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Ato IV,Cena II

MACBETH,William Shakespeare,Ato IV,Cena II

Fife; Castelo de Macduff; Entram lady Macduff, seu filho e Ross.

LADY MACDUFF - Que fez, para exilar-se assim de súbito?

ROSS - Precisais ser paciente, nobre dama.

LADY MACDUFF - Ele o não foi; Loucura foi a fuga; quando não pelos atos, pelo medo nos mostramos traidores.

ROSS - Não sabemos se o medo há nisso parte ou só prudência.

LADY MACDUFF - Prudência? Abandonar a esposa e os filhos, a casa, as dignidades, numa parte de onde ele mesmo foge? Não nos ama; não possui coração; A carricinha - dos passarinhos o de menor porte
- em defesa da prole no seu ninho briga com a coruja; O medo é tudo, nada o amor, e a prudência é coisa alguma numa fuga assim fora de propósito.

ROSS - Querida prima, sede moderada, por obséquio, pois vosso esposo é sábio, nobre, sensato e, mais do que nós todos, conhece as injunções do nosso tempo; Não me atrevo a falar mais claramente, mas cruel é o tempo em que traidores somos sem o sabermos, quando ouvimos boatos sobre o que receamos,
sem sabermos o que nos faz ter medo, desgarrados vamos num mar violento e tempestuoso, sem direção alguma; Bem, despeço-me; Dentro de pouco aqui estarei de volta; As coisas, quando o ponto pior atingem, ou aí param, ou de novo sobem para onde antes estavam; Lindo primo, que Deus vos abençoe.

LADY MACDUFF - Ainda tem pai; no entanto, é como se já não tivesse.

ROSS - Revelo-me insensato; se mais tempo ficasse aqui, podia desgraçar-me, sobre prejudicar-vos. Bem, despeço-me definitivamente.
(Sai.)

LADY MACDUFF - Olá, menino, vosso pai está morto; Que destino tereis agora? Como vivereis?

O FILHO - Como os pássaros, mãe.

LADY MACDUFF - Como! De vermes e de mosquitos?

O FILHO - Não; do que encontrar, foi o que eu quis dizer; como eles fazem.

LADY MACDUFF - Pobre bichinho! Nunca terás medo de laço, máquina e armadilha.

O FILHO - Medo por quê? Não foi tudo isso feito para os pássaros pobres; Ainda vive meu paizinho, apesar do que dissestes.

LADY MACDUFF - Não, morreu; Como vais fazer agora para arranjar um pai?

O FILHO - De que maneira fareis, também, para arranjar marido?

LADY MACDUFF - Ora, em qualquer mercado compro vinte.

O FILHO - Então os comprareis para vendê-los?

LADY MACDUFF - Falas com muito espírito e, de fato, bastante para a idade.

O FILHO - Mãe, meu pai foi um traidor?

LADY MACDUFF - Sim, é o que ele foi.

O FILHO - Que é um traidor?

LADY MACDUFF - Ora, é toda pessoa que jura e mente.

O FILHO - Todos os que fazem isso são traidores?

LADY MACDUFF - Quem quer que assim proceda, é traidor e merece ser enforcado.

O FILHO- E precisam ser enforcadas todas as pessoas que juram e mentem?

LADY MACDUFF - Todas.

O FILHO - E quem é que as enforca?

LADY MACDUFF - Ora, os homens de bem.

O FILHO - Então os mentirosos e os que juram não passarão de grande tolos, pois há mentirosos e jurados bastantes para darem nos homens de bem e para os enforcarem.

LADY MACDUFF - Que Deus te ajude agora, macaquinho; Mas, como farás para arranjar outro pai?

O FILHO - Se ele tivesse morrido, haveríeis de chorar a morte dele; Se o não fizésseis, seria sinal certo de que eu logo iria ter novo pai.

LADY MACDUFF - Pobre tagarela, como sabes falar!
(Entra um mensageiro.)

MENSAGEIRO - Formosa dama, Deus vos abençoe; Não sabeis quem eu sou, conquanto eu saiba tudo o que se refere ao vosso estado; Temo que algum perigo esteja prestes a vos tocar; No caso de aceitardes o conselho de um homem tão singelo, não vos deixeis ser encontrada aqui; Fugi com vossos filhos; Estou certo de que, atemorizando-vos, procedo como selvagem; mas ser mais explícito fora crueldade bárbara, que muito perto de vós já se acha; O céu vos guarde; Não me atrevo a ficar aqui mais tempo.
(Sai.)

LADY MACDUFF - Para onde hei de fugir? Nunca fiz mal; Mas agora me ocorre que me encontro neste mundo terreno, onde é louvável fazer o mal, às vezes, e, por vezes, o bem fazer é insânia perigosa; Par que valer-me, então, dessa defesa feminina, dizendo simplesmente que não fiz mal?
(Entram assassinos.)
Que caras serão essas?

ASSASSINO - Onde está vosso esposo?

LADY MACDUFF - Não há de estar, espero-o, em nenhum ponto tão profano que possa ser achado por
tipos como tu.

ASSASSINO - É um traidor.

O FILHO - Mentes, peludo!

ASSASSINO - Como, espécie de Ovo? Filhinho da traição!
(Apunhala-o.)

O FILHO - Ele matou-me, mãe; Fugi, sem demora.
(Morre.)
(Lady Macduff sai gritando "Assassínio!" perseguida pelos assassinos.)

REI LEAR, ATO I, Cena I

Salão nobre do palácio do Rei Lear. Entram Kent, Gloster e Edmundo.

KENT - Sempre pensei que o rei fosse mais afeiçoado ao duque de Albânia do que ao de Cornualha.

GLOSTER - Era o que também me parecia; mas agora, na divisão do reino, não se pode saber qual dos
dois duques ele aprecia mais, porque as partes foram pesadas com tal eqüidade, que a mais impertinente

curiosidade não saberá decidir-se por nenhuma delas.

KENT - Este rapaz é vosso filho, milorde?

GLOSTER - Sua educação, senhor, esteve a meu cargo. Tantas vezes corei de confessá-lo, que
presentemente já me encontro calejado.

KENT - Não posso compreender-vos.

GLOSTER - Mas a mãe deste mancebo o compreendia perfeitamente, senhor; tanto assim, que ficou com
o ventre arredondado com um filho que arranjou para seu berço, antes de conseguir um marido para o seu
leito. Percebeis alguma falta nisso?

KENT - Não posso desejar que a falta não houvesse sido cometida, à vista da graça de suas
conseqüências.

GLOSTER - Mas possuo um filho legítimo, senhor, coisa de um ano mais velho do que este, que nem
por isso tenho em mais alta estima. É verdade que este peralta veio ao mundo com certo descoco, antes
de ser chamado; mas também é verdade que sua mãe era muito linda. Foi gerado na folia, sendo me
agora preciso reconhecer o bastardo. Conheceis este gentil-homem, Edmundo?

EDMUNDO - Não, milorde.

GLOSTER - É o milorde de Kent; de agora em diante lembra-te dele como de honrado amigo meu.

EDMUNDO - Ao dispor de Vossa Senhoria.

KENT - Desejo amar-vos e peço que me ensejeis oportunidades de conhecer-vos mais de perto.

EDMUNDO - Esforçar-me-ei por merecê-lo, senhor.

GLOSTER - Esteve fora nove anos e precisará sair de novo. O rei vem vindo.
(Fanfarra. Entram Lear, Cornualha, Albânia, Goneril, Regane, Cordélia e séqüito.)

LEAR - Gloster, fazei entrar na sala os nobres da França e da Burgúndia.

GLOSTER - Neste instante, meu soberano.
(Saem Gloster e Edmundo.)

