveis a caçar ratos; mas agora eu tomo sobre
mim o trabalho de poupar-vos de tais caçadas.
(Saem a senhora Capuleto e a ama.)
CAPULETO - Oh ciúmes! ciúmes!
(Entram três ou quatro criados, com espetos, achas de lenha e cestos.)
Amigos, que levais aí dentro?
PRIMEIRO CRIADO - Coisas que o cozinheiro reclamou, senhor; não sei bem o que seja.
CAPULETO - Pressa! pressa!
(Sai o primeiro criado.)
e tu, maroto, traze lenha seca; Pedro pode indicar onde é o depósito.
SEGUNDO CRIADO - Tenho cabeça para achar a lenha; não vou incomodar para isso o Pedro.
(Sai.)
CAPULETO - Raios! Boa resposta! O sem-vergonha tem gênio alegre, ah! ah! Dará bom cepo. Por
minha fé, já é dia; mais um pouco e o conde chegará mais os seus músicos. Foi o que ele que disse.
(Ouve-se música..)
Ei-lo! Já o ouço. Ama! Mulher! Estou chamando. Olá!
(Volta a ama.)
Vai acordar Julieta e prepará-la. Vou conversar com Páris. Toda pressa! Mais pressa nisso! O noivo já
está pronto. Mais pressa! digo.
(Saem.)
ROMEU E JULIETA, ATO V, Cena II
Verona. Cela de frei Lourenço. Entra frei João
FREI JOÃO - Santo irmão franciscano! Olá, irmão!
(Entra frei Lourenço.)
FREI LOURENÇO - A voz é de frei João. Deve ser ele. Ó tu que vens de Mântua, sê bem-vindo. Romeu
que disse? Ou então, se o pensamento mandou escrito, dá-me sua carta.
FREI JOÃO - Fui procurar um frade de nossa ordem de pés descalços, que visita os doentes, para ir
comigo a Mântua, mas os guardas da cidade, pensando que tivéssemos estado numa casa em que a
infecciosa pestilência domina, as portas logo fecharam, não deixando que saíssemos. Desta arte minha
pressa de ir a Mântua ficou parada.
FREI LOURENÇO - E quem levou a carta para Romeu?
FREI JOÃO - Não pude remetê-la - ei-la aqui outra vez - tentei, embalde, achar um portador para levá-la,
tanto medo têm todos de infecção.
FREI LOURENÇO - Quanta falta de sorte! Por minha ordem, essa carta não é sem importância, mas de
peso e conteúdo muito grave. O atraso pode ser de conseqüências muito sérias. Frei João, vai bem
depressa buscar uma alavanca; estou na cela.
FREI JOÃO - Pois não, irmão; levá-la-ei já já.
(Sai.)
FREI LOURENÇO - Agora tenho de ir sozinho ao túmulo. Dentro destas três horas vai a bela Julieta
despertar; vai maldizer-me porque Romeu ficou sem ter notícias de quanto aconteceu. Mas para Mântua
vou escrever de novo; em minha cela vou deixá-la escondida, até que possa Romeu chegar aqui. Pobre
cadáver vivo, enterrado numa sepultura!
(Sai.)
FREI JOÃO - Santo irmão franciscano! Olá, irmão!
(Entra frei Lourenço.)
FREI LOURENÇO - A voz é de frei João. Deve ser ele. Ó tu que vens de Mântua, sê bem-vindo. Romeu
que disse? Ou então, se o pensamento mandou escrito, dá-me sua carta.
FREI JOÃO - Fui procurar um frade de nossa ordem de pés descalços, que visita os doentes, para ir
comigo a Mântua, mas os guardas da cidade, pensando que tivéssemos estado numa casa em que a
infecciosa pestilência domina, as portas logo fecharam, não deixando que saíssemos. Desta arte minha
pressa de ir a Mântua ficou parada.
FREI LOURENÇO - E quem levou a carta para Romeu?
FREI JOÃO - Não pude remetê-la - ei-la aqui outra vez - tentei, embalde, achar um portador para levá-la,
tanto medo têm todos de infecção.
FREI LOURENÇO - Quanta falta de sorte! Por minha ordem, essa carta não é sem importância, mas de
peso e conteúdo muito grave. O atraso pode ser de conseqüências muito sérias. Frei João, vai bem
depressa buscar uma alavanca; estou na cela.
FREI JOÃO - Pois não, irmão; levá-la-ei já já.
(Sai.)
FREI LOURENÇO - Agora tenho de ir sozinho ao túmulo. Dentro destas três horas vai a bela Julieta
despertar; vai maldizer-me porque Romeu ficou sem ter notícias de quanto aconteceu. Mas para Mântua
vou escrever de novo; em minha cela vou deixá-la escondida, até que possa Romeu chegar aqui. Pobre
cadáver vivo, enterrado numa sepultura!
(Sai.)
REI LEAR, ATO I, Cena III
Um quarto no palácio do duque de Albânia. Entram Goneril e seu intendente Osvaldo.
GONERIL - Meu pai bateu no gentil-homem, por ter este ralhado com o bobo dele?
OSVALDO - Sim, minha senhora.
GONERIL - Dia e noite me ofende. Não se passa nenhuma hora sem que ele não fuzile com qualquer
grosseria, que a nós todos traz somente discórdia. Não o suporto; turbulentos estão seus cavaleiros e a
censurar-nos ele próprio vive por dá cá aquela palha. Não pretendo falar com ele, quando vier da caça.
Dizei que estou doente; e, se cumprirdes com certa negligência algum serviço, estará bem; responderei
por tudo.
OSVALDO - Ei-lo, senhora; ouço o barulho, dele.
(Ouve-se toque de trompa.)
GONERIL - Mostrai a negligência que quiserdes, vós e os outros de casa, pois desejo que me venha falar
a esse respeito. Se não gostar, então que se transfira para a casa da mana, cujo modo de pensar, estou
certa, está de acordo com o meu, em não querer ser governada. Velho caduco, a pretender o mando sobre
o que já doou! Por minha vida, os velhos tontos são de novo crianças; com ralhos, só, precisam ser
tratados. Lembrai-vos do que eu disse.
OSVALDO - Sim, senhora.
GONERIL - E lançai frio olhar para seus homens. Pouco importa o que vier; avisai todos. Quero achar
nisso tudo algum pretexto para poder falar. Sem mais delongas, escreverei à mana, para que ela faça
como eu. Prepara logo a ceia.
(Saem.)
GONERIL - Meu pai bateu no gentil-homem, por ter este ralhado com o bobo dele?
OSVALDO - Sim, minha senhora.
GONERIL - Dia e noite me ofende. Não se passa nenhuma hora sem que ele não fuzile com qualquer
grosseria, que a nós todos traz somente discórdia. Não o suporto; turbulentos estão seus cavaleiros e a
censurar-nos ele próprio vive por dá cá aquela palha. Não pretendo falar com ele, quando vier da caça.
Dizei que estou doente; e, se cumprirdes com certa negligência algum serviço, estará bem; responderei
por tudo.
OSVALDO - Ei-lo, senhora; ouço o barulho, dele.
(Ouve-se toque de trompa.)
GONERIL - Mostrai a negligência que quiserdes, vós e os outros de casa, pois desejo que me venha falar
a esse respeito. Se não gostar, então que se transfira para a casa da mana, cujo modo de pensar, estou
certa, está de acordo com o meu, em não querer ser governada. Velho caduco, a pretender o mando sobre
o que já doou! Por minha vida, os velhos tontos são de novo crianças; com ralhos, só, precisam ser
tratados. Lembrai-vos do que eu disse.
OSVALDO - Sim, senhora.
GONERIL - E lançai frio olhar para seus homens. Pouco importa o que vier; avisai todos. Quero achar
nisso tudo algum pretexto para poder falar. Sem mais delongas, escreverei à mana, para que ela faça
como eu. Prepara logo a ceia.
(Saem.)
REI LEAR, ATO II, Cena I
Pátio diante do castelo do duque de Gloster. Entram Edmundo e Curan, que se encontram.
EDMUNDO - Deus te guarde, Curan.
CURAN - E a vós também, senhor. Estive com vosso pai e lhe dei a notícia de que o duque de Cornualha
e Regane sua duquesa chegarão aqui esta noite.
EDMUNDO - E por que isso?
CURAN - Ignoro-o. Não ouvistes as notícias que correm por aí? Refiro-me apenas às que são
cochichadas e que não são mais do que assuntos soprados aos ouvidos.
EDMUNDO - Eu? Não. Por obséquio, quais são elas?
CURAN - Não ouvistes dizer que é muito provável uma guerra entre os duques de Cornualha e de
Albânia?
EDMUNDO - Nem uma palavra.
CURAN - Então ainda haveis de ouvir algo a esse respeite. Passai bem, senhor.
(Sai.)
EDMUNDO - O duque aqui esta noite? Melhor... Ótimo! Isso cai mesmo certo no meu plano. Meu pai
pôs gente em busca de meu mano e um negócio nauseoso ainda me resta para ser posto em prática. Mãos
à obra. Celeridade e sorte! Mano, mano! Uma palavra! Vinde! Estou chamando!
(Entra Edgar.)
Meu pai está de espreita. Oh! Fugi logo; deixai o esconderijo, que este ponto já se tornou sabido. E
conveniente aproveitar a noite. Por acaso não vos manifestastes em prejuízo do duque de Cornualha? Ele
vem vindo para aqui, apressado, em plena noite, e Regane com ele. Não dissestes a favor dele nada,
contra o duque de Albânia? Pensai bem.
EDGAR - Não disse nada, tenho certeza.
EDMUNDO - Ouço meu pai que chega. Perdoai-me, mas por fingimento, apenas, tirai também a espada
e defendei-vos, só por simulação. Parti, agora. - Rendei-vos! Vamos ante nosso pai! Luz, aqui! - Fugi,
mano! - Tochas! Tochas! - Assim. Adeus, adeus.
(Sai Edgar.)
Agora um pouco de sangue há de fazer nascer a idéia de um combate mais sério.
(Fere-se no braço.)
Já vi bêbedos fazer por brincadeira mais do que isso.
Pai! Pai! Prendei! Prendei! Ninguém me ajuda?
(Entram Gloster e criados, com tochas.)
GLOSTER - Edmundo, onde está o biltre?
EDMUNDO - Aqui se achava, no escuro, espada em punho, depravados conjuros resmungando e, como
a dama auspiciosa, a invocar a própria lua.
GLOSTER - Mas onde está?
EDMUNDO - Senhor, estou sangrando.
GLOSTER - Mas onde está esse vilão, Edmundo?
EDMUNDO - Fugiu por lá, senhor, quando viu que era de todo inútil...
GLOSTER - Lá? Ide atrás dele!
(Saem alguns criados.)
"De todo inútil..." Quê?
EDMUNDO - Sim, persuadir-me a vos tirar a vida. Respondi-lhe que os deuses vingadores desferiam
seus duros raios contra os parricidas; lembrei-lhe os laços múltiplos e fortes que aos pais os filhos
prendem. Em resumo, senhor: vendo o desgosto que eu opunha a suas intenções desnaturadas,
enraivecido, espada em punho, ataca-me o corpo exposto e o braço aqui me fere. Mas ao ver que os
espíritos eu tinha bem despertos e que pela justeza da causa a combatê-lo se atreviam, ou por eu ter muito
barulho feito, de repente, fugiu.
GLOSTER - Pode esconder-se onde quiser, que neste território encontrado há de ser. E, uma vez preso...
liquidado. Meu mestre, o nobre duque, meu mui digno patrono e amado príncipe chega esta noite. Assim,
proclamarei, com sua autoridade, que há de nossa graça alcançar quem quer que encontre o biltre e o
covarde assassino entregue ao cepo. E se alguém o esconder, morra igualmente!
EDMUNDO - E quando procurava dissuadi-lo de semelhante intento, achando-o cada vez mais
determinado em realizá-lo, e ameacei denunciá-lo, respondeu-me: "Bastardo sem haveres, então pensas
que, se acareados fôssemos, alguma confiança em teu valor, virtude ou mérito reforçar poderia o que
dissesses? Não; pois o que eu negasse - e hei de fazê-lo, embora apresentasses cartas minhas - atribuiria
tudo a teus conselhos, traça e manobras pérfidas. Preciso fora deixares tolo o mundo inteiro, para que
ninguém visse quanto o lucro de minha morte te seria estímulo para que a procurasses".
GLOSTER - Celerado teimoso e endurecido! Negaria sua própria carta? Não, não é meu filho.
(Fanfarras.)
Atenção! As trombetas são do duque. Não sei por que motivo nos visita. Os portos fecharei, para que o
biltre não nos possa escapar. O duque me há de permitir isso. Espalharei por toda parte o retrato dele;
assim, o reino conhecerá seus traços. Minhas terras, rapaz fiel e natural, recursos hei de arranjar para que
a herdá-las venhas.
(Entram Cornualha, Regane e séqüito.)
CORNUALHA - Então, meu nobre amigo? Desde o instante que aqui cheguei - e foi neste momento -
soube coisas mui raras.
REGANE - Confirmadas, toda vingança ainda não bastara para ir sobre o ofensor. Então, milorde?
GLOSTER - Ó senhora, senhora! Espedaçado ficou-me o coração. Espedaçado!
REGANE - Como! O afilhado de meu pai tentou contra vossa existência? Aquele mesmo em que meu
pai pôs nome? Vosso Edgar?
GLOSTER - O senhora! A vergonha ora me manda ficar calado.
REGANE - Acaso ele não era companheiro dos homens turbulentos que servem a meu pai?
GLOSTER - Não sei, senhora Oh! É terrível tudo!
EDMUNDO - Sim, senhora; pertencia a esse bando.