LEAR - Enquanto isso, mostrar pretendo nossos desígnios mais recônditos. Um mapa! Ficai sabendo,
assim, que dividimos nosso reino em três partes, sendo nossa firme intenção livrar-nos, na velhice, dos
cuidados, bem como dos negócios, para confiá-los a mais jovens forças, e, assim, nos arrastarmos para a
morte, de qualquer fardo isento. Nosso filho de Cornualha, assim como vós, Albânia, filho também não
menos caro, temos o propósito certo, neste instante, de declarar publicamente o dote de nossas filhas,
para que a discórdia futura fique obviada desde agora. Os príncipes da França e da Burgúndia, grandes
rivais no amor de nossa filha mais nova, em nossa corte já fizeram sua parada longa e apaixonada. Ora
aguardam resposta. Minhas filhas - já que neste momento nos despimos do governo, não só, dos
territórios e cuidados do Estado - ora dizei-me qual de vós mais amor nos tem deveras, porque alargar
possamos nossa dádiva onde contende a natureza e o mérito. Fale primeiro Goneril, a nossa filha mais
velha.

GONERIL - Senhor, amo-vos mais do que as palavras poderão exprimir, mais ternamente do que a visão,

o espaço, a liberdade, muito mais do que tudo que é prezado, raro ou valioso, tanto quanto a vida com
saúde, beleza, honras e graça, como jamais amou filha nenhuma ou pai se viu amado; é amor que torna
pobre o alento e o discurso balbuciante. Amo-vos para além de todo extremo.

CORDÉLIA (à parte) - Cordélia que fará? Ama e se cala.

LEAR - Todo este trecho aqui, de uma a outra linha, com suas matas e campinas ricas, com rios
caudalosos e seus prados de larga bordadura, te pertencem. De tua prole e de Albânia, como posse
perpétua vai ficar. Que diz agora nossa segunda filha, a queridíssima Regane, esposa de Cornualha? Fala.

REGANE - De igual metal que minha irmã sou feita e pelo preço dela me avalio. No imo peito descubro
que ela soube dar expressão ao meu amor sincero. Mas ficou muito aquém, pois inimiga me declaro de
quantas alegrias se contenham na mui preciosa esfera dos sentidos tão-só. Achei minha única felicidade
na afeição de Vossa mui querida Grandeza.

CORDÉLIA (à parte) - Então, coitada de Cordélia! Contudo, nem por isso, pois estou certa de que meu
afeto mais rico é do que a língua.

LEAR - Que para ti e os teus fique de herança permanente este terço avantajado do nosso belo reino, em
rendas, graças e extensão não menor em nenhum ponto do que o que em sorte coube a Goneril. Nossa
alegria, agora, conquanto a última, não a menor, e cujo afeto jovem os vinhedos da França e o branco
leite da Burgúndia disputam: que podeis dizer-nos para um terço mais opimo virdes a obter do que os das
vossas manas? Falai.

CORDÉLIA - Meu senhor, nada.

LEAR - Nada?

CORDÉLIA - Nada.

LEAR - De nada sairá nada. Novamente dizei alguma coisa.

CORDÉLIA - Oh desditosa! Trazer não posso o coração à boca. Amo a Vossa Grandeza como o dever
me impõe, nem mais nem menos.

LEAR - Que é isso, Cordélia? Concertai um pouco vossas palavras, para não deitardes a perder vossa
dita.

CORDÉLIA - Meu bondoso senhor, vós me gerastes, educastes e me amastes, pagando eu todos esses
benefícios qual fora de justiça: com obediência e amor vos honro sempre extremamente. Por que têm
maridos minhas irmãs, se dizem que vos amam sobre todas as coisas? Se algum dia vier a casar, há de
seguir o dono do meu dever apenas a metade de meu amor, metade dos cuidados e das obrigações.
Certeza é nunca vir a casar-me como as duas manas, para amar a meu pai por esse modo. LEAR - Do
coração te veio o que disseste?

CORDÉLIA - Sim, meu senhor.

LEAR - Tão jovem e tão áspera?

CORDÉLIA - Tão jovem, meu senhor, e verdadeira.

LEAR - Então vai ser teu dote só a tua veracidade. Pois pela sagrada irradiação do sol, pelos mistérios de

Hécate e, assim, da noite, pelas grandes operações dos orbes que nos fazem viver e definhar: desde este
instante me desligo dos laços consanguíneos, preocupações de pai e parentesco, passando a te considerar
como uma pessoa estranha a mim e a meu afeto, de agora para sempre. O cita bárbaro ou selvagem que
faz da prole pábulo para o apetite, há de ser mais vizinho do meu seio, acolhido e consolado, do que tu,
que não és já filha minha.

KENT - Meu senhor...

LEAR - Kent, silêncio; não te metas entre o dragão e sua grande cólera. Predileção lhe tinha e pensei
sempre que haveria de achar grato repouso em seus carinhos. Foge-me da vista! Tão certo como eu ter
paz no sepulcro, o coração de pai lhe tiro agora. Chamai França! Que é que ainda se mexe? Chamai
Burgúndia aqui! Cornualha e Albânia, acrescentai mais este dote aos outros de minhas duas filhas. Que
se case com ela o orgulho, a que franqueza chama. Juntamente comigo vos invisto no meu poder, minhas
prerrogativas e em todas as extensas dignidades que à majestade se unem. Nós, seguindo nisso o curso
mensal e reservando cem cavaleiros, cujo encargo fica por vossa conta, nossa casa havemos de na vossa
fazer por modo alterno. De rei, o nome apenas reteremos, com suas dignidades; mas o mando, a
execução das leis, as rendas, tudo, caros filhos, é vosso. E como certo penhor do que ora afirmo, esta
coroa dividirei entre ambos.

KENT - Real Lear, a quem como meu rei acatei sempre, amei como a meu pai, acompanhei como a
senhor e a quem nas minhas preces tinha como padroeiro...

LEAR - O arco está armado; sai da frente da seta!

KENT - Não; dispara-a, embora a farpa o coração me atinja. Descortês será Kent, se é louco Lear. Que
estás fazendo, velho? Acaso pensas que o dever tenha medo de falar, quando o poder se abaixa até à
lisonja? A honra obriga à franqueza, quando tomba na loucura, assim tanto, a majestade. Anula o teu
decreto, e recorrendo aos teus mais ponderosos argumentos, reprime logo essa medonha pressa. Minha
vida em penhor do que te afirmo; afeição inferior não te dedica tua terceira filha, nem tampouco sentirão
menos as pessoas cuja voz grave não ressoa no vazio.

LEAR - Por tua vida, Kent, nem mais um pio!

KENT - Penhor a vida me foi sempre, para contra os teus inimigos arriscá-la. Perdê-la não receio,
quando o exige tua própria salvação.

LEAR - Fora da minha vista!

KENT - Vê melhor, Lear, e ora consente que a mira de teus olhos eu me torne.

LEAR - Agora, por Apolo...

KENT - Por Apolo, agora em vão juraste por teus deuses.

LEAR - Oh vassalo! Insolente!
(Leva a mão à espada.)

ALBÂNIA E CORNUALHA - Não; detende-vos, caro senhor.

KENT - Manda matar teu médico e à impura doença entrega os honorários! Revoga o teu decreto; do
contrário, enquanto alento me restar no peito, direi que estás errado.

LEAR - Ouve-me, biltre! Por teu dever de vassalagem, ouve-me! Já que tentaste provocar a quebra de
nosso voto - o que jamais fizemos - e com teimoso orgulho te meteste entre nossa sentença e nosso trono
- o que não pode suportar a nossa natureza, nem menos nosso posto - de pé nosso poder, toma tua paga:
cinco dias te damos, porque possas contra os males do mundo premunir-te; ao sexto voltarás o dorso
odioso a todo o nosso reino; e se no décimo esse corpo banido for achado dentro de nossas terras, esse
instante será tua morte. Já daqui! Por Júpiter, não haverá revogação agora.

KENT - Adeus, rei. Declarar quero a verdade: o exílio é aqui, e longe, a liberdade.
(A Cordélia.)
Possam os deuses te amparar, menina, cujo pensar com o bom discurso afina.
(A Regane e Goneríl.)
Que por bons atos sejam confirmados vossos largos discursos e empolados. - Kent, assim, se despede dos
presentes e a novas terras leva os pés dolentes.
(Sai.)
(Fanfarra. Volta Gloster com França, Burgúndia e pessoas do séqüito.)

GLOSTER - Senhor, França e Burgúndia estão presentes.

LEAR - Milorde de Burgúndia, primeiramente a vós nos dirigimos, que sois rival, com este soberano, na
corte à nossa filha. Qual o mínimo que exigis como dote e em cuja falta desistis do pedido?

BURGÚNDIA - Muito nobre majestade, não peço nada acima do que já ofereceu Vossa Grandeza, que
menos não dará.

LEAR - Nobre Burgúndia, quando cara nos era, nós a tínhamos nesse preço; mas ora baixou muito.
Senhor, ali está ela. Se algum traço dessa coisinha de nenhum realce ou até mesmo ela toda, redobrada de
nosso desfavor, sem mais acréscimo, pode do agrado ser de Vossa Graça: ela aqui está; pertence-vos.

BURGÚNDIA - Ignoro que responder.

LEAR - Quereis, com as faltas todas que lhe são próprias, sem nenhum amigo, adotada por nosso recente
ódio, com toda nossa maldição por dote, expulsada por nosso juramento, levá-la ou recusá-la?

BURGÚNDIA - Real senhor, perdão; mas nessas condições, é claro, ninguém faz uma escolha.

LEAR - Então deixai-a, senhor; porque vos assevero, em nome do poder que me criou, que toda a sua
fortuna é o que vos disse. (A França.) Vós, potente soberano, de vosso amor não quero tão longe me
afastar, que almeje ver-vos unido a quem odeio. Assim, suplico-vos desviar vossa afeição para um objeto
mais digno do que a mísera criatura que a natureza quase se envergonha de declarar por sua.

FRANÇA - É muito estranho que aquela que, até há pouco, era a mais rara jóia de vosso afeto, o tema
excelso de vossos elogios, vosso bálsamo na velhice, a melhor, a mais querida, pudesse cometer assim,
de pronto, um crime tão monstruoso que desmanche tantas pregas da graça. Com certeza mui contrário à
natura foi seu crime, e muito a deturpou, se vosso afeto tão notório não é o que antes era. Acreditar tal
coisa a seu respeito, só com o auxílio da fé, pois, sem milagre, a isso a razão jamais me levaria.

CORDÉLIA - Suplico entanto a Vossa Majestade - pois careço dessa arte lisa e untuosa de falar em
contrário ao próprio intento, pois o que fazer quero já realizo, mesmo antes de falar - que deixeis claro
não ter sido nenhum vício infamante, velhacaria alguma, ato impudico, nem qualquer passo menos

decoroso que de vosso favor e vossa graça me privou neste instante, mas apenas a carência daquilo que
me deixa mais rica ainda: o olhar adulador e língua que não ter muito me alegra muito embora essa falta
seja a causa de me fazer perder vossa amizade.

LEAR - Melhor te fora nunca ter nascido, do que deixares de agradar-me agora.

FRANÇA - Então, foi isso apenas? Uma certa lentidão natural, que, muitas vezes, deixa de relatar a
própria história do que fazer pretende? Que dizeis, milorde de Burgúndia, desta noiva? O amor não é
amor, quando se mescla de considerações que muito aberram da meta principal. Ficais com ela?

BURGÚNDIA - Dai-lhe, real Lear, unicamente a parte que havíeis prometido, e, neste instante, tomo
Cordélia pela mão e a faço Duqueza de Burgúndia.

LEAR - Nada; sou firme; fiz um juramento.

BURGÚNDIA - Muito me pesa, então, que após haverdes perdido o pai, também percais o esposo.

CORDÉLIA - Seja a paz com Burgúndia! Já que havia em seu amor intuitos de riquezas, não serei sua
esposa.

FRANÇA - Linda Cordélia, pobre, ainda és mais rica; mais procurada, ainda, no abandono, e mais
amada, quando desprezada: de ti, dessas virtudes, apodero-me neste momento. Seja, assim, legítimo
apanhar o que foi jogado fora. Que estranho, ó deuses! que um glacial desprezo o respeito me inflame e
deixe preso! Deserdando tua filha, ó rei! deste ansa para rainha eu a fazer da França. Nenhum dos duques
da Burgúndia aquosa a noiva minha levará preciosa. Cordélia, adeus lhes dize, cruéis embora; perdes
aqui, para ganhar lá fora.

LEAR - França, leva-a contigo; é tua; nós tal filha já não temos, não, e após o que houve ela perdeu, por
mais que faça, nosso amor, nossa bênção, nossa graça. Vamos, nobre Burgúndia.
(Fanfarras. Saem Lear, Burgúndia, Cornualha, Albânia, Gloster e séqüito.)

FRANÇA - Dizei adeus agora a vossas manas.

CORDÉLIA - Jóias de nosso pai, com olhos úmidos Cordélia ora vos deixa. Eu vos conheço, mas como
irmã não quero dar o nome verdadeiro de vossas faltas todas. Cuidai de nosso pai; entrego-o a vossos
peitos que os próprios méritos proclamam. No entanto, ai! se em sua graça eu me encontrasse, talvez
melhor asilo lhe mostrasse. Assim, adeus para ambas.

REGANE - Não queirais ensinar nossos deveres.

GONERIL - Procurai agradar vosso marido que como esmola vos pegou da sorte. Revelastes caráter
obstinado; digna, portanto, sois do vosso fado.

CORDÉLIA - O tempo há de mostrar quem tem malícia, que a vergonha é o castigo da estultícia. Passai
bem.

FRANÇA - Vamos, linda Cordélia.
(Saem França e Cordélia.)

GONERIL - Mana, não é pouco o que tenho a dizer sobre um assunto que nos toca muito de perto. Creio
que nosso pai vai partir esta noite.

REGANE - Isso é certeza, e em vossa companhia. No próximo mês ficará conosco.

GONERIL - Vistes como sua velhice é caprichosa; não é das menos valiosas a observação que tivemos
oportunidade de fazer; sempre revelou muito mais afeição para nossa irmã, transparecendo agora
claramente a falta de senso com que acaba de expulsá-la.

REGANE - E a fraqueza da idade, sendo certo que ele sempre se conheceu mal.

GONERIL - Até mesmo na melhor idade e de mais vigor, costumava revelar precipitação. Por isso,
preparemo-nos para receber de sua velhice não somente os defeitos enraizados de longa data, como
também as rabugices inconvenientes que trazem consigo os anos achacosos e irritáveis. REGANE -
Teremos de assistir ainda a muitas explosões súbitas, como essa de que resultou o banimento de Kent.

GONERIL - Ainda terão de realizar-se as cerimônias complementares da despedida entre ele e França.
Unamo-nos, é o que vos peço; se nosso pai conservar o poder com semelhante disposição, essa última
abdicação de sua vontade só nos poderá ser prejudicial.

REGANE - Havemos de refletir melhor sobre isso.

GONERIL - Precisaremos fazer qualquer coisa, enquanto o assunto está quente.
(Saem.)

REI LEAR, ATO I, Cena II

Sala no castelo do conde de Gloster. Entra Edmundo com uma carta.

EDMUNDO - Sê minha deusa agora, natureza! A tuas leis empenho meus serviços. Porque terei de me
curvar à peste do costume e deixar que a impertinência das nações me despoje, tão-somente porque nasci
algumas doze luas, ou catorze, depois de qualquer mano? Por que bastardo? Por que mal nascido, se
minhas proporções são tão bem feitas, a alma tão franca e a compostura toda tão certa como a de
qualquer rebento de uma senhora honesta? Por que causa, pois, nos estigmatizam de baixeza, bastardo,
baixo, baixo?... Por que baixos todos nós que no furto deleitoso da natureza recebemos partes mais
ajustadas e mais alto espírito do que acontece nos cansados leitos, antiquados e insípidos, só feitos para
criar uma chusma de casquilhos, entre o sono e a vigília concebidos? Assim, Edgar legítimo, preciso
ficar com vossas terras. Tem o afeto de nosso pai não só o bastardo Edmundo, como o filho legítimo.
"Legítimo!" bela expressão! Espero, meu legítimo, que se esta carta for bem despachada e meu plano der
certo, o baixo Edmundo vai passar o legítimo. Prospero... Cresço... Amparai, ó deuses! os bastardos.
(Entra Gloster.)