REGANE - Se assim é, não admira que mostrasse sentimentos tão baixos. Partiu deles a idéia de matar o
velho, para desbaratarem logo seus haveres. De minha irmã recebi hoje cedo boas informações sobre essa
gente, com tantas advertências, que, se acaso quiserem ir parar em minha casa, não me encontrarei lá.
CORNUALHA - Nem eu, Regane. Edmundo, soube agora que prestastes a vosso pai serviços de bom
filho.
EDMUNDO - Só fiz o meu dever.
GLOSTER - Fez frustrar a manobra do outro, tendo recebido a ferida que aqui vedes, quando tentou
prendê-lo.
CORNUALHA - Seguiu gente no encalço dele?
GLOSTER - Sim, meu bom senhor.
CORNUALHA - Sendo apanhado, havemos de deixá-lo em condições de nunca mais receio vir a causar
a alguém. Tomai vós mesmo todas as providências e disponde do meu poder como vos for do agrado. E
vós, Edmundo, tão recompensado neste momento, assim pela obediência como pela virtude, sereis nosso.
Pessoas de lealdade tão provada são muito necessárias. Começamos, assim, por nos apoderar de vós.
EDMUNDO - Embora mais não faça, hei de lealmente servir a meu senhor.
GLOSTER - Muito agradeço por ele a Vossa Graça.
CORNUALHA - Com certeza não sabeis a razão desta visita...
REGANE - . . .assim fora de tempo, abrindo nosso caminho pela noite de olhos negros. Motivos, nobre
Gloster, de algum peso tornam vossos conselhos necessários. Nosso pai nos escreve, e nossa mana, sobre
certos dissídios, parecendo-me mais acertado responder a todos longe de nossa casa. Os mensageiros
estão aqui à espera da resposta. Velho e bondoso amigo, deixai calmo, de todo, o coração, e em nosso
auxílio vinde com bons conselhos sobre assunto que exige muita urgência.
GLOSTER - Ao vosso inteiro dispor, senhor, me encontro. Vossas Graças são bem-vindas aqui.
(Saem.)
EDMUNDO - Deus te guarde, Curan.
CURAN - E a vós também, senhor. Estive com vosso pai e lhe dei a notícia de que o duque de Cornualha
e Regane sua duquesa chegarão aqui esta noite.
EDMUNDO - E por que isso?
CURAN - Ignoro-o. Não ouvistes as notícias que correm por aí? Refiro-me apenas às que são
cochichadas e que não são mais do que assuntos soprados aos ouvidos.
EDMUNDO - Eu? Não. Por obséquio, quais são elas?
CURAN - Não ouvistes dizer que é muito provável uma guerra entre os duques de Cornualha e de
Albânia?
EDMUNDO - Nem uma palavra.
CURAN - Então ainda haveis de ouvir algo a esse respeite. Passai bem, senhor.
(Sai.)
EDMUNDO - O duque aqui esta noite? Melhor... Ótimo! Isso cai mesmo certo no meu plano. Meu pai
pôs gente em busca de meu mano e um negócio nauseoso ainda me resta para ser posto em prática. Mãos
à obra. Celeridade e sorte! Mano, mano! Uma palavra! Vinde! Estou chamando!
(Entra Edgar.)
Meu pai está de espreita. Oh! Fugi logo; deixai o esconderijo, que este ponto já se tornou sabido. E
conveniente aproveitar a noite. Por acaso não vos manifestastes em prejuízo do duque de Cornualha? Ele
vem vindo para aqui, apressado, em plena noite, e Regane com ele. Não dissestes a favor dele nada,
contra o duque de Albânia? Pensai bem.
EDGAR - Não disse nada, tenho certeza.
EDMUNDO - Ouço meu pai que chega. Perdoai-me, mas por fingimento, apenas, tirai também a espada
e defendei-vos, só por simulação. Parti, agora. - Rendei-vos! Vamos ante nosso pai! Luz, aqui! - Fugi,
mano! - Tochas! Tochas! - Assim. Adeus, adeus.
(Sai Edgar.)
Agora um pouco de sangue há de fazer nascer a idéia de um combate mais sério.
(Fere-se no braço.)
Já vi bêbedos fazer por brincadeira mais do que isso.
Pai! Pai! Prendei! Prendei! Ninguém me ajuda?
(Entram Gloster e criados, com tochas.)
GLOSTER - Edmundo, onde está o biltre?
EDMUNDO - Aqui se achava, no escuro, espada em punho, depravados conjuros resmungando e, como
a dama auspiciosa, a invocar a própria lua.
GLOSTER - Mas onde está?
EDMUNDO - Senhor, estou sangrando.
GLOSTER - Mas onde está esse vilão, Edmundo?
EDMUNDO - Fugiu por lá, senhor, quando viu que era de todo inútil...
GLOSTER - Lá? Ide atrás dele!
(Saem alguns criados.)
"De todo inútil..." Quê?
EDMUNDO - Sim, persuadir-me a vos tirar a vida. Respondi-lhe que os deuses vingadores desferiam
seus duros raios contra os parricidas; lembrei-lhe os laços múltiplos e fortes que aos pais os filhos
prendem. Em resumo, senhor: vendo o desgosto que eu opunha a suas intenções desnaturadas,
enraivecido, espada em punho, ataca-me o corpo exposto e o braço aqui me fere. Mas ao ver que os
espíritos eu tinha bem despertos e que pela justeza da causa a combatê-lo se atreviam, ou por eu ter muito
barulho feito, de repente, fugiu.
GLOSTER - Pode esconder-se onde quiser, que neste território encontrado há de ser. E, uma vez preso...
liquidado. Meu mestre, o nobre duque, meu mui digno patrono e amado príncipe chega esta noite. Assim,
proclamarei, com sua autoridade, que há de nossa graça alcançar quem quer que encontre o biltre e o
covarde assassino entregue ao cepo. E se alguém o esconder, morra igualmente!
EDMUNDO - E quando procurava dissuadi-lo de semelhante intento, achando-o cada vez mais
determinado em realizá-lo, e ameacei denunciá-lo, respondeu-me: "Bastardo sem haveres, então pensas
que, se acareados fôssemos, alguma confiança em teu valor, virtude ou mérito reforçar poderia o que
dissesses? Não; pois o que eu negasse - e hei de fazê-lo, embora apresentasses cartas minhas - atribuiria
tudo a teus conselhos, traça e manobras pérfidas. Preciso fora deixares tolo o mundo inteiro, para que
ninguém visse quanto o lucro de minha morte te seria estímulo para que a procurasses".
GLOSTER - Celerado teimoso e endurecido! Negaria sua própria carta? Não, não é meu filho.
(Fanfarras.)
Atenção! As trombetas são do duque. Não sei por que motivo nos visita. Os portos fecharei, para que o
biltre não nos possa escapar. O duque me há de permitir isso. Espalharei por toda parte o retrato dele;
assim, o reino conhecerá seus traços. Minhas terras, rapaz fiel e natural, recursos hei de arranjar para que
a herdá-las venhas.
(Entram Cornualha, Regane e séqüito.)
CORNUALHA - Então, meu nobre amigo? Desde o instante que aqui cheguei - e foi neste momento -
soube coisas mui raras.
REGANE - Confirmadas, toda vingança ainda não bastara para ir sobre o ofensor. Então, milorde?
GLOSTER - Ó senhora, senhora! Espedaçado ficou-me o coração. Espedaçado!
REGANE - Como! O afilhado de meu pai tentou contra vossa existência? Aquele mesmo em que meu
pai pôs nome? Vosso Edgar?
GLOSTER - O senhora! A vergonha ora me manda ficar calado.
REGANE - Acaso ele não era companheiro dos homens turbulentos que servem a meu pai?
GLOSTER - Não sei, senhora Oh! É terrível tudo!
EDMUNDO - Sim, senhora; pertencia a esse bando.
REGANE - Se assim é, não admira que mostrasse sentimentos tão baixos. Partiu deles a idéia de matar o
velho, para desbaratarem logo seus haveres. De minha irmã recebi hoje cedo boas informações sobre essa
gente, com tantas advertências, que, se acaso quiserem ir parar em minha casa, não me encontrarei lá.
CORNUALHA - Nem eu, Regane. Edmundo, soube agora que prestastes a vosso pai serviços de bom
filho.
EDMUNDO - Só fiz o meu dever.
GLOSTER - Fez frustrar a manobra do outro, tendo recebido a ferida que aqui vedes, quando tentou
prendê-lo.
CORNUALHA - Seguiu gente no encalço dele?
GLOSTER - Sim, meu bom senhor.
CORNUALHA - Sendo apanhado, havemos de deixá-lo em condições de nunca mais receio vir a causar
a alguém. Tomai vós mesmo todas as providências e disponde do meu poder como vos for do agrado. E
vós, Edmundo, tão recompensado neste momento, assim pela obediência como pela virtude, sereis nosso.
Pessoas de lealdade tão provada são muito necessárias. Começamos, assim, por nos apoderar de vós.
EDMUNDO - Embora mais não faça, hei de lealmente servir a meu senhor.
GLOSTER - Muito agradeço por ele a Vossa Graça.
CORNUALHA - Com certeza não sabeis a razão desta visita...
REGANE - . . .assim fora de tempo, abrindo nosso caminho pela noite de olhos negros. Motivos, nobre
Gloster, de algum peso tornam vossos conselhos necessários. Nosso pai nos escreve, e nossa mana, sobre
certos dissídios, parecendo-me mais acertado responder a todos longe de nossa casa. Os mensageiros
estão aqui à espera da resposta. Velho e bondoso amigo, deixai calmo, de todo, o coração, e em nosso
auxílio vinde com bons conselhos sobre assunto que exige muita urgência.
GLOSTER - Ao vosso inteiro dispor, senhor, me encontro. Vossas Graças são bem-vindas aqui.
(Saem.)
REI LEAR, ATO II, Cena III
Uma parte da charneca. Entra Edgar.
EDGAR - Eu próprio ouvi o pregão em que diziam que me acho foragido, tendo à caça conseguido
escapar no oco de uma árvore. Não há porto algum livre, nenhum ponto 59 em que não haja guarda e
rigorosa vigilância, no intuito de apanhar-me. Salvo estarei enquanto fugir deles, pretendendo assumir a
mais abjeta, mais humilde aparência com que nunca, no seu desprezo aos homens, a miséria dos animais
se houvesse aproximado. Lama no rosto hei de passar, nos lombos porei qualquer coberta, desmanchados
trarei sempre os cabelos, e, com minha nudez patente, hei de enfrentar a fúria dos ventos e do céu. Tenho
modelos e precedentes aqui mesmo, nesses mendigos tresloucados que, com urros, nos braços nus e
entorpecidos cravam alfinetes, espinhos, pregos, ramos de rosmaninho e, assim, de aspecto horrível, nas
cabanas, nas vilas miseráveis, nos apriscos de ovelhas, nos moinhos, com imprecações de loucos ou com
rezas a caridade forçam. Pobre Tom! Pobre Turlu! Já sou alguma coisa; mas, como Edgar, serei coisa
nenhuma.
(Sai.)
Cena IV
Diante do castelo de Gloster. Kent no cepo. Entram Lear, o bobo e um gentil-homem.
LEAR - É estranho que de casa se partissem sem me terem reenviado o mensageiro.
GENTIL-HOMEM - Pelo que saber pude, até esta noite tenção não tinham de sair de casa.
KENT - Salve, meu nobre mestre!
LEAR - Como! Fazes da vergonha recreio?
KENT - Não, milorde.
BOBO - Ah! ah! Usa ligas muito duras. Os cavalos são amarrados pela cabeça; cachorros e ursos, pelo
pescoço; os macacos, pela cintura, e os homens pelas pernas. Quando alguém tem as pernas muito
desenvoltas, calça meias de pau.
LEAR - Quem errou a tal ponto com teu posto, para te pôr aí?
KENT - Foi ele e ela; o filho e a filha vossa.
LEAR- Não!
KENT - É certo.
LEAR - Não, repito.
KENT - O contrário eu também digo.
LEAR - Não fariam tal coisa.
KENT - Pois fizeram.
LEAR - Juro por Júpiter que não.
KENT - Por Juno, torno a jurar que sim.
LEAR - Não o ousariam, não poderiam tê-lo feito. For a pior do que um assassínio tal ultraje ao respeito
infligir. Com a mais decente pressa agora me conta de que modo pudeste merecer, ou antes, eles
infligir-te essa pena, se aqui vieste de nossa parte como mensageiro.
KENT - No instante em que, senhor, na casa deles a missiva entreguei de Vossa Alteza, sem que tivesse
tido tempo ainda de alçar-me do lugar em que se achava meu dever ajoelhado, fumegante chegou um
correio, em água todo esfeito de tanta pressa, o fôlego cortado, a arquejar cumprimentos de sua ama,
Goneril. Entregou-lhes uma carta - sem se importar com meu recado em curso - que lida fui de pronto, e
a cujo assunto os homens logo reúnem, vão diretos para os cavalos, dizem-me que os siga e o vagar da
resposta aqui esperasse, dirigindo-me sempre olhares frios. Tendo o outro mensageiro aqui encontrado,
cuja chegada, vira-o bem, a minha havia envenenado - e que era o mesmo velhaco que se comportara
contra Vossa Alteza com tanto atrevimento - mostrando-me mais homem do que sábio, saquei da espada,
enquanto ele alarmava toda a casa com berros de covarde. Acharam, vosso filho e vossa filha, essa
infração bastante grave, para o opróbrio merecer por que ora passo.
BOBO - O inverno ainda não passou, no caso de voarem nesta direção os patos selvagens. Quando os
pais só vestem trapos, os filhos nem querem vê-los; quando são ricos e guapos, são para eles só desvelos.