GLOSTER - Banido Kent assim! França, colérico, se despediu, e o rei partiu à noite! Resignou ao poder,
tendo ficado com pensão reduzida! E tanta coisa em menos de um segundo! Olá, Edmundo, que
novidades há?

EDMUNDO (escondendo a carta) - Não há novidades, se não for do desagrado de Vossa Senhoria.

GLOSTER - Por que escondeis com tanta precipitação essa carta?

EDMUNDO - Não sei de nenhuma novidade, senhor.

GLOSTER - Que papel estáveis lendo?

EDMUNDO - Nada, milorde.

GLOSTER - Nada? Que necessidade havia, então, de enfiá-lo tão depressa no bolso? O que em si mesmo
é nada, não tem necessidade de ser escondido desse modo. Deixai-me ver! Vamos! Se for mesmo nada,
não precisarei de óculos.

EDMUNDO - Peço-vos, senhor, que me perdoeis; é uma carta de meu irmão, que eu ainda não li até ao
fim; mas pelo que pude ver assim por cima, penso que seu conteúdo é impróprio para vossa vista.

GLOSTER - Dai-me essa carta, senhor!

EDMUNDO - Farei mal tanto em recusá-la com em dar-vo-la. Seu conteúdo, pelo que pude alcançar, é
censurável.

GLOSTER - Quero vê-la; quero vê-la.

EDMUNDO - Quero crer, como justificativa de meu irmão, que ele escreveu apenas com o intuito de
provar ou confirmar minha virtude.

GLOSTER - "Nossas instituições e o respeito à velhice tornam o mundo amargo para os nossos melhores
anos, privam-nos dos bens até que nossa caduquice não se possa aproveitar deles. Começo a ver uma
escravidão inútil e presunçosa na opressão da tirania envelhecida, que governa não porque tenha poder,
mas por ser tolerada. Procurai-me, para que eu possa expandir-me a esse respeito. Se nosso pai dormisse
até que eu o despertasse, gozaríeis para sempre da metade das rendas dele e seríeis o bem-amado de
vosso irmão Edgar." - Hum! Conspiração! "Se dormisse até que eu o despertasse, gozaríeis da metade
das rendas dele." - Meu filho Edgar teve mão para escrever isto? coração e cérebro para concebê-lo?
Como te veio isto ter às mãos? Quem te trouxe esta carta?

EDMUNDO - Não foi trazida, senhor, e nisso é que consiste toda a treta; foi jogada pela janela de meu
quarto.

GLOSTER - Reconheceis a letra de vosso irmão?

EDMUNDO - Se o assunto fosse bom, milorde, eu iria jurar que a letra é dele; mas quando o considero
mais de perto, quero crer que não seja.

GLOSTER - É dele, sim.

EDMUNDO - A mão é dele, milorde; mas espero que o coração não esteja no conteúdo.

GLOSTER - Antes, ele nunca vos sondou a esse respeito?

EDMUNDO - Nunca, milorde; mas por várias vezes já o ouvi asseverar que quando os filhos atingem a
idade adulta e os pais começam a declinar, o pai deveria tornar-se como que pupilo do filho, ficando seus
bens sob a direção deste.

GLOSTER - Oh celerado! celerado! A mesma coisa que ele diz na carta! Celerado execrável! Celerado
desnaturado, odioso, bestial! Pior do que bestial! Vai buscá-lo imediatamente. Vou prendê-lo.
Abominável celerado! Onde está ele?

EDMUNDO - Ao certo não sei, milorde. Se concordardes em sustar vossa indignação contra meu irmão,

até que possais tirar dele melhores testemunhos de suas intenções, seguireis por um caminho certo; ao
passo que se procederdes com violência e vos enganardes quanto aos seus planos, abrireis em vossa
honra uma grande brecha e destruireis o próprio coração de sua obediência. Atrevo-me a apostar a vida
em como ele escreveu isso tudo apenas para pôr à prova a afeição que eu voto a Vossa Honra, sem
qualquer intenção maldosa.

GLOSTER - Pensais desse modo?

EDMUNDO - Se Vossa Honra concordar, eu vos colocarei em um lugar de onde possais ouvir-nos
conversar a esse respeito, vindo desta arte a convencer-vos pelo próprio testemunho dos ouvidos, e isso
sem delongas, ainda esta tarde.

GLOSTER - Não é possível que ele seja tão monstruoso...

EDMUNDO - De forma alguma; tenho certeza.

GLOSTER - ... com relação a seu próprio pai, que lhe dedica amor tão terno e desinteressado... Céu e
terra! Edmundo, ide procurá-lo; sondai-o, por obséquio; arranjai tudo de acordo com vossa sabedoria.
Daria todos os meus haveres para poder alcançar plena certeza a esse respeito.

EDMUNDO - Vou procurá-lo, senhor, neste momento; farei tudo do melhor modo possível e vos porei a
par do que houver.

GLOSTER - Esses últimos eclipses do sol e da lua não nos anunciam nada bom. Muito embora a ciência
da natureza possa explicá-los desta ou daquela maneira, a própria natureza se sente chicoteada pelos
efeitos que se lhes seguem. O amor esfria, a amizade desaparece, os irmãos se desavêm; nas cidades,
tumultos; nos campos, discórdias; nos palácios, traições, rompendo-se os laços entre filhos e pais. Esse
meu filho desnaturado confirma aqueles sinais: é filho contra pai. O rei se afasta da trilha da natureza: é
pai contra filho. Já vimos o melhor de nosso tempo: maquinações, imposturas, traições e toda sorte de
desordens ruinosas nos acompanham sem sossego até à sepultura. Vai buscar-me esse celerado,
Edmundo; nada terás a perder. Procede com cautela. E o nobre e magnânimo Kent, banido! Seu crime, a
honestidade! É muito estranho!
(Sai.)

EDMUNDO - Essa é a maravilhosa tolice do mundo: quando as coisas não nos correm bem - muitas
vezes por culpa de nossos próprios excessos - pomos a culpa de nossos desastres no sol, na lua e nas
estrelas, como se fôssemos celerados por necessidade, tolos por compulsão celeste, velhacos, ladrões e
traidores pelo predomínio das esferas; bêbedos, mentirosos e adúlteros, pela obediência forçosa a
influências planetárias, sendo toda nossa ruindade atribuída a influência divina... Ótima escapatória para
o homem, esse mestre da devassidão, responsabilizar as estrelas por sua natureza de bode. Meu pai se
juntou a minha mãe sob a cauda do Dragão e minha natividade se deu sob a Grande Ursa: de onde se
segue que eu tenho de ser violento e lascivo. Pelo pé de Deus! Eu teria sido o que sou, ainda que a mais
virginal estrela do firmamento houvesse piscado por ocasião de minha bastardização. Edgar...
(Entra Edgar.)
Pronto! Ei-lo que chega, tal qual a catástrofe na velha comédia. Minha deixa é "Melancolia pérfida", com
um suspiro como os de Tom de Bedlam. Oh! Esses eclipses pressagiam as desordens que vemos. Fá, sol,
lá, mi!

EDGAR - Olá, mano Edmundo! Que graves meditações são essas?

EDMUNDO - Estava pensando, mano, numa predição que li num dia destes, sobre o que há de seguir-se
a estes eclipses.

EDGAR - Preocupai-vos com essas coisas?

EDMUNDO - Posso afirmar-vos que por infelicidade se realizam os efeitos anunciados, tal como:
sentimentos contra as leis da natureza entre pais e filhos; mortes, fome, dissolução de amizades antigas,
divisões no Estado, ameaças e maldições contra os reis e os nobres, suspeitas injustificadas, proscrição de
amigos, dispersão de coortes, infrações conjugais e não sei o que mais.

EDGAR - Há quanto tempo sois sectário da astronomia?