A Fortuna marafona sempre os pobres abandona. Mas apesar de tudo, tuas filhas te proporcionarão mais
dólares do que possas contar em um ano.
LEAR - Oh! Como ao peito esta paixão me sobe! Desce, "histerica passio", dor que sobe! E em baixo teu
lugar. E onde está a filha?
KENT - Senhor, com o conde, aí dentro.
LEAR - Não me sigas; espera aqui.
(Sai.)
GENTIL-HOMEM - Nenhuma ofensa, acaso, fizestes, a não ser a que contastes?
KENT - Nenhuma. Mas por que traz o rei tão pouca gente?
BOBO - Se tivesses sido posto no tronco por essa pergunta, fora bem merecido.
KENT - Por quê, bobo?
BOBO - Vamos pôr-te a aprender com uma formiga, que te ensinará que no inverno não há trabalho.
Todas as pessoas que seguem o nariz são levadas pelos olhos, com exceção dos cegos, não havendo um
só nariz, entre vinte, que não perceba quem está fedendo. Solta a roda grande, quando ela começar a rolar
colina abaixo, se não quiseres quebrar o pescoço; mas quando a roda grande subir a colina, bem: que te
arraste atrás dela. Quando um sábio te der melhor conselho, dá-lhe o meu de retorno. Quisera que só
fosse seguido pelos velhos, por ser conselho de bobo. Quem a outrem serve e lucro tem em mira, e tudo o
mais desleixa, se chove, apronta a trouxa e se retira, e no pegão o deixa. Mas eu não fugirei; o bobo fica;
seja o sábio fujão. Bobo se torna um biltre, quando estica; mas biltre o bobo, não.
KENT - Onde aprendeste isso, bobo?
BOBO - Não foi no cepo, bobo.
(Volta Lear, com Gloster.)
LEAR - Recusam-se a falar-me? Estão doentes? Fatigados? Viajaram toda a noite? Meras tretas;
imagens, tão-somente, de revolta e abandono. Arranja-me outra resposta mais razoável.
GLOSTER - Meu querido senhor, conheceis bem a natureza colérica do duque e como sempre
persistente se mostra e irredutível em quanto determina.
LEAR - Vingança! Peste! Morte! Confusão! Colérica? Que natureza? Ó Gloster, escuta: falar quero,
neste instante, com o Duque de Cornualha e sua esposa.
GLOSTER - Pois não, senhor; já lhes mandei recado.
LEAR - "Já lhes mandei recado!" Entendes-me, homem?
GLOSTER - Entendo, bom senhor.
LEAR - O rei deseja conversar com Cornualha, o pai querido deseja conversar com a própria filha; quer
ser obedecido. Já lhes deram semelhante "recado"? Sangue e vida! Colérico! O duque é mui colérico!
Dizei ao duque ardente... Não; é cedo. Pode ser que se encontre doente mesmo. A descuidar nos levam
sempre as doenças dos deveres que impõe, sempre, a saúde. Já não somos nós mesmos, quando, opressa,
ordena a natureza ao próprio espírito que padeça com o corpo. Esperar devo; combater quero este pendor
violento que me leva a tomar o acesso mórbido pelo homem são. Que morra o meu prestígio!
(Olhando para Kent.)
Por que razão ele se encontra ali? Esse ato me persuade de que a ausência do duque e da duquesa é
fingimento. Ponham logo meu criado em liberdade! Ide dizer ao duque e sua esposa que desejo falar-lhes
neste instante; agora mesmo! Saiam para ouvir-me; se não, em frente aos aposentos deles irei tocar
tambor de dar a morte ao sono com o barulho.
GLOSTER - Quem me dera que entre vós tudo viesse a concertar-se!
(Sai.)
LEAR - Ai de mim! Sinto o coração subir. Para baixo, de novo!
BOBO - Grita com ele, tio, como fazia a cozinheira com as enguias, ao pô-las vivas na frigideira.
Batia-lhes na cabeça com uma vara e gritava-lhes: "Para baixo, mal-educadas! Para baixo!" No entanto,
tinha um irmão que, por pura bondade, passava manteiga no feno do cavalo.
(Entram Cornualha, Regane, Gloster e criados.)
LEAR - Bom dia aos dois.
CORNUALHA - E salve Vossa Graça.
(Kent é posto em liberdade.)
REGANE - Fico alegre por ver Vossa Grandeza.
LEAR - Sim, Regane, sei disso; como as causas também de pensar dessa maneira. Se o não ficasses, eu
me divorciara da tumba de tua mãe como da de uma mulher adúltera. (A Kent.) Então, liberto? Depois
falamos nisso. Minha cara Regane, ah! tua irmã não vale nada. Ó Regane! a maldade corroedora ela
amarrou aqui, como um abutre.
(Indica o coração.)
Mal te posso falar. Não poderias conceber a maneira desumana... Ah, Regane!
REGANE - Por obséquio, senhor, tende paciência. Penso que estais tão longe de apreciar-lhe todo o
mérito, como de esquecer-se ela de seus deveres.
LEAR - De que modo?
REGANE - Não posso crer que minha irmã se tenha descuidado no mínimo de suas obrigações. Se acaso,
meu senhor, procurou restringir a turbulência de vossos seguidores, deu-se tudo com bases tais e tão
recomendáveis intenções, que de toda pecha a expungem.
LEAR - Lanço-lhe a maldição!
REGANE - O senhor, já estais velho! A natureza chegou em vós ao seu confim postremo. Devereis ser
guiado e governado por alguém que, melhor do que vós mesmo, vossas necessidades compreendesse.
Assim, vos peço, retornai para ela, senhor, e confessai que injusto fostes.
LEAR - Eu, pedir-lhe perdão? Vede como isso vai bem com nossa casa: Amada filha, confesso que sou
velho, sendo certo que a velhice é trambolho. Assim, de joelhos,
(Ajoelha-se.)
peço-vos conceder-me cama, roupa e um pouco de alimento.
REGANE - Meu bondoso senhor, não prossigais. São descabidas essas momices. Retornai para ela.
LEAR (levantando-se) - Jamais, Regane; ela cortou-me o séqüito de metade dos homens, dirigiu-me
olhares carrancudos, alcançando-me o coração com a língua viperina. Que em sua fronte ingrata caiam
todas as vinganças que o céu guardado tenha. Insuflai-lhe nos ossos jovens, ares pestilenciais, humores
deformantes! CORNUALHA - Ora, senhor, que coisa!
LEAR - Lançai-lhe, raios ágeis, vossas flamas ofuscantes nos olhos desdenhosos! Infectai-lhe a beleza,
brumas densas aspiradas dos charcos e engendradas pelo potente sol, para que venha a abater-se-lhe o
orgulho e encarquilhar-se. REGANE - Oh deuses abençoados! Iguais votos me fareis, quando vosso
humor violento tomar conta de vós.
LEAR - Jamais, Regane; jamais terás a minha maldição. Teu ser mui delicado não te leva a nenhuma
aspereza. Os olhos dela são ferozes; os teus, porém, confortam, não causam queimaduras. Não se casa
com tua natureza rogar praga contra minhas vontades, reduzir-me o séqüito, lançar-me termos ásperos,
limitar-me a pensão e, finalmente, ferrolhos antepor à minha entrada. Não; mais do que ela sabes os
deveres da natureza, obrigações dos filhos, o que a delicadeza impõe a todos e à gratidão devemos.
Esquecida não estás da metade do meu reino, que te entreguei por dote.
REGANE - Retornemos ao assunto, senhor. LEAR - Quem pôs meu homem no cepo?
(Ouve-se toque de trombeta.)
CORNUALHA - Que trombeta será essa?
REGANE - Conheço o toque; é minha irmã. Sua carta fica assim confirmada com a notícia de que viria
aqui. Chegou a senhora?
(Entra Osvaldo.)
LEAR - Eis um escravo, cujo orgulho fácil e barato repousa nos favores instáveis da senhora a que ele
serve. Fora da minha vista, sacripanta!
CORNUALHA - Que quer dizer com isso Vossa Graça?
LEAR - Quem ao cepo prendeu este meu criado? Regane, espero que não saibas disto. Mas quem vem
lá?
(Entra Goneril.)
Ó céus, se amais os velhos, se com a obediência vosso cetro brando se compadece, se também sois velho,
tomai o meu partido e vinde pôr-vos ao meu lado.
(A Goneril.) Não tens vergonha, acaso, de olhar para estas barbas? Ó Regane! tomá-la pelas mãos?
GONERIL - Por que não há de fazê-lo, meu senhor? Qual foi meu erro? Nem tudo é ofensa que a tolice
julga e a loucura nomeia.
LEAR - Ó flancos! duros sois por demais! Resistireis ainda? Por que no cepo foi parar meu homem?
CORNUALHA - Fui eu que o pus aí, senhor; mas suas desordens não faziam jus a tanta promoção.
LEAR - Como assim! Fostes vós mesmo?
REGANE - Por obséquio, meu pai; já que sois fraco, comportai-vos de acordo. Se até ao prazo final de
vosso mês vos conformardes em voltar para a mana, e lá ficardes, despedindo metade desse séquito,
vinde, então, para mim. Agora me acho fora de casa, sem dispor dos meios necessários a vosso
tratamento.
LEAR - Procurá-la de novo? Cinqüenta homens despedidos? Jamais! Preferiria abjurar todo abrigo e
expor-me à própria inimizade do ar, em companheiro transformar-me do lobo e da coruja, sob a dura
pressão da adversidade. Voltar para ela? Esse ardoroso França, que recebeu sem dote minha filha mais
nova, para mim fora mais fácil diante do trono dele ir ajoelhar-me e, tal qual escudeiro, mendigar-lhe
pensão mesquinha que esta vida abjeta permita sustentar. Voltar para ela! Antes tornar-me escravo ou ser
azêmola deste palafreneiro detestável.
(Mostrando Osvaldo.)
GONERIL - Senhor, à vossa escolha.
LEAR - Filha, peço-te que não me deixes louco. Não desejo, menina, incomodar-te por mais tempo.
Adeus. Não nos veremos nunca mais; nunca mais voltaremos a encontrar-nos. Mas és meu sangue, minha
carne: filha. Ou melhor: uma doença em minha carne, a que forçado sou a chamar minha; és um inchaço,
uma úlcera pestosa, um carbúnculo podre e tumefeito no meu sangue corrupto. Contudo, não quero
repreender-te. Que a vergonha venha quando quiser; não vou chamá-la. Não pedirei ao portador de raios
que troveje, nem nada a teu respeito direi de mal a Jove, o juiz supremo. Se puderes, emenda-te; melhora
quando quiseres. Posso ser paciente. Posso ficar em casa de Regane com meus cem cavaleiros.
REGANE - Mais cuidado! Não contava convosco, nem me encontro preparada para vos dar condigno
acolhimento. Ouvi, senhor, a mana. Quem põe razão nesses acessos vossos facilmente conclui que já
estais velho. Logo... Ela sabe o que convém ao caso.
LEAR - Isso foi bem falado?
REGANE - Quero crê-lo, senhor. Como! Cinqüenta seguidores? Não vos bastam? Quereis mais gente
ainda? Precisareis de tantos? Sim, que os próprios perigos e as despesas esse número desaconselham.
Como poderia haver paz numa casa entre tão grande número de homens sob comando duplo? É difícil se
não quase impossível.
GONERIL - Por que não poderíeis ser servido pela gente da mana ou pela minha? REGANE - Por que
não, meu senhor? Se qualquer deles de vós se descuidasse, fora fácil repreendê-los por isso. Se quiserdes,
assim, morar comigo - e agora vejo que tal coisa é arriscada - pediria que trouxésseis apenas vinte e
cinco. Para mais não terei lugar nem mesmo disposição.
LEAR - Fui eu que vos dei tudo...
REGANE - E em tempo certo o destes.
LEAR - Instituí-vos minhas depositárias e tutoras, reservando-me apenas uma escolta desse número.
Como! Deveria procurar-vos, então, com vinte e cinco? Regane, assim falastes?
REGANE - E repito-o; nem mais um, meu senhor.
LEAR - Certas criaturas boa aparência apresentar conseguem, quando outras em maldade as sobrepujam.
Não sendo as piores, cabem-lhe elogios. Contigo ficarei; os teus cinqüenta o dobro são dos vinte e cinco
dela, e o seu amor tu vales duas vezes.
GONERIL - Senhor, ouvi-me. Que necessidade tendes de vinte e cinco, dez, ou cinco pessoas para vos
servir, em casa que dispõe até mais do dobro disso para tratar de vós?
REGANE - E por que de uma?
LEAR - Oh! não faleis sobre a necessidade. Nossos mendigos mais necessitados muita coisa supérflua
ainda possuem. À natureza concedei apenas o que ela própria exige, e a vida humana tão barata será
como a das feras. És uma dama. Se já fosse luxo andarmos aquecidos, não teria necessidade alguma a
natureza dessas vestes luxuosas que em matéria de aquecimento em nada te protegem. Mas a necessidade
verdadeira... Ó céus, dai-me paciência! É de paciência que necessito agora. Ó deuses! vedes aqui um
pobre velho, tão pesado de anos que de cuidados, duplamente desgraçado! Se acaso levantastes o coração
das filhas contra os pais, não me deixeis tão parvo que suporte tudo isso humildemente; nobre cólera
fazei que em mim desperte, sem deixardes que as armas da mulher, as gotas de água, as faces varonis
manchar me venham. Não, bruxas desumanas! Tal vingança hei de tomar de vós, que o mundo inteiro...
Farei tais coisas - quais, ainda o ignoro - que hão de ser o terror de toda a terra. Pensais talvez que vou
derramar lágrimas? Não, não hei de chorar. Tenho causas sobejas para tanto; mas antes de fazê-lo, há de
partir-se-me o coração em vinte mil pedaços. Bobo, vou ficar louco!