EDMUNDO - Vamos, vamos... Quando vistes meu pai pela última vez?

EDGAR - Ontem à noite.

EDMUNDO - Falastes-lhe?

EDGAR - Sim; duas horas seguidas.

EDMUNDO - Despedistes-vos em bons termos? Não observastes nele nenhum sinal de
descontentamento, quer na fisionomia, quer nas expressões?

EDGAR - Absolutamente nenhum.

EDMUNDO - Refleti melhor sobre o que poderíeis ter feito para ofendê-lo, e fazei-me neste ponto a
vontade, evitando sua presença, até que o tempo se incumba de esfriar o ardor de seu desagrado, que
neste momento de tal modo se mostra revolto, que dificilmente poderia acalmar-se com maltratar vossa
pessoa.

EDGAR - Algum celerado me fez isso.

EDMUNDO - É o que eu receio. Peço que o eviteis com paciência, até que se torne mais vagaroso o
ímpeto de sua cólera. E, como disse, retirai-vos para os meus aposentos, onde disporei as coisas de modo
que possais ouvir milorde conversar. Ide logo, por obséquio. Se vos arriscardes a sair, que seja armado.

EDGAR - Armado, irmão?

EDMUNDO - Mano, eu vos aconselho para vosso bem; saí armado. Não quero ser homem de bem, se
em tudo isso houver algo de bom para vós. Contei-vos o que vi e ouvi, mas muito por cima, sem vos
apresentar a imagem horrorosa da coisa. Peço-vos, ide logo.

EDGAR - Terei logo notícias vossas?

EDMUNDO - Neste negócio estarei a vosso inteiro dispor.
(Sai Edgar.)
Um pai simplório e um mano em tudo nobre, que, pela própria condição, tão longe se acha de qualquer
mal, que nem suspeitas sobre isso pode ter e em cuja tola probidade montar vai facilmente minha
velhacaria. A coisa é clara: terras vou ter, ganhando-as com finura; falhando o berço, o espírito as segura.
(Sai.)

REI LEAR, ATO II, Cena I

Pátio diante do castelo do duque de Gloster. Entram Edmundo e Curan, que se encontram.

EDMUNDO - Deus te guarde, Curan.

CURAN - E a vós também, senhor. Estive com vosso pai e lhe dei a notícia de que o duque de Cornualha
e Regane sua duquesa chegarão aqui esta noite.

EDMUNDO - E por que isso?

CURAN - Ignoro-o. Não ouvistes as notícias que correm por aí? Refiro-me apenas às que são
cochichadas e que não são mais do que assuntos soprados aos ouvidos.

EDMUNDO - Eu? Não. Por obséquio, quais são elas?

CURAN - Não ouvistes dizer que é muito provável uma guerra entre os duques de Cornualha e de
Albânia?

EDMUNDO - Nem uma palavra.

CURAN - Então ainda haveis de ouvir algo a esse respeite. Passai bem, senhor.
(Sai.)

EDMUNDO - O duque aqui esta noite? Melhor... Ótimo! Isso cai mesmo certo no meu plano. Meu pai
pôs gente em busca de meu mano e um negócio nauseoso ainda me resta para ser posto em prática. Mãos
à obra. Celeridade e sorte! Mano, mano! Uma palavra! Vinde! Estou chamando!
(Entra Edgar.)
Meu pai está de espreita. Oh! Fugi logo; deixai o esconderijo, que este ponto já se tornou sabido. E
conveniente aproveitar a noite. Por acaso não vos manifestastes em prejuízo do duque de Cornualha? Ele
vem vindo para aqui, apressado, em plena noite, e Regane com ele. Não dissestes a favor dele nada,
contra o duque de Albânia? Pensai bem.

EDGAR - Não disse nada, tenho certeza.

EDMUNDO - Ouço meu pai que chega. Perdoai-me, mas por fingimento, apenas, tirai também a espada
e defendei-vos, só por simulação. Parti, agora. - Rendei-vos! Vamos ante nosso pai! Luz, aqui! - Fugi,
mano! - Tochas! Tochas! - Assim. Adeus, adeus.
(Sai Edgar.)
Agora um pouco de sangue há de fazer nascer a idéia de um combate mais sério.
(Fere-se no braço.)
Já vi bêbedos fazer por brincadeira mais do que isso.
Pai! Pai! Prendei! Prendei! Ninguém me ajuda?
(Entram Gloster e criados, com tochas.)

GLOSTER - Edmundo, onde está o biltre?

EDMUNDO - Aqui se achava, no escuro, espada em punho, depravados conjuros resmungando e, como
a dama auspiciosa, a invocar a própria lua.

GLOSTER - Mas onde está?

EDMUNDO - Senhor, estou sangrando.

GLOSTER - Mas onde está esse vilão, Edmundo?

EDMUNDO - Fugiu por lá, senhor, quando viu que era de todo inútil...

GLOSTER - Lá? Ide atrás dele!
(Saem alguns criados.)

"De todo inútil..." Quê?

EDMUNDO - Sim, persuadir-me a vos tirar a vida. Respondi-lhe que os deuses vingadores desferiam
seus duros raios contra os parricidas; lembrei-lhe os laços múltiplos e fortes que aos pais os filhos
prendem. Em resumo, senhor: vendo o desgosto que eu opunha a suas intenções desnaturadas,
enraivecido, espada em punho, ataca-me o corpo exposto e o braço aqui me fere. Mas ao ver que os
espíritos eu tinha bem despertos e que pela justeza da causa a combatê-lo se atreviam, ou por eu ter muito
barulho feito, de repente, fugiu.

GLOSTER - Pode esconder-se onde quiser, que neste território encontrado há de ser. E, uma vez preso...
liquidado. Meu mestre, o nobre duque, meu mui digno patrono e amado príncipe chega esta noite. Assim,
proclamarei, com sua autoridade, que há de nossa graça alcançar quem quer que encontre o biltre e o
covarde assassino entregue ao cepo. E se alguém o esconder, morra igualmente!

EDMUNDO - E quando procurava dissuadi-lo de semelhante intento, achando-o cada vez mais
determinado em realizá-lo, e ameacei denunciá-lo, respondeu-me: "Bastardo sem haveres, então pensas
que, se acareados fôssemos, alguma confiança em teu valor, virtude ou mérito reforçar poderia o que
dissesses? Não; pois o que eu negasse - e hei de fazê-lo, embora apresentasses cartas minhas - atribuiria
tudo a teus conselhos, traça e manobras pérfidas. Preciso fora deixares tolo o mundo inteiro, para que
ninguém visse quanto o lucro de minha morte te seria estímulo para que a procurasses".

GLOSTER - Celerado teimoso e endurecido! Negaria sua própria carta? Não, não é meu filho.
(Fanfarras.)
Atenção! As trombetas são do duque. Não sei por que motivo nos visita. Os portos fecharei, para que o
biltre não nos possa escapar. O duque me há de permitir isso. Espalharei por toda parte o retrato dele;
assim, o reino conhecerá seus traços. Minhas terras, rapaz fiel e natural, recursos hei de arranjar para que
a herdá-las venhas.
(Entram Cornualha, Regane e séqüito.)

CORNUALHA - Então, meu nobre amigo? Desde o instante que aqui cheguei - e foi neste momento -
soube coisas mui raras.

REGANE - Confirmadas, toda vingança ainda não bastara para ir sobre o ofensor. Então, milorde?

GLOSTER - Ó senhora, senhora! Espedaçado ficou-me o coração. Espedaçado!

REGANE - Como! O afilhado de meu pai tentou contra vossa existência? Aquele mesmo em que meu
pai pôs nome? Vosso Edgar?

GLOSTER - O senhora! A vergonha ora me manda ficar calado.

REGANE - Acaso ele não era companheiro dos homens turbulentos que servem a meu pai?

GLOSTER - Não sei, senhora Oh! É terrível tudo!

EDMUNDO - Sim, senhora; pertencia a esse bando.

REGANE - Se assim é, não admira que mostrasse sentimentos tão baixos. Partiu deles a idéia de matar o
velho, para desbaratarem logo seus haveres. De minha irmã recebi hoje cedo boas informações sobre essa
gente, com tantas advertências, que, se acaso quiserem ir parar em minha casa, não me encontrarei lá.

CORNUALHA - Nem eu, Regane. Edmundo, soube agora que prestastes a vosso pai serviços de bom
filho.

EDMUNDO - Só fiz o meu dever.

GLOSTER - Fez frustrar a manobra do outro, tendo recebido a ferida que aqui vedes, quando tentou
prendê-lo.

CORNUALHA - Seguiu gente no encalço dele?

GLOSTER - Sim, meu bom senhor.

CORNUALHA - Sendo apanhado, havemos de deixá-lo em condições de nunca mais receio vir a causar
a alguém. Tomai vós mesmo todas as providências e disponde do meu poder como vos for do agrado. E
vós, Edmundo, tão recompensado neste momento, assim pela obediência como pela virtude, sereis nosso.
Pessoas de lealdade tão provada são muito necessárias. Começamos, assim, por nos apoderar de vós.

EDMUNDO - Embora mais não faça, hei de lealmente servir a meu senhor.

GLOSTER - Muito agradeço por ele a Vossa Graça.

CORNUALHA - Com certeza não sabeis a razão desta visita...

REGANE - . . .assim fora de tempo, abrindo nosso caminho pela noite de olhos negros. Motivos, nobre
Gloster, de algum peso tornam vossos conselhos necessários. Nosso pai nos escreve, e nossa mana, sobre
certos dissídios, parecendo-me mais acertado responder a todos longe de nossa casa. Os mensageiros
estão aqui à espera da resposta. Velho e bondoso amigo, deixai calmo, de todo, o coração, e em nosso
auxílio vinde com bons conselhos sobre assunto que exige muita urgência.

GLOSTER - Ao vosso inteiro dispor, senhor, me encontro. Vossas Graças são bem-vindas aqui.
(Saem.)

REI LEAR, ATO III, Cena V

Um quarto no castelo de Gloster. Entram Cornualha e Edmundo.

CORNUALHA - Hei de vingar-me antes de deixar a casa dele.

EDMUNDO - As censuras, milorde, de que eu poderei ser alvo, por permitir que a natureza ceda a tal
ponto à lealdade, deixam-me bastante apreensivo.

CORNUALHA - Percebo agora que não foram absolutamente as más inclinações de vosso irmão que o
levaram a procurar a morte dele, senão o meritório impulso que se viu estimulado pela ruindade
condenável dele próprio.

EDMUNDO - Como é pérfido o meu destino, que me leva a arrepender-me de ser justo! Aqui está a carta
de que ele falou; traz a prova de que é partidário dos interesses da França. Oh céus! Quem me dera que
não houvesse semelhante traição, ou que não fosse eu o delator!

CORNUALHA - Vem comigo procurar a duquesa.

EDMUNDO - Se for verdadeiro o conteúdo dessa folha, tendes em mãos um negócio muito sério.

CORNUALHA - Verdadeiro ou falso, ele te fez conde de Gloster. Descobre onde está teu pai, para que
eu providencie logo sua prisão. EDMUNDO (à parte) - Se eu o encontrar confortando o rei, isso virá
reforçar as suspeitas do duque. - Hei de manter-me na trilha da lealdade, por mais doloroso que seja o
conflito entre ela e meu sangue.

CORNUALHA - Depositarei em ti minha confiança; em meu amor encontrarás um pai mais carinhoso.
(Saem.)

REI LEAR, ATO III, Cena VI

Uma cabana próxima do castelo. Entram Gloster, Lear, Kent, o bobo e Edgar.

GLOSTER - Aqui é melhor do que ao ar livre; aceitai de bom coração. Vou providenciar para o vosso
conforto como me for possível; não me demorarei. KENT - Toda a força de seu espírito cedeu diante da
indignação. Que os deuses recompensem vossa bondade.
(Sai Gloster.)

EDGAR - Frateretto me chama para dizer que Nero é um pescador no lago das trevas. Reza, inocente, e
toma cuidado com o inimigo impuro.

BOBO - Tio, por obséquio, dize-me se um louco é gentil-homem ou fazendeiro.

LEAR - Um rei! Um rei!

BOBO - Não; foi o fazendeiro que teve um filho gentil-homem; porque é preciso ser fazendeiro louco,
para deixar que o filho se torne gentil-homem antes dele.

LEAR - Oh! Se mil, a um só tempo, de espetos rubros, se atirassem sobre elas, assobiando...

EDGAR - O demônio impuro está me mordendo as costas.

BOBO - Louco é quem se fia na mansidão do lobo, na saúde do cavalo, no amor de um rapaz e no
juramento de uma prostituta.

LEAR - Assim farei. Vou intimá-las já.
(A Edgar.)

Senta-te aqui, doutíssimo juiz. (Ao bobo.) E vós, aqui, sábio senhor. E agora passemos às raposas.

EDGAR - Vede! está ele com os olhos fixos! Precisas de olhos para o processo, madame? Vem para cá,
Bessy; pula o regato.

BOBO - O barco dela é furado; por isso ela tem cuidado. Por que, então, não arrisca a vir por cima?

EDGAR - O demônio impuro persegue o pobre Tom sob a voz de um rouxinol; Hopdance grita na
barriga de Tom por dois arenques brancos. Pára de coaxar, anjo negro! Não tenho alimento para dar-te.

KENT - Como passais, senhor? Ficai mais calmo. Não quereis repousar no travesseiro?

LEAR - Primeiro quero ver o julgamento. Trazei as testemunhas. (A Edgar.) Juiz togado, senta-te logo.
(Ao bobo.) E tu, seu companheiro de jugo na Justiça, ao lado dele. (A Kent.) Vós sois da comissão;
sentai-vos aí!

EDDGAR - Procedamos com justiça. Dormes ou velas, belo pastorzinho? teu anho está no trigo. Mas a
um grito de tua rósea boca, não correrá perigo. Prrr! O gato é cinzento.

LEAR - Citei esta em primeiro lugar; é Goneril. Presto juramento diante desta honrada assembléia em
como ela deu um pontapé no pobre rei seu pai.

EDGAR - Vinde mais para a frente, moça! Vosso nome é Goneril?

LEAR - Não poderá negá-lo.

BOBO - Peço desculpas, mas tomei-vos por um tamborete.

LEAR - Aqui está a outra, cujo olhar de esguelha proclama o que no coração se abriga. Prendei-a logo!
Armas! espada, fogo! A corrupção campeia! Juiz corrupto, por que deixaste que ela fosse embora?

EDGAR - Abençoados sejam teus cinco espíritos!

KENT - Oh! piedade, senhor! Onde pusestes a paciência de que faláveis tanto, jurando conservá-la?

EDGAR (à parte) - Tanto as lágrimas ficam do lado dele, que me ameaçam estragar todo o plano.

LEAR - Este cãozinho, vede, e os outros, Gracioso, Fiel e Neve, se atiram contra mim.

EDGAR - Tom vai atirar-lhes sua própria cabeça. Fora daqui, mastins! De goelas brancas ou pretas,
dentes sujos e caretas, mastim, galgo ou perdigueiro, molosso tardo ou ligeiro, de pêlo curto ou lanzudo,
Tom vai dar cabo de tudo. Contra eles o coco atiro, fazendo-os correr em giro. Do, de, de, de. Sessa!
Vamos, marchai para as festas de igreja, feiras e mercados. Pobre Tom, teu chifre está vazio.

LEAR - Agora dissequem Regane, para ver o que brota de junto do coração dela. Há alguma causa
natural que torne endurecidos esses corações? (A Edgar.) Vós, senhor, considero-vos um dos meus cem
homens; apenas não me agrada o corte de vossas vestes. Ireis dizer-me que foram feitas à moda persa.
Contudo, será conveniente mudá-las.

KENT - Agora, meu bom senhor, ide deitar-vos um pouco, para repousar.

LEAR - Nada de barulho, nada de barulho... Correi a cortina... Assim, assim, assim... Pela manhã
cearemos. Assim, assim, assim...