(Saem Lear, Gloster, Kent e o bobo.)
CORNUALHA - Recolhamo-nos; vai haver tempestade.
(Ouve-se a tempestade a distância.)
REGANE - É mui pequena a casa para comportar o velho e mais seus seguidores.
GONERIL - É só dele toda a culpa. Privou-se do conforto, tendo, assim, de provar da própria insânia.
REGANE - De grado o acolheria; mas só ele, sem nenhum de seus homens.
GONERIL - É o que eu penso, também. Mas onde está milorde Gloster? CORNUALHA - Acompanhou
o velho. Ei-lo de volta.
(Volta Gloster.)
GLOSTER - Está furioso o rei.
CORNUALHA - Para onde foi?
GLOSTER - Pede cavalos; mas não sei para onde tenciona dirigir-se.
CORNUALHA - Pois deixemo-lo; saberá conduzir-se.
GONERIL - Não insteis, senhor, de jeito algum para que fique.
GLOSTER - Oh céus! A noite vem baixando, e os ventos penetrantes já sopram com veemência. Em
muitas milhas em redor não se acha facilmente um arbusto.
REGANE - Ora, senhor! os teimosos aprendem com os incômodos que a si mesmos procuram. Fechai
logo vossas portas; os homens que o acompanham são capazes de tudo. O que eles podem induzi-lo a
fazer - sendo de ouvidos tão fáceis de enganar - manda a prudência que com razão temamos.
CORNUALHA - Fechai logo vossas portas, senhor. Minha Regane vos dá um bom conselho. A noite é
horrível; saí da tempestade. Recolhamo-nos.
(Saem.)
EDGAR - Eu próprio ouvi o pregão em que diziam que me acho foragido, tendo à caça conseguido
escapar no oco de uma árvore. Não há porto algum livre, nenhum ponto 59 em que não haja guarda e
rigorosa vigilância, no intuito de apanhar-me. Salvo estarei enquanto fugir deles, pretendendo assumir a
mais abjeta, mais humilde aparência com que nunca, no seu desprezo aos homens, a miséria dos animais
se houvesse aproximado. Lama no rosto hei de passar, nos lombos porei qualquer coberta, desmanchados
trarei sempre os cabelos, e, com minha nudez patente, hei de enfrentar a fúria dos ventos e do céu. Tenho
modelos e precedentes aqui mesmo, nesses mendigos tresloucados que, com urros, nos braços nus e
entorpecidos cravam alfinetes, espinhos, pregos, ramos de rosmaninho e, assim, de aspecto horrível, nas
cabanas, nas vilas miseráveis, nos apriscos de ovelhas, nos moinhos, com imprecações de loucos ou com
rezas a caridade forçam. Pobre Tom! Pobre Turlu! Já sou alguma coisa; mas, como Edgar, serei coisa
nenhuma.
(Sai.)
Cena IV
Diante do castelo de Gloster. Kent no cepo. Entram Lear, o bobo e um gentil-homem.
LEAR - É estranho que de casa se partissem sem me terem reenviado o mensageiro.
GENTIL-HOMEM - Pelo que saber pude, até esta noite tenção não tinham de sair de casa.
KENT - Salve, meu nobre mestre!
LEAR - Como! Fazes da vergonha recreio?
KENT - Não, milorde.
BOBO - Ah! ah! Usa ligas muito duras. Os cavalos são amarrados pela cabeça; cachorros e ursos, pelo
pescoço; os macacos, pela cintura, e os homens pelas pernas. Quando alguém tem as pernas muito
desenvoltas, calça meias de pau.
LEAR - Quem errou a tal ponto com teu posto, para te pôr aí?
KENT - Foi ele e ela; o filho e a filha vossa.
LEAR- Não!
KENT - É certo.
LEAR - Não, repito.
KENT - O contrário eu também digo.
LEAR - Não fariam tal coisa.
KENT - Pois fizeram.
LEAR - Juro por Júpiter que não.
KENT - Por Juno, torno a jurar que sim.
LEAR - Não o ousariam, não poderiam tê-lo feito. For a pior do que um assassínio tal ultraje ao respeito
infligir. Com a mais decente pressa agora me conta de que modo pudeste merecer, ou antes, eles
infligir-te essa pena, se aqui vieste de nossa parte como mensageiro.
KENT - No instante em que, senhor, na casa deles a missiva entreguei de Vossa Alteza, sem que tivesse
tido tempo ainda de alçar-me do lugar em que se achava meu dever ajoelhado, fumegante chegou um
correio, em água todo esfeito de tanta pressa, o fôlego cortado, a arquejar cumprimentos de sua ama,
Goneril. Entregou-lhes uma carta - sem se importar com meu recado em curso - que lida fui de pronto, e
a cujo assunto os homens logo reúnem, vão diretos para os cavalos, dizem-me que os siga e o vagar da
resposta aqui esperasse, dirigindo-me sempre olhares frios. Tendo o outro mensageiro aqui encontrado,
cuja chegada, vira-o bem, a minha havia envenenado - e que era o mesmo velhaco que se comportara
contra Vossa Alteza com tanto atrevimento - mostrando-me mais homem do que sábio, saquei da espada,
enquanto ele alarmava toda a casa com berros de covarde. Acharam, vosso filho e vossa filha, essa
infração bastante grave, para o opróbrio merecer por que ora passo.
BOBO - O inverno ainda não passou, no caso de voarem nesta direção os patos selvagens. Quando os
pais só vestem trapos, os filhos nem querem vê-los; quando são ricos e guapos, são para eles só desvelos.
A Fortuna marafona sempre os pobres abandona. Mas apesar de tudo, tuas filhas te proporcionarão mais
dólares do que possas contar em um ano.
LEAR - Oh! Como ao peito esta paixão me sobe! Desce, "histerica passio", dor que sobe! E em baixo teu
lugar. E onde está a filha?
KENT - Senhor, com o conde, aí dentro.
LEAR - Não me sigas; espera aqui.
(Sai.)
GENTIL-HOMEM - Nenhuma ofensa, acaso, fizestes, a não ser a que contastes?
KENT - Nenhuma. Mas por que traz o rei tão pouca gente?
BOBO - Se tivesses sido posto no tronco por essa pergunta, fora bem merecido.
KENT - Por quê, bobo?
BOBO - Vamos pôr-te a aprender com uma formiga, que te ensinará que no inverno não há trabalho.
Todas as pessoas que seguem o nariz são levadas pelos olhos, com exceção dos cegos, não havendo um
só nariz, entre vinte, que não perceba quem está fedendo. Solta a roda grande, quando ela começar a rolar
colina abaixo, se não quiseres quebrar o pescoço; mas quando a roda grande subir a colina, bem: que te
arraste atrás dela. Quando um sábio te der melhor conselho, dá-lhe o meu de retorno. Quisera que só
fosse seguido pelos velhos, por ser conselho de bobo. Quem a outrem serve e lucro tem em mira, e tudo o
mais desleixa, se chove, apronta a trouxa e se retira, e no pegão o deixa. Mas eu não fugirei; o bobo fica;
seja o sábio fujão. Bobo se torna um biltre, quando estica; mas biltre o bobo, não.
KENT - Onde aprendeste isso, bobo?
BOBO - Não foi no cepo, bobo.
(Volta Lear, com Gloster.)
LEAR - Recusam-se a falar-me? Estão doentes? Fatigados? Viajaram toda a noite? Meras tretas;
imagens, tão-somente, de revolta e abandono. Arranja-me outra resposta mais razoável.
GLOSTER - Meu querido senhor, conheceis bem a natureza colérica do duque e como sempre
persistente se mostra e irredutível em quanto determina.
LEAR - Vingança! Peste! Morte! Confusão! Colérica? Que natureza? Ó Gloster, escuta: falar quero,
neste instante, com o Duque de Cornualha e sua esposa.
GLOSTER - Pois não, senhor; já lhes mandei recado.
LEAR - "Já lhes mandei recado!" Entendes-me, homem?
GLOSTER - Entendo, bom senhor.
LEAR - O rei deseja conversar com Cornualha, o pai querido deseja conversar com a própria filha; quer
ser obedecido. Já lhes deram semelhante "recado"? Sangue e vida! Colérico! O duque é mui colérico!
Dizei ao duque ardente... Não; é cedo. Pode ser que se encontre doente mesmo. A descuidar nos levam
sempre as doenças dos deveres que impõe, sempre, a saúde. Já não somos nós mesmos, quando, opressa,
ordena a natureza ao próprio espírito que padeça com o corpo. Esperar devo; combater quero este pendor
violento que me leva a tomar o acesso mórbido pelo homem são. Que morra o meu prestígio!
(Olhando para Kent.)
Por que razão ele se encontra ali? Esse ato me persuade de que a ausência do duque e da duquesa é
fingimento. Ponham logo meu criado em liberdade! Ide dizer ao duque e sua esposa que desejo falar-lhes
neste instante; agora mesmo! Saiam para ouvir-me; se não, em frente aos aposentos deles irei tocar
tambor de dar a morte ao sono com o barulho.
GLOSTER - Quem me dera que entre vós tudo viesse a concertar-se!
(Sai.)
LEAR - Ai de mim! Sinto o coração subir. Para baixo, de novo!
BOBO - Grita com ele, tio, como fazia a cozinheira com as enguias, ao pô-las vivas na frigideira.
Batia-lhes na cabeça com uma vara e gritava-lhes: "Para baixo, mal-educadas! Para baixo!" No entanto,
tinha um irmão que, por pura bondade, passava manteiga no feno do cavalo.
(Entram Cornualha, Regane, Gloster e criados.)
LEAR - Bom dia aos dois.
CORNUALHA - E salve Vossa Graça.
(Kent é posto em liberdade.)
REGANE - Fico alegre por ver Vossa Grandeza.
LEAR - Sim, Regane, sei disso; como as causas também de pensar dessa maneira. Se o não ficasses, eu
me divorciara da tumba de tua mãe como da de uma mulher adúltera. (A Kent.) Então, liberto? Depois
falamos nisso. Minha cara Regane, ah! tua irmã não vale nada. Ó Regane! a maldade corroedora ela
amarrou aqui, como um abutre.
(Indica o coração.)
Mal te posso falar. Não poderias conceber a maneira desumana... Ah, Regane!
REGANE - Por obséquio, senhor, tende paciência. Penso que estais tão longe de apreciar-lhe todo o
mérito, como de esquecer-se ela de seus deveres.
LEAR - De que modo?
REGANE - Não posso crer que minha irmã se tenha descuidado no mínimo de suas obrigações. Se acaso,
meu senhor, procurou restringir a turbulência de vossos seguidores, deu-se tudo com bases tais e tão
recomendáveis intenções, que de toda pecha a expungem.
LEAR - Lanço-lhe a maldição!
REGANE - O senhor, já estais velho! A natureza chegou em vós ao seu confim postremo. Devereis ser
guiado e governado por alguém que, melhor do que vós mesmo, vossas necessidades compreendesse.
Assim, vos peço, retornai para ela, senhor, e confessai que injusto fostes.
LEAR - Eu, pedir-lhe perdão? Vede como isso vai bem com nossa casa: Amada filha, confesso que sou
velho, sendo certo que a velhice é trambolho. Assim, de joelhos,
(Ajoelha-se.)
peço-vos conceder-me cama, roupa e um pouco de alimento.
REGANE - Meu bondoso senhor, não prossigais. São descabidas essas momices. Retornai para ela.
LEAR (levantando-se) - Jamais, Regane; ela cortou-me o séqüito de metade dos homens, dirigiu-me
olhares carrancudos, alcançando-me o coração com a língua viperina. Que em sua fronte ingrata caiam
todas as vinganças que o céu guardado tenha. Insuflai-lhe nos ossos jovens, ares pestilenciais, humores
deformantes! CORNUALHA - Ora, senhor, que coisa!
LEAR - Lançai-lhe, raios ágeis, vossas flamas ofuscantes nos olhos desdenhosos! Infectai-lhe a beleza,
brumas densas aspiradas dos charcos e engendradas pelo potente sol, para que venha a abater-se-lhe o
orgulho e encarquilhar-se. REGANE - Oh deuses abençoados! Iguais votos me fareis, quando vosso
humor violento tomar conta de vós.
LEAR - Jamais, Regane; jamais terás a minha maldição. Teu ser mui delicado não te leva a nenhuma
aspereza. Os olhos dela são ferozes; os teus, porém, confortam, não causam queimaduras. Não se casa
com tua natureza rogar praga contra minhas vontades, reduzir-me o séqüito, lançar-me termos ásperos,
limitar-me a pensão e, finalmente, ferrolhos antepor à minha entrada. Não; mais do que ela sabes os
deveres da natureza, obrigações dos filhos, o que a delicadeza impõe a todos e à gratidão devemos.
Esquecida não estás da metade do meu reino, que te entreguei por dote.
REGANE - Retornemos ao assunto, senhor. LEAR - Quem pôs meu homem no cepo?
(Ouve-se toque de trombeta.)
CORNUALHA - Que trombeta será essa?
REGANE - Conheço o toque; é minha irmã. Sua carta fica assim confirmada com a notícia de que viria
aqui. Chegou a senhora?
(Entra Osvaldo.)
LEAR - Eis um escravo, cujo orgulho fácil e barato repousa nos favores instáveis da senhora a que ele
serve. Fora da minha vista, sacripanta!
CORNUALHA - Que quer dizer com isso Vossa Graça?
LEAR - Quem ao cepo prendeu este meu criado? Regane, espero que não saibas disto. Mas quem vem
lá?
(Entra Goneril.)
Ó céus, se amais os velhos, se com a obediência vosso cetro brando se compadece, se também sois velho,
tomai o meu partido e vinde pôr-vos ao meu lado.
(A Goneril.) Não tens vergonha, acaso, de olhar para estas barbas? Ó Regane! tomá-la pelas mãos?
GONERIL - Por que não há de fazê-lo, meu senhor? Qual foi meu erro? Nem tudo é ofensa que a tolice
julga e a loucura nomeia.
LEAR - Ó flancos! duros sois por demais! Resistireis ainda? Por que no cepo foi parar meu homem?
CORNUALHA - Fui eu que o pus aí, senhor; mas suas desordens não faziam jus a tanta promoção.
LEAR - Como assim! Fostes vós mesmo?
REGANE - Por obséquio, meu pai; já que sois fraco, comportai-vos de acordo. Se até ao prazo final de
vosso mês vos conformardes em voltar para a mana, e lá ficardes, despedindo metade desse séquito,
vinde, então, para mim. Agora me acho fora de casa, sem dispor dos meios necessários a vosso
tratamento.
LEAR - Procurá-la de novo? Cinqüenta homens despedidos? Jamais! Preferiria abjurar todo abrigo e
expor-me à própria inimizade do ar, em companheiro transformar-me do lobo e da coruja, sob a dura
pressão da adversidade. Voltar para ela? Esse ardoroso França, que recebeu sem dote minha filha mais
nova, para mim fora mais fácil diante do trono dele ir ajoelhar-me e, tal qual escudeiro, mendigar-lhe
pensão mesquinha que esta vida abjeta permita sustentar. Voltar para ela! Antes tornar-me escravo ou ser
azêmola deste palafreneiro detestável.
(Mostrando Osvaldo.)
GONERIL - Senhor, à vossa escolha.
LEAR - Filha, peço-te que não me deixes louco. Não desejo, menina, incomodar-te por mais tempo.
Adeus. Não nos veremos nunca mais; nunca mais voltaremos a encontrar-nos. Mas és meu sangue, minha
carne: filha. Ou melhor: uma doença em minha carne, a que forçado sou a chamar minha; és um inchaço,
uma úlcera pestosa, um carbúnculo podre e tumefeito no meu sangue corrupto. Contudo, não quero
repreender-te. Que a vergonha venha quando quiser; não vou chamá-la. Não pedirei ao portador de raios
que troveje, nem nada a teu respeito direi de mal a Jove, o juiz supremo. Se puderes, emenda-te; melhora
quando quiseres. Posso ser paciente. Posso ficar em casa de Regane com meus cem cavaleiros.
REGANE - Mais cuidado! Não contava convosco, nem me encontro preparada para vos dar condigno
acolhimento. Ouvi, senhor, a mana. Quem põe razão nesses acessos vossos facilmente conclui que já
estais velho. Logo... Ela sabe o que convém ao caso.
LEAR - Isso foi bem falado?
REGANE - Quero crê-lo, senhor. Como! Cinqüenta seguidores? Não vos bastam? Quereis mais gente
ainda? Precisareis de tantos? Sim, que os próprios perigos e as despesas esse número desaconselham.
Como poderia haver paz numa casa entre tão grande número de homens sob comando duplo? É difícil se
não quase impossível.
GONERIL - Por que não poderíeis ser servido pela gente da mana ou pela minha? REGANE - Por que
não, meu senhor? Se qualquer deles de vós se descuidasse, fora fácil repreendê-los por isso. Se quiserdes,
assim, morar comigo - e agora vejo que tal coisa é arriscada - pediria que trouxésseis apenas vinte e
cinco. Para mais não terei lugar nem mesmo disposição.
LEAR - Fui eu que vos dei tudo...
REGANE - E em tempo certo o destes.
LEAR - Instituí-vos minhas depositárias e tutoras, reservando-me apenas uma escolta desse número.
Como! Deveria procurar-vos, então, com vinte e cinco? Regane, assim falastes?
REGANE - E repito-o; nem mais um, meu senhor.
LEAR - Certas criaturas boa aparência apresentar conseguem, quando outras em maldade as sobrepujam.
Não sendo as piores, cabem-lhe elogios. Contigo ficarei; os teus cinqüenta o dobro são dos vinte e cinco
dela, e o seu amor tu vales duas vezes.
GONERIL - Senhor, ouvi-me. Que necessidade tendes de vinte e cinco, dez, ou cinco pessoas para vos
servir, em casa que dispõe até mais do dobro disso para tratar de vós?
REGANE - E por que de uma?
LEAR - Oh! não faleis sobre a necessidade. Nossos mendigos mais necessitados muita coisa supérflua
ainda possuem. À natureza concedei apenas o que ela própria exige, e a vida humana tão barata será
como a das feras. És uma dama. Se já fosse luxo andarmos aquecidos, não teria necessidade alguma a
natureza dessas vestes luxuosas que em matéria de aquecimento em nada te protegem. Mas a necessidade
verdadeira... Ó céus, dai-me paciência! É de paciência que necessito agora. Ó deuses! vedes aqui um
pobre velho, tão pesado de anos que de cuidados, duplamente desgraçado! Se acaso levantastes o coração
das filhas contra os pais, não me deixeis tão parvo que suporte tudo isso humildemente; nobre cólera
fazei que em mim desperte, sem deixardes que as armas da mulher, as gotas de água, as faces varonis
manchar me venham. Não, bruxas desumanas! Tal vingança hei de tomar de vós, que o mundo inteiro...
Farei tais coisas - quais, ainda o ignoro - que hão de ser o terror de toda a terra. Pensais talvez que vou
derramar lágrimas? Não, não hei de chorar. Tenho causas sobejas para tanto; mas antes de fazê-lo, há de
partir-se-me o coração em vinte mil pedaços. Bobo, vou ficar louco!
(Saem Lear, Gloster, Kent e o bobo.)
CORNUALHA - Recolhamo-nos; vai haver tempestade.
(Ouve-se a tempestade a distância.)
REGANE - É mui pequena a casa para comportar o velho e mais seus seguidores.
GONERIL - É só dele toda a culpa. Privou-se do conforto, tendo, assim, de provar da própria insânia.
REGANE - De grado o acolheria; mas só ele, sem nenhum de seus homens.
GONERIL - É o que eu penso, também. Mas onde está milorde Gloster? CORNUALHA - Acompanhou
o velho. Ei-lo de volta.
(Volta Gloster.)
GLOSTER - Está furioso o rei.
CORNUALHA - Para onde foi?
GLOSTER - Pede cavalos; mas não sei para onde tenciona dirigir-se.
CORNUALHA - Pois deixemo-lo; saberá conduzir-se.
GONERIL - Não insteis, senhor, de jeito algum para que fique.
GLOSTER - Oh céus! A noite vem baixando, e os ventos penetrantes já sopram com veemência. Em
muitas milhas em redor não se acha facilmente um arbusto.
REGANE - Ora, senhor! os teimosos aprendem com os incômodos que a si mesmos procuram. Fechai
logo vossas portas; os homens que o acompanham são capazes de tudo. O que eles podem induzi-lo a
fazer - sendo de ouvidos tão fáceis de enganar - manda a prudência que com razão temamos.
CORNUALHA - Fechai logo vossas portas, senhor. Minha Regane vos dá um bom conselho. A noite é
horrível; saí da tempestade. Recolhamo-nos.
(Saem.)
REI LEAR, ATO III, Cena III
Um quarto no castelo de Gloster. Entram Gloster e Edmundo.
GLOSTER - Ah, Edmundo, Edmundo! Não me agrada esse procedimento desnaturado. Quando lhes pedi
permissão para apiedar-me dele, privaram-me do uso de minha própria casa, proibindo-me, sob pena de
seu perpétuo descontentamento, de falar a respeito dele, de interceder a seu favor ou de ir-lhe em auxílio
de qualquer maneira.
EDMUNDO - Por demais selvagem e contrário à natureza.
GLOSTER - Acomoda-te; não digas nada. Há divisão entre os duques, e pior do que isso. Esta noite
recebi uma carta. É perigoso falar nisso. Tranquei-a no meu gabinete. Os sofrimentos por que o rei agora
está passando, serão oportunamente vingados. Parte do exército já desembarcou; teremos de ficar do lado
do rei. Vou procurá-lo secretamente e ajudá-lo. Ide conversar com o duque, para que não seja percebida
minha caridade. Se ele perguntar por mim, estou doente e de cama. Ainda que eu venha a perder a vida -
que é o menos com que estou ameaçado - é preciso que o rei, meu velho amo, seja socorrido. Há alguma
coisa muito estranha em perspectiva, Edmundo. Aconselho-vos cautela.
(Sai.)
EDMUNDO - A caridade que te foi proibida será comunicada logo ao duque, como a carta também, o
que parece serviço meritório que me rende quanto meu pai perder, a saber: tudo. Exulta o moço, o velho
fica mudo.
(Sai.)
GLOSTER - Ah, Edmundo, Edmundo! Não me agrada esse procedimento desnaturado. Quando lhes pedi
permissão para apiedar-me dele, privaram-me do uso de minha própria casa, proibindo-me, sob pena de
seu perpétuo descontentamento, de falar a respeito dele, de interceder a seu favor ou de ir-lhe em auxílio
de qualquer maneira.
EDMUNDO - Por demais selvagem e contrário à natureza.
GLOSTER - Acomoda-te; não digas nada. Há divisão entre os duques, e pior do que isso. Esta noite
recebi uma carta. É perigoso falar nisso. Tranquei-a no meu gabinete. Os sofrimentos por que o rei agora
está passando, serão oportunamente vingados. Parte do exército já desembarcou; teremos de ficar do lado
do rei. Vou procurá-lo secretamente e ajudá-lo. Ide conversar com o duque, para que não seja percebida
minha caridade. Se ele perguntar por mim, estou doente e de cama. Ainda que eu venha a perder a vida -
que é o menos com que estou ameaçado - é preciso que o rei, meu velho amo, seja socorrido. Há alguma
coisa muito estranha em perspectiva, Edmundo. Aconselho-vos cautela.
(Sai.)
EDMUNDO - A caridade que te foi proibida será comunicada logo ao duque, como a carta também, o
que parece serviço meritório que me rende quanto meu pai perder, a saber: tudo. Exulta o moço, o velho
fica mudo.
(Sai.)
REI LEAR, ATO III, Cena II
Outra parte da charneca. A tempestade continua. Entram Lear e o bobo.
LEAR - Ventos, soprai de arrebentar as próprias bochechas! Enraivai! Soprai com força! Trombas e
cataratas, derramai-vos até terdes coberto os campanários e afogado seus galos! Sulfurosos raios, velozes
como o pensamento, vanguarda dos coriscos que os carvalhos abrem de meio a meio, chamuscai-me a
cabeleira branca! E tu, trovão de tudo abalador, achata a espessa redondeza do mundo, quebra os moldes
da natureza e de uma vez desfaze todos os germes geradores do homem sem gratidão.
BOBO - Ó tio, mais vale água benta no pátio de uma casa seca, do que toda esta água de chuva ao ar
livre. Vai para dentro, bom tio, e pede a bênção de tuas filhas. Uma noite como esta não se apiada nem
de sábios nem de bobos.
LEAR - Deixa o vento roncar! Escarra, fogo! Jorra, chuva! Os trovões, o vento, o fogo, minhas filhas não
são. Não vos acuso de ingratos, elementos. Nunca um reino vos dei, nem vos chamei sequer de filhos.
Não me deveis nenhuma obediência. Que caia, pois, vosso prazer horrível. Aqui me encontro, vosso
escravo, um velho pobre, fraco, sem forças, desprezado. No entretanto, declaro-vos ministros servis, pois
com duas filhas perniciosas, travais vossas batalhas de alta origem contra uma fronte tão encanecida e tão
velha como esta. Oh! Que vergonha! BOBO - Quem tem uma casa onde enfiar a cabeça, dispõe de um
bom chapéu. Quando a braguilha quer casa, sem que o dono tenha abrigo dos piolhos é a grande vasa,
que isso é vida de mendigo. Quem põe o dedão do pé onde tem o coração, vive a gemer - a-la-fé! - por
calos que insônia dão, pois nunca ouve mulher bonita que não fizesse caretas ao espelho.
(Entra Kent.)
LEAR - Quero ser um modelo de paciência; não direi nada.
KENT - Quem está aí?
BOBO - Ora, uma majestade e uma braguilha, isto é, um sábio e um bobo.
KENT - Oh senhor! Vós aqui? Nenhuma coisa que da noite se agrada, se acomoda a uma noite como
esta. Os céus furiosos metem medo até mesmo nos rondantes da escuridão, retendo-os em seus antros.
Desde que me fiz homem não me lembro de ter presenciado tantas faixas de fogo, tanto estouro de
terríficos trovões, tantos lamentos e bramidos dos ventos e da chuva. A natureza do homem não pode
suportar o medo e a aflição que vêm disso.
LEAR - Grandes deuses, que tanto estrondo sobre nós retendes, agora procurai vossos imigos! Treme,
malvado, em quem se ocultam crimes pela justiça ainda não punidos! Mão sanguinária, oculta-te!
Perjuro, tu também; como tu, falso virtuoso, que praticas o incesto! Em estilhaços arrebenta, bargante,
que atentaste contra a vida de alguém sob aparência tranqüila e sedutora! Atrocidades no fundo ocultas,
estourai as capas que vos escondem e implorai as graças desses admoestadores pavorosos! Quanto a
mim, sou mais vítima de culpa, do que mesmo culpado.
KENT - Oh! que tristeza! Cabeça descoberta! Meu gracioso soberano, aqui perto há uma cabana, que
oferecer-vos pode algum abrigo contra o mau tempo. Recolhei-vos a ela, enquanto eu volto àquela casa
dura - mais dura do que as pedras de que é feita, e que, há momentos, quando eu pretendia saber notícias
vossas, me negou té mesmo a entrada - para que lhes force a avara cortesia.