BOBO - E ao meio-dia irei deitar-me.
(Volta Gloster.)

GLOSTER - Aproxima-te, amigo. Onde está o rei, meu mestre?

KENT - Aqui, senhor; mas não o perturbeis; perdeu a razão.

GLOSTER - Carrega-o, caro amigo, por obséquio. Há uma conjura contra a vida dele. Aqui perto há uma
maca; deita-o nela e corre, amigo, para Dover, onde irás achar boa acolhida e amparo. Levanta teu
senhor; se demorares meia hora que seja, a vida dele, como a luta e a de todos os que o seguem, correm
para uma perda inevitável. Levante-o com bem jeito e vem comigo, que vou prover-te com bastante
urgência do que for necessário.

KENT - A natureza cansada adormeceu. Este repouso poderia deitar-te um linimento nos nervos
torturados, que, na falta de boas condições, dificilmente chegarão a sarar. (Ao bobo.) Vamos, ajuda-me a
carregar teu mestre. Tu não podes, também, ficar aqui.

GLOSTER - Vamos logo, (Saem Kent, Gloster e o bobo, carregando Lear.)

EDGAR - Ao veres teu senhor sofrer teus males, convences-te de que de nada vales. Quem sofre só,
padece em pensamento, por na dita passada estar atento. O espírito não fica em desalinho, quando
consegue a dor algum vizinho. Quão leve me parece o fardo ingente que me deixa encurvado e o rei
gemente! Fez-me meu pai o que para ele as filhas. Tom, cuidado com as vozes! Tu te humilhas somente
enquanto a falsidade dura te conservar desviado da ventura. Venha o que vier, contento que o rei fuja.
Atenção! Atenção!
(Sai.)

REI LEAR, ATO IV, Cena IV

O mesmo. Uma tenda. Entram com toque de tambor e bandeiras desfraldadas Cordélia, o médico e
soldados.

CORDÉLIA - É ele mesmo, ai de mim! Neste momento foi visto, tão furioso como o oceano revoltado, a
cantar alto e sozinho, coroado de áspera fumária, urtiga, cicuta, cardamina, pegamassa, joio, cizânia e
quanta erva daninha viceja em nosso trigo alimentício. Mandai cem homens; que examinem jeira por
jeira da lavoura já crescida, e a nossa vista o tragam.
(Sai um oficial.)
Com que meios conta a sabedoria humana, para restituir-lhe a razão? Quanto possuo ficará sendo de
quem quer que o cure.

O MEDICO - Há recursos, senhora. A ama de nossa natureza é o repouso, justamente o de que ele
carece, o que é possível nele obter pela ação de muitos simples que baixarão a pálpebra da angústia.

CORDÉLIA - Surgi com minhas lágrimas, segredos abençoados, virtudes ainda ocultas da natureza!
Vinde em nosso auxílio, remediando a desgraça do bom velho! Procurai-o depressa! Procurai-o, antes
que seu furor desordenado lhe dissolva a existência carecente de eficaz direção.
(Entra um mensageiro.)

MENSAGEIRO - Novas, senhora! As forças da Bretanha se aproximam.

CORDÉLIA - Disso conhecimento já tivemos, e à sua espera estamos. É a tua causa, querido pai, que eu
sirvo. Esse o motivo de ter-se o grande França de meu choro apiedado e de meu luto. A vazia ambição
não foi que o braço nos armou para a luta, mas apenas o amor, o terno amor, bem como a causa de nosso
idoso pai. Pudesse eu vê-lo dentro de pouco e ouvi-lo!
(Saem.)

REI LEAR, ATO IV, Cena VI

Região perto de Dover. Entram Gloster e Edgar vestido como camponês.

GLOSTER - Quando estarei no cimo da colina?

EDGAR - Já estais subindo. Vede nosso esforço.

GLOSTER - Tenho a impressão de que o terreno é plano.

EDGAR - Horrivelmente abrupto. Não ouvis o barulho do mar?

GLOSTER - Não, em verdade.

EDGAR - E que os outros sentidos tendes fracos pelo que os olhos sofrem.

GLOSTER - É possível. Parece-me que tens a voz mudada e que com mais sentido agora falas e melhor
expressão.

EDGAR - É puro engano de vossa parte; em nada estou mudado, se não for nestas vestes.

GLOSTER - Não; parece-me que te exprimes melhor.

EDGAR - Vamos, senhor; eis o lugar. Chegamos. Ficai quieto. Como é terrível! É de dar vertigens olhar
nesta distância para baixo. Como os corvos e as gralhas que transvoam o ar intermédio ficam pequeninos
como besouros! Vê-se à meia altura, suspenso, um homem que procura funcho. Profissão arriscada! A
impressão tenho de que ele é do tamanho da cabeça. Os pescadores que andam pela praia parecem-se
com ratos; a barcaça ali ancorada, tão pequena se acha como o próprio escaler, e este se encontra
reduzido a uma bóia, pequenina demais para ser vista. As marulhosas vagas que batem nos inumeráveis e
preguiçosos seixos não se fazem ouvir de tanta altura. É-me impossível olhar mais tempo assim, pois
tenho medo de vir a ter vertigens, atirando-me a vista de cabeça para baixo.

GLOSTER - Coloca-me no ponto em que te encontras.

EDGAR - Dai-me a mão; só um passo vos separa da borda extrema. Por quanto há debaixo da lua, eu não
saltara dessa altura.

GLOSTER - Solta-me a mão; recebe esta outra bolsa; dentro dela há uma jóia que merece ficar com
algum pobre. Os deuses todos e as fadas te protejam. Vai-te embora; dize adeus, pois desejo ouvir teus
passos.

EDGAR - Passai bem, bom senhor.

GLOSTER - Agradecido de todo coração.

EDGAR (à parte) - A brincadeira que faço com a desgraça dele, visa, tão-somente, curá-lo.

GLOSTER - Ó deuses grandes, renuncio a este mundo e, em vossa vista, paciente, me despojo do meu
grande sofrimento! Pudesse eu suportá-lo por mais tempo, sem luta abrir com vossa vontade irresistível,
este abjeto morrão da natureza se deixara consumir até ao fim. Se ainda com vida estiver meu Edgar, oh!
abençoai-o! E agora, amigo, adeus.
(Cai para a frente.)

EDGAR - Adeus, senhor; já fui embora. (À parte.) Conceber não posso como a imaginação roubar
consegue da vida a rara jóia, quando a própria vida se presta ao roubo. Se se achasse onde pensava estar,
neste momento pensar já não pudera. Vivo ou morto? (A Gloster.) Então, senhor! Amigo! Estais me
ouvindo? Poderia morrer... Mas não; revive. Que sois, senhor? Dizei-me. GLOSTER - Vai-te embora e
deixa-me morrer.

EDGAR - Se algo mais fosses do que ar, teia de aranha, leve pluma, caindo assim de tantas braças do
alto, partido já estarias como um ovo. Mas respiras, possuis pesado corpo, não perdes sangue, estás
inteiro, filas. Dez mastros superpostos não bastaram para medir a altura de onde caíste
perpendicularmente. Verdadeiro milagre é tua vida. Vamos, fala!

GLOSTER - Mas eu caí ou não?

EDGAR - Sim, lá do pico desta penha calcária. Olha para o alto; ver e ouvir não se pode a cotovia de
garganta estridente. Olha para o alto!

GLOSTER - Ai de mim! Não tenho olhos! É negada à desgraça o benefício de pôr termo com a morte á
própria angústia. Era consolo para o sofrimento poder lograr a raiva do tirano e frustrar seus intentos
orgulhosos.

EDGAR - Dai-me o braço. De pé! Então, e agora? Sentis as pernas? Eis-vos levantado.

GLOSTER - Bem; muito bem.

EDGAR - Tudo isso é muito estranho. Que era que estava no alto do penhasco e se apartou de vós?

GLOSTER - Um miserável. Um mendigo infeliz.