LEAR - Sinto o espírito girar em torno. Vamos, meu pequeno! Como te sentes, caro? Muito frio? Eu
também. Companheiro, onde é que há palha? É por demais estranha a arte dos pobres que faz preciosas
as mais baixas coisas. Vossa cabana... Seja! Pobre bobo, tenho no coração um lugarzinho que se apiada
de ti. BOBO - Se não perdeste de todo a mente, com hei com hô, com tamanha chuva, com a própria
sorte fica contente, embora chova todos os dias.
LEAR - É certo, meu pequeno; vamos, leva-nos para essa tal cabana.
(Saem Lear e Kent.)
BOBO - Eis uma bela noite para deixar fria uma cortesã. Mas antes de sair quero fazer uma profecia:
Quando por obras converter a Igreja e água puser o dono na cerveja; quando o nobre for mestre do
alfaiate, e a fogueira não mais o herege mate, mas apenas o amante apaixonado; quando só houver
processo bem julgado, dívidas não tiver o cavaleiro e a calúnia poupar o mundo inteiro; quando evitar o
experto a turbamulta e a arca do avaro não ficar oculta; quando as alcoviteiras eloqüentes construírem
templos caros e imponentes: cairá em confusão este reino de Albião. Então verá quem vivo ainda estiver
que com os pés andam o homem e a mulher. Esta profecia será feita por Merlino, porque eu vivo antes do
tempo dele.
(Sai.)
LEAR - Ventos, soprai de arrebentar as próprias bochechas! Enraivai! Soprai com força! Trombas e
cataratas, derramai-vos até terdes coberto os campanários e afogado seus galos! Sulfurosos raios, velozes
como o pensamento, vanguarda dos coriscos que os carvalhos abrem de meio a meio, chamuscai-me a
cabeleira branca! E tu, trovão de tudo abalador, achata a espessa redondeza do mundo, quebra os moldes
da natureza e de uma vez desfaze todos os germes geradores do homem sem gratidão.
BOBO - Ó tio, mais vale água benta no pátio de uma casa seca, do que toda esta água de chuva ao ar
livre. Vai para dentro, bom tio, e pede a bênção de tuas filhas. Uma noite como esta não se apiada nem
de sábios nem de bobos.
LEAR - Deixa o vento roncar! Escarra, fogo! Jorra, chuva! Os trovões, o vento, o fogo, minhas filhas não
são. Não vos acuso de ingratos, elementos. Nunca um reino vos dei, nem vos chamei sequer de filhos.
Não me deveis nenhuma obediência. Que caia, pois, vosso prazer horrível. Aqui me encontro, vosso
escravo, um velho pobre, fraco, sem forças, desprezado. No entretanto, declaro-vos ministros servis, pois
com duas filhas perniciosas, travais vossas batalhas de alta origem contra uma fronte tão encanecida e tão
velha como esta. Oh! Que vergonha! BOBO - Quem tem uma casa onde enfiar a cabeça, dispõe de um
bom chapéu. Quando a braguilha quer casa, sem que o dono tenha abrigo dos piolhos é a grande vasa,
que isso é vida de mendigo. Quem põe o dedão do pé onde tem o coração, vive a gemer - a-la-fé! - por
calos que insônia dão, pois nunca ouve mulher bonita que não fizesse caretas ao espelho.
(Entra Kent.)
LEAR - Quero ser um modelo de paciência; não direi nada.
KENT - Quem está aí?
BOBO - Ora, uma majestade e uma braguilha, isto é, um sábio e um bobo.
KENT - Oh senhor! Vós aqui? Nenhuma coisa que da noite se agrada, se acomoda a uma noite como
esta. Os céus furiosos metem medo até mesmo nos rondantes da escuridão, retendo-os em seus antros.
Desde que me fiz homem não me lembro de ter presenciado tantas faixas de fogo, tanto estouro de
terríficos trovões, tantos lamentos e bramidos dos ventos e da chuva. A natureza do homem não pode
suportar o medo e a aflição que vêm disso.
LEAR - Grandes deuses, que tanto estrondo sobre nós retendes, agora procurai vossos imigos! Treme,
malvado, em quem se ocultam crimes pela justiça ainda não punidos! Mão sanguinária, oculta-te!
Perjuro, tu também; como tu, falso virtuoso, que praticas o incesto! Em estilhaços arrebenta, bargante,
que atentaste contra a vida de alguém sob aparência tranqüila e sedutora! Atrocidades no fundo ocultas,
estourai as capas que vos escondem e implorai as graças desses admoestadores pavorosos! Quanto a
mim, sou mais vítima de culpa, do que mesmo culpado.
KENT - Oh! que tristeza! Cabeça descoberta! Meu gracioso soberano, aqui perto há uma cabana, que
oferecer-vos pode algum abrigo contra o mau tempo. Recolhei-vos a ela, enquanto eu volto àquela casa
dura - mais dura do que as pedras de que é feita, e que, há momentos, quando eu pretendia saber notícias
vossas, me negou té mesmo a entrada - para que lhes force a avara cortesia.
LEAR - Sinto o espírito girar em torno. Vamos, meu pequeno! Como te sentes, caro? Muito frio? Eu
também. Companheiro, onde é que há palha? É por demais estranha a arte dos pobres que faz preciosas
as mais baixas coisas. Vossa cabana... Seja! Pobre bobo, tenho no coração um lugarzinho que se apiada
de ti. BOBO - Se não perdeste de todo a mente, com hei com hô, com tamanha chuva, com a própria
sorte fica contente, embora chova todos os dias.
LEAR - É certo, meu pequeno; vamos, leva-nos para essa tal cabana.
(Saem Lear e Kent.)
BOBO - Eis uma bela noite para deixar fria uma cortesã. Mas antes de sair quero fazer uma profecia:
Quando por obras converter a Igreja e água puser o dono na cerveja; quando o nobre for mestre do
alfaiate, e a fogueira não mais o herege mate, mas apenas o amante apaixonado; quando só houver
processo bem julgado, dívidas não tiver o cavaleiro e a calúnia poupar o mundo inteiro; quando evitar o
experto a turbamulta e a arca do avaro não ficar oculta; quando as alcoviteiras eloqüentes construírem
templos caros e imponentes: cairá em confusão este reino de Albião. Então verá quem vivo ainda estiver
que com os pés andam o homem e a mulher. Esta profecia será feita por Merlino, porque eu vivo antes do
tempo dele.
(Sai.)
REI LEAR, ATO III, Cena V
Um quarto no castelo de Gloster. Entram Cornualha e Edmundo.
CORNUALHA - Hei de vingar-me antes de deixar a casa dele.
EDMUNDO - As censuras, milorde, de que eu poderei ser alvo, por permitir que a natureza ceda a tal
ponto à lealdade, deixam-me bastante apreensivo.
CORNUALHA - Percebo agora que não foram absolutamente as más inclinações de vosso irmão que o
levaram a procurar a morte dele, senão o meritório impulso que se viu estimulado pela ruindade
condenável dele próprio.
EDMUNDO - Como é pérfido o meu destino, que me leva a arrepender-me de ser justo! Aqui está a carta
de que ele falou; traz a prova de que é partidário dos interesses da França. Oh céus! Quem me dera que
não houvesse semelhante traição, ou que não fosse eu o delator!
CORNUALHA - Vem comigo procurar a duquesa.
EDMUNDO - Se for verdadeiro o conteúdo dessa folha, tendes em mãos um negócio muito sério.
CORNUALHA - Verdadeiro ou falso, ele te fez conde de Gloster. Descobre onde está teu pai, para que
eu providencie logo sua prisão. EDMUNDO (à parte) - Se eu o encontrar confortando o rei, isso virá
reforçar as suspeitas do duque. - Hei de manter-me na trilha da lealdade, por mais doloroso que seja o
conflito entre ela e meu sangue.
CORNUALHA - Depositarei em ti minha confiança; em meu amor encontrarás um pai mais carinhoso.
(Saem.)
CORNUALHA - Hei de vingar-me antes de deixar a casa dele.
EDMUNDO - As censuras, milorde, de que eu poderei ser alvo, por permitir que a natureza ceda a tal
ponto à lealdade, deixam-me bastante apreensivo.
CORNUALHA - Percebo agora que não foram absolutamente as más inclinações de vosso irmão que o
levaram a procurar a morte dele, senão o meritório impulso que se viu estimulado pela ruindade
condenável dele próprio.
EDMUNDO - Como é pérfido o meu destino, que me leva a arrepender-me de ser justo! Aqui está a carta
de que ele falou; traz a prova de que é partidário dos interesses da França. Oh céus! Quem me dera que
não houvesse semelhante traição, ou que não fosse eu o delator!
CORNUALHA - Vem comigo procurar a duquesa.
EDMUNDO - Se for verdadeiro o conteúdo dessa folha, tendes em mãos um negócio muito sério.
CORNUALHA - Verdadeiro ou falso, ele te fez conde de Gloster. Descobre onde está teu pai, para que
eu providencie logo sua prisão. EDMUNDO (à parte) - Se eu o encontrar confortando o rei, isso virá
reforçar as suspeitas do duque. - Hei de manter-me na trilha da lealdade, por mais doloroso que seja o
conflito entre ela e meu sangue.
CORNUALHA - Depositarei em ti minha confiança; em meu amor encontrarás um pai mais carinhoso.
(Saem.)
REI LEAR, ATO III, Cena VI
Uma cabana próxima do castelo. Entram Gloster, Lear, Kent, o bobo e Edgar.
GLOSTER - Aqui é melhor do que ao ar livre; aceitai de bom coração. Vou providenciar para o vosso
conforto como me for possível; não me demorarei. KENT - Toda a força de seu espírito cedeu diante da
indignação. Que os deuses recompensem vossa bondade.
(Sai Gloster.)
EDGAR - Frateretto me chama para dizer que Nero é um pescador no lago das trevas. Reza, inocente, e
toma cuidado com o inimigo impuro.
BOBO - Tio, por obséquio, dize-me se um louco é gentil-homem ou fazendeiro.
LEAR - Um rei! Um rei!
BOBO - Não; foi o fazendeiro que teve um filho gentil-homem; porque é preciso ser fazendeiro louco,
para deixar que o filho se torne gentil-homem antes dele.
LEAR - Oh! Se mil, a um só tempo, de espetos rubros, se atirassem sobre elas, assobiando...
EDGAR - O demônio impuro está me mordendo as costas.
BOBO - Louco é quem se fia na mansidão do lobo, na saúde do cavalo, no amor de um rapaz e no
juramento de uma prostituta.
LEAR - Assim farei. Vou intimá-las já.
(A Edgar.)
Senta-te aqui, doutíssimo juiz. (Ao bobo.) E vós, aqui, sábio senhor. E agora passemos às raposas.
EDGAR - Vede! está ele com os olhos fixos! Precisas de olhos para o processo, madame? Vem para cá,
Bessy; pula o regato.
BOBO - O barco dela é furado; por isso ela tem cuidado. Por que, então, não arrisca a vir por cima?
EDGAR - O demônio impuro persegue o pobre Tom sob a voz de um rouxinol; Hopdance grita na
barriga de Tom por dois arenques brancos. Pára de coaxar, anjo negro! Não tenho alimento para dar-te.
KENT - Como passais, senhor? Ficai mais calmo. Não quereis repousar no travesseiro?
LEAR - Primeiro quero ver o julgamento. Trazei as testemunhas. (A Edgar.) Juiz togado, senta-te logo.
(Ao bobo.) E tu, seu companheiro de jugo na Justiça, ao lado dele. (A Kent.) Vós sois da comissão;
sentai-vos aí!
EDDGAR - Procedamos com justiça. Dormes ou velas, belo pastorzinho? teu anho está no trigo. Mas a
um grito de tua rósea boca, não correrá perigo. Prrr! O gato é cinzento.
LEAR - Citei esta em primeiro lugar; é Goneril. Presto juramento diante desta honrada assembléia em
como ela deu um pontapé no pobre rei seu pai.
EDGAR - Vinde mais para a frente, moça! Vosso nome é Goneril?
LEAR - Não poderá negá-lo.
BOBO - Peço desculpas, mas tomei-vos por um tamborete.
LEAR - Aqui está a outra, cujo olhar de esguelha proclama o que no coração se abriga. Prendei-a logo!
Armas! espada, fogo! A corrupção campeia! Juiz corrupto, por que deixaste que ela fosse embora?
EDGAR - Abençoados sejam teus cinco espíritos!
KENT - Oh! piedade, senhor! Onde pusestes a paciência de que faláveis tanto, jurando conservá-la?
EDGAR (à parte) - Tanto as lágrimas ficam do lado dele, que me ameaçam estragar todo o plano.
LEAR - Este cãozinho, vede, e os outros, Gracioso, Fiel e Neve, se atiram contra mim.
EDGAR - Tom vai atirar-lhes sua própria cabeça. Fora daqui, mastins! De goelas brancas ou pretas,
dentes sujos e caretas, mastim, galgo ou perdigueiro, molosso tardo ou ligeiro, de pêlo curto ou lanzudo,
Tom vai dar cabo de tudo. Contra eles o coco atiro, fazendo-os correr em giro. Do, de, de, de. Sessa!
Vamos, marchai para as festas de igreja, feiras e mercados. Pobre Tom, teu chifre está vazio.
LEAR - Agora dissequem Regane, para ver o que brota de junto do coração dela. Há alguma causa
natural que torne endurecidos esses corações? (A Edgar.) Vós, senhor, considero-vos um dos meus cem
homens; apenas não me agrada o corte de vossas vestes. Ireis dizer-me que foram feitas à moda persa.
Contudo, será conveniente mudá-las.
KENT - Agora, meu bom senhor, ide deitar-vos um pouco, para repousar.
LEAR - Nada de barulho, nada de barulho... Correi a cortina... Assim, assim, assim... Pela manhã
cearemos. Assim, assim, assim...
BOBO - E ao meio-dia irei deitar-me.
(Volta Gloster.)
GLOSTER - Aproxima-te, amigo. Onde está o rei, meu mestre?
KENT - Aqui, senhor; mas não o perturbeis; perdeu a razão.
GLOSTER - Carrega-o, caro amigo, por obséquio. Há uma conjura contra a vida dele. Aqui perto há uma
maca; deita-o nela e corre, amigo, para Dover, onde irás achar boa acolhida e amparo. Levanta teu
senhor; se demorares meia hora que seja, a vida dele, como a luta e a de todos os que o seguem, correm
para uma perda inevitável. Levante-o com bem jeito e vem comigo, que vou prover-te com bastante
urgência do que for necessário.
KENT - A natureza cansada adormeceu. Este repouso poderia deitar-te um linimento nos nervos
torturados, que, na falta de boas condições, dificilmente chegarão a sarar. (Ao bobo.) Vamos, ajuda-me a
carregar teu mestre. Tu não podes, também, ficar aqui.
GLOSTER - Vamos logo, (Saem Kent, Gloster e o bobo, carregando Lear.)
EDGAR - Ao veres teu senhor sofrer teus males, convences-te de que de nada vales. Quem sofre só,
padece em pensamento, por na dita passada estar atento. O espírito não fica em desalinho, quando
consegue a dor algum vizinho. Quão leve me parece o fardo ingente que me deixa encurvado e o rei
gemente! Fez-me meu pai o que para ele as filhas. Tom, cuidado com as vozes! Tu te humilhas somente
enquanto a falsidade dura te conservar desviado da ventura. Venha o que vier, contento que o rei fuja.
Atenção! Atenção!
(Sai.)
GLOSTER - Aqui é melhor do que ao ar livre; aceitai de bom coração. Vou providenciar para o vosso
conforto como me for possível; não me demorarei. KENT - Toda a força de seu espírito cedeu diante da
indignação. Que os deuses recompensem vossa bondade.
(Sai Gloster.)
EDGAR - Frateretto me chama para dizer que Nero é um pescador no lago das trevas. Reza, inocente, e
toma cuidado com o inimigo impuro.
BOBO - Tio, por obséquio, dize-me se um louco é gentil-homem ou fazendeiro.
LEAR - Um rei! Um rei!
BOBO - Não; foi o fazendeiro que teve um filho gentil-homem; porque é preciso ser fazendeiro louco,
para deixar que o filho se torne gentil-homem antes dele.
LEAR - Oh! Se mil, a um só tempo, de espetos rubros, se atirassem sobre elas, assobiando...
EDGAR - O demônio impuro está me mordendo as costas.
BOBO - Louco é quem se fia na mansidão do lobo, na saúde do cavalo, no amor de um rapaz e no
juramento de uma prostituta.
LEAR - Assim farei. Vou intimá-las já.
(A Edgar.)
Senta-te aqui, doutíssimo juiz. (Ao bobo.) E vós, aqui, sábio senhor. E agora passemos às raposas.
EDGAR - Vede! está ele com os olhos fixos! Precisas de olhos para o processo, madame? Vem para cá,
Bessy; pula o regato.
BOBO - O barco dela é furado; por isso ela tem cuidado. Por que, então, não arrisca a vir por cima?
EDGAR - O demônio impuro persegue o pobre Tom sob a voz de um rouxinol; Hopdance grita na
barriga de Tom por dois arenques brancos. Pára de coaxar, anjo negro! Não tenho alimento para dar-te.
KENT - Como passais, senhor? Ficai mais calmo. Não quereis repousar no travesseiro?
LEAR - Primeiro quero ver o julgamento. Trazei as testemunhas. (A Edgar.) Juiz togado, senta-te logo.
(Ao bobo.) E tu, seu companheiro de jugo na Justiça, ao lado dele. (A Kent.) Vós sois da comissão;
sentai-vos aí!
EDDGAR - Procedamos com justiça. Dormes ou velas, belo pastorzinho? teu anho está no trigo. Mas a
um grito de tua rósea boca, não correrá perigo. Prrr! O gato é cinzento.
LEAR - Citei esta em primeiro lugar; é Goneril. Presto juramento diante desta honrada assembléia em
como ela deu um pontapé no pobre rei seu pai.
EDGAR - Vinde mais para a frente, moça! Vosso nome é Goneril?
LEAR - Não poderá negá-lo.
BOBO - Peço desculpas, mas tomei-vos por um tamborete.
LEAR - Aqui está a outra, cujo olhar de esguelha proclama o que no coração se abriga. Prendei-a logo!
Armas! espada, fogo! A corrupção campeia! Juiz corrupto, por que deixaste que ela fosse embora?
EDGAR - Abençoados sejam teus cinco espíritos!
KENT - Oh! piedade, senhor! Onde pusestes a paciência de que faláveis tanto, jurando conservá-la?
EDGAR (à parte) - Tanto as lágrimas ficam do lado dele, que me ameaçam estragar todo o plano.
LEAR - Este cãozinho, vede, e os outros, Gracioso, Fiel e Neve, se atiram contra mim.
EDGAR - Tom vai atirar-lhes sua própria cabeça. Fora daqui, mastins! De goelas brancas ou pretas,
dentes sujos e caretas, mastim, galgo ou perdigueiro, molosso tardo ou ligeiro, de pêlo curto ou lanzudo,
Tom vai dar cabo de tudo. Contra eles o coco atiro, fazendo-os correr em giro. Do, de, de, de. Sessa!
Vamos, marchai para as festas de igreja, feiras e mercados. Pobre Tom, teu chifre está vazio.
LEAR - Agora dissequem Regane, para ver o que brota de junto do coração dela. Há alguma causa
natural que torne endurecidos esses corações? (A Edgar.) Vós, senhor, considero-vos um dos meus cem
homens; apenas não me agrada o corte de vossas vestes. Ireis dizer-me que foram feitas à moda persa.
Contudo, será conveniente mudá-las.
KENT - Agora, meu bom senhor, ide deitar-vos um pouco, para repousar.
LEAR - Nada de barulho, nada de barulho... Correi a cortina... Assim, assim, assim... Pela manhã
cearemos. Assim, assim, assim...
BOBO - E ao meio-dia irei deitar-me.
(Volta Gloster.)
GLOSTER - Aproxima-te, amigo. Onde está o rei, meu mestre?
KENT - Aqui, senhor; mas não o perturbeis; perdeu a razão.
GLOSTER - Carrega-o, caro amigo, por obséquio. Há uma conjura contra a vida dele. Aqui perto há uma
maca; deita-o nela e corre, amigo, para Dover, onde irás achar boa acolhida e amparo. Levanta teu
senhor; se demorares meia hora que seja, a vida dele, como a luta e a de todos os que o seguem, correm
para uma perda inevitável. Levante-o com bem jeito e vem comigo, que vou prover-te com bastante
urgência do que for necessário.
KENT - A natureza cansada adormeceu. Este repouso poderia deitar-te um linimento nos nervos
torturados, que, na falta de boas condições, dificilmente chegarão a sarar. (Ao bobo.) Vamos, ajuda-me a
carregar teu mestre. Tu não podes, também, ficar aqui.
GLOSTER - Vamos logo, (Saem Kent, Gloster e o bobo, carregando Lear.)
EDGAR - Ao veres teu senhor sofrer teus males, convences-te de que de nada vales. Quem sofre só,
padece em pensamento, por na dita passada estar atento. O espírito não fica em desalinho, quando
consegue a dor algum vizinho. Quão leve me parece o fardo ingente que me deixa encurvado e o rei
gemente! Fez-me meu pai o que para ele as filhas. Tom, cuidado com as vozes! Tu te humilhas somente
enquanto a falsidade dura te conservar desviado da ventura. Venha o que vier, contento que o rei fuja.
Atenção! Atenção!
(Sai.)
REI LEAR, ATO III, Cena VII
Um quarto no castelo de Gloster. Entram Cornualha, Regane, Goneril, Edmundo e criados.
CORNUALHA - Parti com toda pressa para onde está milorde vosso marido e mostrai-lhe esta carta. O
exército da França desembarcou. - Procurai o traidor Gloster.
REGANE - Enforcai-o imediatamente.
GONERIL - Arrancai-lhe os olhos.
CORNUALHA - Deixai-o aos cuidados do meu desprazer. Edmundo, fazei companhia a nossa irmã; as
vinganças que vamos ser forçados a tomar de vosso pai traidor não são adequadas para vossa vista.
Avisai o duque, para a casa de quem vos dirigis, que se prepare com a maior urgência possível, porque
faremos o mesmo. Nossos correios não se pouparão, para manter entre nós o entendimento preciso.
Adeus, querida irmã; adeus, milorde de Gloster.
(Entra Osvaldo.)
Então! Onde está o rei?
OSVALDO - Levou-o para longe lorde Gloster. Cerca de trinta e cinco ou trinta e seis de seus homens,
sequiosos de encontrá-lo, o esperaram à porta, e em companhia de outros homens do lorde se fizeram no
caminho de Dover, onde todos se jactam de possuir sócios armados.
CORNUALHA - Prepara a condução para a senhora.
GONERIL - Adeus, doce senhor; adeus, irmã.
CORNUALHA - Adeus, Edmundo.
(Saem Goneril, Edmundo e Osvaldo.)
Ide e trazei-me Gloster, esse traidor; os braços algemai-lhe como a um ladrão e em nossa frente o ponde.
(Saem outros criados.)
Embora não possamos pronunciar-nos, sem as formas legais, contra sua vida, poderá nossa força cortesia
fazer a nossa cólera, o que os homens talvez censurem, mas obstar não podem. Quem vem lá! Ó traidor?
(Voltam os criados, com Gloster.)
REGANE - Raposa ingrata! É ele mesmo.
CORNUALHA - Amarrai-lhe os braços leves.
GLOSTER - Que intendem Vossas Graças? Bons amigos, considerai que sois aqui meus hóspedes. Não
me trateis, amigos, com desprezo.
CORNUALHA - Amarrai-o, já disse!
(Os criados amarram Gloster.)
REGANE - Com mais força! Traidor infecto!
GLOSTER - Dama sem piedade, não sou o que dizeis.
CORNUALHA - Nesta cadeira; amarrai-o! Vilão, vais ver agora...
(Regane puxa a barba de Gloster.)
GLOSTER - Pelos deuses bondosos, é ignomínia puxar-me pela barba.
REGANE - Tão branco e tão traidor!
GLOSTER - Perversa dama, os fios que do queixo ora me arrancas, hão de ficar de pé para acusar-te.
Meus hóspedes sois todos; não devíeis com mãos rapaces machucar-me os traços de dono desta casa.
Que quereis?
CORNUALHA - Vamos, senhor; dizei-me: que notícias recebestes de França?
REGANE - Sede breve no que disserdes, pois sabemos tudo.
CORNUALHA - E que pacto firmastes com os traidores que saltaram há pouco em nosso reino?
REGANE - A que mãos entregastes o rei louco? Falai!
GLOSTER - Às mãos me veio uma missiva baseada em conjeturas de pessoa neutra e imparcial, não de
qualquer imigo.
CORNUALHA - Astuciosa.
REGANE - Traidora.
CORNUALHA - E o rei, para onde o enviaste?
GLOSTER - Para Dover.
REGANE - Por que Dover? Avisado não foras, sob o risco...
CORNUALHA - Por que Dover? Primeiro responde a isso.
GLOSTER - Estou atado ao poste; é-me impossível fugir destes assaltos.
REGANE - Por que Dover?
GLOSTER - Porque essas unhas cruéis não lhe arrancassem os pobres olhos, velhos e cansados, nem tua
irmã selvagem lhe enterasse no corpo ungido as presas de javardo. O mar em tempestade como a que ele
suportou na cabeça descoberta nesta noite infernal, se empolaria para apagar o fogo das estrelas. E o
pobre coração, tão velho, a chuva do céu fez aumentar! Se os próprios lobos, com um tempo destes,
ululado houvessem diante de tuas portas, certamente terias dito: "Bom porteiro, vira depressa a chave!"
Todas as crueldades ficariam riscadas. Mas ainda hei de ver a vingança de asas fortes cair sobre tais
filhos.
CORNUALHA - Veres? Nunca! Segurai a cadeira com firmeza. Vou pôr os pés em cima de teus olhos.
GLOSTER - Quem espera viver até à velhice, venha ajudar-me agora. Oh monstro! Oh deuses!
(É arrancado um dos olhos de Gloster.)
REGANE - O outro também, para não rir daquele.
CORNUALHA - Se virdes a vingança...
PRIMEIRO CRIADO - Suspendei, milorde, a mão. Servi-vos desde criança; mas nunca vos prestei tão
bom serviço, como ao pedir agora que parásseis.
REGANE - Como, cachorro?
PRIMEIRO CRIADO - Se trouxésseis barba no queixo eu a arrancara nesta briga. Que pretendeis?
CORNUALHA - Um dos meus criados? Como!
(Saca da espada.)
PRIMEIRO CRIADO - Avançai, pois, e vos medi com a cólera.
(Desembainha a espada; lutam.)
(Cornualha é ferido.)
REGANE - Empresta-me tua espada. Rebelar-se um rústico a este ponto!
(Toma da espada e fere o criado pelas costas.)
PRIMEIRO CRIADO - Oh! Estou morto! Ainda vos resta um olho, milorde, para vê-lo desgraçado.
(Morre.)
CORNUALHA - Porque não posso ver, façamos isto: fora, geléia vil! Qual é teu brilho neste momento?
GLOSTER - Escuro em toda parte, desolação total. Onde se encontra meu filho Edmundo? Edmundo,
acende as chispas da natureza e vinga este ato horrível!
REGANE - Vilão traidor, invocas quem te odeia. Foi ele próprio quem nos deu notícia de tua falsidade,
ele em pessoa. E bom demais para de ti ter pena.
GLOSTER - Oh! Que tolo que fui! Então Edgar foi caluniado! Deuses bons, perdoai-me, e que ele possa
prosperar.
REGANE - Jogai-o fora da porta e que procure a estrada de Dover pelo cheiro.
(Sai um criado conduzindo Gloster.)
Então, milorde, como estais?
CORNUALHA - Recebi uma ferida. Senhora, acompanhai-me. Jogai fora esse vilão sem olhos; no
monturo atirai esse escravo. Estou sangrando demais, Regane; veio-me este golpe muito fora de tempo.
Dai-me o braço.
(Sai Cornualha apoiado em Regane.)
SEGUNDO CRIADO - Não quero ter preocupação alguma com qualquer vilania, se este tipo vier ainda a
acabar bem.
TERCEIRO CRIADO - Se vida longa ela tiver e, ao fim, achar o curso comum da morte, todas as
mulheres virarão monstros.
SEGUNDO CRIADO - Vamos à procura do velho conde, para que levado seja pelo maníaco para onde
ele o determinar. Suas manias de vagante se prestam para tudo.
TERCEIRO CRIADO - Vai; enquanto isso, arranjarei um pouco de linho e clara de ovo, para pôr-lhe no
rosto ensanguentado. O céu que o ajude!
(Saem por lados diferentes.)
CORNUALHA - Parti com toda pressa para onde está milorde vosso marido e mostrai-lhe esta carta. O
exército da França desembarcou. - Procurai o traidor Gloster.
REGANE - Enforcai-o imediatamente.
GONERIL - Arrancai-lhe os olhos.
CORNUALHA - Deixai-o aos cuidados do meu desprazer. Edmundo, fazei companhia a nossa irmã; as
vinganças que vamos ser forçados a tomar de vosso pai traidor não são adequadas para vossa vista.
Avisai o duque, para a casa de quem vos dirigis, que se prepare com a maior urgência possível, porque
faremos o mesmo. Nossos correios não se pouparão, para manter entre nós o entendimento preciso.
Adeus, querida irmã; adeus, milorde de Gloster.
(Entra Osvaldo.)
Então! Onde está o rei?
OSVALDO - Levou-o para longe lorde Gloster. Cerca de trinta e cinco ou trinta e seis de seus homens,
sequiosos de encontrá-lo, o esperaram à porta, e em companhia de outros homens do lorde se fizeram no
caminho de Dover, onde todos se jactam de possuir sócios armados.
CORNUALHA - Prepara a condução para a senhora.
GONERIL - Adeus, doce senhor; adeus, irmã.
CORNUALHA - Adeus, Edmundo.
(Saem Goneril, Edmundo e Osvaldo.)
Ide e trazei-me Gloster, esse traidor; os braços algemai-lhe como a um ladrão e em nossa frente o ponde.
(Saem outros criados.)
Embora não possamos pronunciar-nos, sem as formas legais, contra sua vida, poderá nossa força cortesia
fazer a nossa cólera, o que os homens talvez censurem, mas obstar não podem. Quem vem lá! Ó traidor?
(Voltam os criados, com Gloster.)
REGANE - Raposa ingrata! É ele mesmo.
CORNUALHA - Amarrai-lhe os braços leves.
GLOSTER - Que intendem Vossas Graças? Bons amigos, considerai que sois aqui meus hóspedes. Não
me trateis, amigos, com desprezo.
CORNUALHA - Amarrai-o, já disse!
(Os criados amarram Gloster.)
REGANE - Com mais força! Traidor infecto!
GLOSTER - Dama sem piedade, não sou o que dizeis.
CORNUALHA - Nesta cadeira; amarrai-o! Vilão, vais ver agora...
(Regane puxa a barba de Gloster.)
GLOSTER - Pelos deuses bondosos, é ignomínia puxar-me pela barba.
REGANE - Tão branco e tão traidor!
GLOSTER - Perversa dama, os fios que do queixo ora me arrancas, hão de ficar de pé para acusar-te.
Meus hóspedes sois todos; não devíeis com mãos rapaces machucar-me os traços de dono desta casa.
Que quereis?
CORNUALHA - Vamos, senhor; dizei-me: que notícias recebestes de França?
REGANE - Sede breve no que disserdes, pois sabemos tudo.
CORNUALHA - E que pacto firmastes com os traidores que saltaram há pouco em nosso reino?
REGANE - A que mãos entregastes o rei louco? Falai!
GLOSTER - Às mãos me veio uma missiva baseada em conjeturas de pessoa neutra e imparcial, não de
qualquer imigo.
CORNUALHA - Astuciosa.
REGANE - Traidora.
CORNUALHA - E o rei, para onde o enviaste?
GLOSTER - Para Dover.
REGANE - Por que Dover? Avisado não foras, sob o risco...
CORNUALHA - Por que Dover? Primeiro responde a isso.
GLOSTER - Estou atado ao poste; é-me impossível fugir destes assaltos.
REGANE - Por que Dover?
GLOSTER - Porque essas unhas cruéis não lhe arrancassem os pobres olhos, velhos e cansados, nem tua
irmã selvagem lhe enterasse no corpo ungido as presas de javardo. O mar em tempestade como a que ele
suportou na cabeça descoberta nesta noite infernal, se empolaria para apagar o fogo das estrelas. E o
pobre coração, tão velho, a chuva do céu fez aumentar! Se os próprios lobos, com um tempo destes,
ululado houvessem diante de tuas portas, certamente terias dito: "Bom porteiro, vira depressa a chave!"
Todas as crueldades ficariam riscadas. Mas ainda hei de ver a vingança de asas fortes cair sobre tais
filhos.
CORNUALHA - Veres? Nunca! Segurai a cadeira com firmeza. Vou pôr os pés em cima de teus olhos.
GLOSTER - Quem espera viver até à velhice, venha ajudar-me agora. Oh monstro! Oh deuses!
(É arrancado um dos olhos de Gloster.)
REGANE - O outro também, para não rir daquele.
CORNUALHA - Se virdes a vingança...
PRIMEIRO CRIADO - Suspendei, milorde, a mão. Servi-vos desde criança; mas nunca vos prestei tão
bom serviço, como ao pedir agora que parásseis.
REGANE - Como, cachorro?
PRIMEIRO CRIADO - Se trouxésseis barba no queixo eu a arrancara nesta briga. Que pretendeis?
CORNUALHA - Um dos meus criados? Como!
(Saca da espada.)
PRIMEIRO CRIADO - Avançai, pois, e vos medi com a cólera.
(Desembainha a espada; lutam.)
(Cornualha é ferido.)
REGANE - Empresta-me tua espada. Rebelar-se um rústico a este ponto!
(Toma da espada e fere o criado pelas costas.)
PRIMEIRO CRIADO - Oh! Estou morto! Ainda vos resta um olho, milorde, para vê-lo desgraçado.
(Morre.)
CORNUALHA - Porque não posso ver, façamos isto: fora, geléia vil! Qual é teu brilho neste momento?
GLOSTER - Escuro em toda parte, desolação total. Onde se encontra meu filho Edmundo? Edmundo,
acende as chispas da natureza e vinga este ato horrível!
REGANE - Vilão traidor, invocas quem te odeia. Foi ele próprio quem nos deu notícia de tua falsidade,
ele em pessoa. E bom demais para de ti ter pena.
GLOSTER - Oh! Que tolo que fui! Então Edgar foi caluniado! Deuses bons, perdoai-me, e que ele possa
prosperar.
REGANE - Jogai-o fora da porta e que procure a estrada de Dover pelo cheiro.
(Sai um criado conduzindo Gloster.)
Então, milorde, como estais?
CORNUALHA - Recebi uma ferida. Senhora, acompanhai-me. Jogai fora esse vilão sem olhos; no
monturo atirai esse escravo. Estou sangrando demais, Regane; veio-me este golpe muito fora de tempo.
Dai-me o braço.
(Sai Cornualha apoiado em Regane.)
SEGUNDO CRIADO - Não quero ter preocupação alguma com qualquer vilania, se este tipo vier ainda a
acabar bem.
TERCEIRO CRIADO - Se vida longa ela tiver e, ao fim, achar o curso comum da morte, todas as
mulheres virarão monstros.
SEGUNDO CRIADO - Vamos à procura do velho conde, para que levado seja pelo maníaco para onde
ele o determinar. Suas manias de vagante se prestam para tudo.
TERCEIRO CRIADO - Vai; enquanto isso, arranjarei um pouco de linho e clara de ovo, para pôr-lhe no
rosto ensanguentado. O céu que o ajude!
(Saem por lados diferentes.)
REI LEAR, ATO IV, Cena V
Um quarto no castelo de Gloster. Entram Regane e Osvaldo.
REGANE - Mas as forças do mano estão em campo?
OSVALDO - Sim, senhora.
REGANE - E ele próprio à frente delas?
OSVALDO - Com muita relutância; vossa mana é melhor combatente.
REGANE - Lorde Edmundo não falou com vosso amo em casa deste?
OSVALDO - Não, senhora.
REGANE - Qual pode ser o assunto da carta dela, então?
OSVALDO - Não sei, senhora.
REGANE - É certeza ter sido enviado em muito séria missão. Foi erro indesculpável deixar Gloster com
vida, após os olhos lhe termos arrancado. Onde aparece levanta os corações, contra nós todos. Edmundo,
quero crer, compadecido de sua dor, foi dar remate logo a sua vida enoitada e, ao mesmo tempo, tentar
saber das forças do inimigo.
OSVALDO - Preciso partir logo, para a carta, senhora, lhe entregar.
REGANE - As nossas tropas partirão amanhã. Fica conosco, pois não há segurança nas estradas.
OSVALDO - Senhora, não é possível; a patroa confia em minha diligência nisso.
REGANE - Qual a necessidade que ela tinha de escrever a Edmundo? Não podíeis transmitir
verbalmente seu recado? Talvez... Alguma coisa... Como posso sabê-lo? Amar-te-ia imensamente se
permitisses que eu abrisse a carta.
OSVALDO - Preferira, senhora...
REGANE - Não ignoro que vossa ama não gosta do marido. Tenho certeza disso. Quando da última vez
ela esteve aqui, lançou estranhos olhares, eloqüentes sobremodo, para o nobre Edmundo. Confidente dela
sei bem que sois.
OSVALDO - Como! Eu, senhora?
REGANE - Sei o que estou dizendo: confidente, tenho certeza disso. Mas sugiro-vos aceitar meu
conselho. Meu marido faleceu; eu e Edmundo já falamos a esse respeito, sendo mais razoável, assim, que
ele me peça a mão, deixando de lado a mana. Deduzi o resto. Se o encontrardes, dai-lhe isto, por
obséquio. E quando conversardes com vossa ama sobre este assunto, peço concitarde-la a readquirir sua
usual prudência. Portanto, passai bem. Se vierdes a encontrar o traidor cego, ganhará muito quem der
cabo dele.
OSVALDO - Oh! Quem dera que o visse! Assim, mostrara de que lado me encontro.
REGANE - Passai bem.
(Saem.)
REGANE - Mas as forças do mano estão em campo?
OSVALDO - Sim, senhora.
REGANE - E ele próprio à frente delas?
OSVALDO - Com muita relutância; vossa mana é melhor combatente.
REGANE - Lorde Edmundo não falou com vosso amo em casa deste?
OSVALDO - Não, senhora.
REGANE - Qual pode ser o assunto da carta dela, então?
OSVALDO - Não sei, senhora.
REGANE - É certeza ter sido enviado em muito séria missão. Foi erro indesculpável deixar Gloster com
vida, após os olhos lhe termos arrancado. Onde aparece levanta os corações, contra nós todos. Edmundo,
quero crer, compadecido de sua dor, foi dar remate logo a sua vida enoitada e, ao mesmo tempo, tentar
saber das forças do inimigo.
OSVALDO - Preciso partir logo, para a carta, senhora, lhe entregar.
REGANE - As nossas tropas partirão amanhã. Fica conosco, pois não há segurança nas estradas.
OSVALDO - Senhora, não é possível; a patroa confia em minha diligência nisso.
REGANE - Qual a necessidade que ela tinha de escrever a Edmundo? Não podíeis transmitir
verbalmente seu recado? Talvez... Alguma coisa... Como posso sabê-lo? Amar-te-ia imensamente se
permitisses que eu abrisse a carta.
OSVALDO - Preferira, senhora...
REGANE - Não ignoro que vossa ama não gosta do marido. Tenho certeza disso. Quando da última vez
ela esteve aqui, lançou estranhos olhares, eloqüentes sobremodo, para o nobre Edmundo. Confidente dela
sei bem que sois.
OSVALDO - Como! Eu, senhora?
REGANE - Sei o que estou dizendo: confidente, tenho certeza disso. Mas sugiro-vos aceitar meu
conselho. Meu marido faleceu; eu e Edmundo já falamos a esse respeito, sendo mais razoável, assim, que
ele me peça a mão, deixando de lado a mana. Deduzi o resto. Se o encontrardes, dai-lhe isto, por
obséquio. E quando conversardes com vossa ama sobre este assunto, peço concitarde-la a readquirir sua
usual prudência. Portanto, passai bem. Se vierdes a encontrar o traidor cego, ganhará muito quem der
cabo dele.
OSVALDO - Oh! Quem dera que o visse! Assim, mostrara de que lado me encontro.
REGANE - Passai bem.
(Saem.)
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