EDGAR - Daqui debaixo onde me achava, pareciam duas luas os olhos dele. Dotado era de mil narizes,
cornos retorcidos e ondeados como os sulcos do mar bravo. Decerto era um demônio. Por tudo isso,
lembra-te, feliz pai, que os deuses claros que da importância dos mortais constroem toda sua glória, a
vida te salvaram.

GLOSTER - Agora penso nisso; de hoje em diante pretendo suportar o sofrimento até que por si mesmo
ele me grite: "Basta! Basta!" e pereça. Por um homem tomei a coisa a que vos referistes. Dizia muitas
vezes: "O demônio!" Foi ele que me pôs naquela ponta.

EDGAR - Possas agora ter só pensamentos tranqüilos e confiantes. Mas, que vejo! Quem vem aí
(Entra Lear, fantasticamente enfeitado com flores.)
Jamais a sã razão vestirá seu senhor dessa maneira.

LEAR - Não; não poderão pegar-me por cunhar moedas; sou o rei.

EDGAR - Oh espetáculo de transpassar o coração!

LEAR - Nisto a natureza sobrepuja a arte. Eis vosso soldo. Aquele sujeito maneja o arco como se fosse
um espantalho... Cortai-me uma jarda de pano. Vede! Um rato! Paz! Paz! Este pedaço de queijo frio
resolverá o assunto. Eis minha luva; medir-me-ei com um gigante. Trazei as alabardas escuras. Oh!
Bonito vôo, passarinho! No alvo! No alvo, hu! A senha, vamos!

EDGAR - Doce mangerona.

LEAR - Passai.

GLOSTER - Conheço essa voz.

LEAR - Ah! Goneril de barba branca! Adularam-me como um cão e me disseram que os pêlos brancos
de minha barba nasceram antes dos pretos. Responder "sim" e "não" a tudo o que eu dizia! "Sim" e "não"
ao mesmo tempo não era boa teologia. No dia em que a chuva veio para molhar-me e o vento para me
fazer bater o queixo, e em que o trovão se recusava a obedecer-me, foi quando as encontrei; foi quando
lhes percebi o cheiro. Ide embora; não têm palavra. Disseram-me que eu era tudo. É mentira! Não estou à
prova de febre.

GLOSTER - Lembro-me dessa voz perfeitamente. Não é o rei?

LEAR - Rei da cabeça aos pés. Vede os vassalos como tremem, quando fito neles os olhos. Ora apraz-me
perdoar a este homem. Qual o crime dele? Adultério? Não morrerás! Morrer por adultério? Não; isso faz
o pintassilgo, e à minha vista a mosca dourada é libertina. Porque o filho bastardo do bom Gloster foi

melhor para o pai que minhas filhas lealmente geradas. A vontade, luxúria, em toda parte! Preciso de
soldados. Vede aquela senhora sorridente, cujo rosto anuncia pura neve na união das coxas. Só virtude
mostra, sacudindo a cabeça sempre que ouve o nome do prazer. O furão e o corcel arrebatado não
revelam mais lúbrico apetite. Abaixo da cintura são centauros, muito embora mulheres para cima. Até à
cintura os deuses é que mandam; para baixo, os demônios. Ali é o inferno, escuridão, abismo sulfuroso,
calor, fervura, cheiro de podridão... Xi! Xi! Pá! Ó bondoso boticário, dá-me uma onça de almíscar, para
eu temperar a imaginação. Aqui tens dinheiro. GLOSTER -- Deixai-me beijar essa mão.

LEAR -- Primeiro deixai que a limpe; cheira a mortalidade.

GLOSTER -- Ó arruinada peça da natura! O imenso mundo há de gastar-se todo, reduzindo-se a nada.
Reconheces-me?

LEAR -- Lembro-me perfeitamente de teus olhos. Estás piscando para mim? Não, Cupido cego; por
mais que faças, não chegarei a amar-te. Lê este desafio; observa bem o traço das letras.

GLOSTER -- Se outros tantos sóis fossem, não as vira.

EDGAR(à parte) -- Se mo dissessem, não o acreditara. No entanto é certo e o coração me parte.

LEAR -- Lê!

GLOSTER -- Como! Com as órbitas apenas?

LEAR -- Oh! oh! Alcançastes-me nesse ponto? Nem olhos na cabeça, nem dinheiro na bolsa? Tendes os
olhos pesados e a bolsa leve; no entanto, podeis ver como vai o mundo.

GLOSTER -- Vejo-o porque o sinto.

LEAR -- Como! Estais louco! A gente pode ver sem olhos como vai o mundo. Olha com as orelhas; vê
como aquele juiz invectiva contra um simples ladrão. Escuta aqui, só uma palavrinha ao ouvido. Muda
de lugar... Um, dois, três! E ago ra: qual é o ladrão? Qual é o juiz? Já viste um cachorro de fazendeiro
ladrar para um mendigo?

GLOSTER -- Já, sim senhor.

LEAR -- E a criatura fugir do mastim? Nisso poderás contemplar a grande imagem da autoridade: um
cachorro no desempenho de suas funções é obedecido. Oficial de justiça desonesto, suspende a mão
sangrenta! Por que açoitas essa pobre rameira? Vira contra ti próprio essa chibata. Estás ardendo de
desejos de com ela realizares o ato por que a castigas. O onzeneiro põe na forca o ladrão. As faltazinhas
se deixam ver nos furos dos andrajos; mas as togas e as peles tudo encobrem. Forra de ouro o pecado, e a
forte lança da Justiça se quebra sem feri-lo;

cobre-o de trapos, e uma simples palha vibrada por pigmeu vai transpassá-lo. Ninguém comete falta, é o
que te afirmo; ninguém. A todos sirvo de fiador. Podes acreditar-me, amigo; fala-te quem força tem para
fechar a boca da acusação. Arranja umas lunetas e, como vil político, imagina ver coisas que não vês.
Bum, bum, bum, bum! Tirai-me as botas. Força! Força!... Assim...

EDGAR (à parte) - Que mistura de senso e de incoerência! A razão na loucura.

LEAR - Toma meus olhos, se chorar desejas minha infelicidade. Sei de sobra quem és. Teu nome é

Gloster. Pois bem sabes: ao respirarmos pela vez primeira, choramos e gememos. Vou fazer-te sobre isso
um bom sermão; sê, pois, atento.

GLOSTER - Oh dia triste!

LEAR - Mas nascemos, choramos por nos vermos neste grande tablado de dementes. Que bela forma de
chapéu! Seria idéia mui sutil pôr ferraduras de feltro nos cavalos de uma tropa. Vou tentá-lo; e, uma vez
caindo em cima de meus genros: matar, matar, matar!
(Entra um gentil-homem, com criados.)

GENTIL-HOMEM - Oh, ei-lo aqui! Com jeito segurai-o. Meu senhor, vossa filha muito amada...

LEAR - Não há socorro! Como! Prisioneiro? Sou realmente joguete da fortuna. Tratei-me bem;
pagar-vos-ei resgate. Trazei-me um cirurgião, pois tenho o cérebro muito ofendido.

GENTIL-HOMEM - Haveis de ter de tudo.

LEAR - Ninguém vem ajudar-me? Estou sozinho? Isso em homem de sal mudara um homem, para fazer
de irrigador os olhos, sim, e a poeira do outono deixar úmida.

GENTIL-HOMEM - Meu bom senhor...

LEAR - Morrerei como bravo, como noivo... Como! Jovial hei de mostrar-me. Vamos! Sou rei, meus
mestres; ignorais tal coisa?

GENTIL-HOMEM - É rei notável, a quem muito amamos.

LEAR - Então ainda há vida. Se a alcançardes, há de ser na carreira. Sá, sá, sá!...
(Sai; os criados o acompanham.)

GENTIL-HOMEM - Lastimoso já fora este espetáculo no mais ínfimo ser e desgraçado. Num rei, não
cabe no discurso humano. Uma filha ainda tens que a natureza limpa da maldição geral que as outras
fizeram vir sobre ela.

EDGAR - Salve, senhor.

GENTIL-HOMEM - Senhor, o céu vos guarde. Que desejais?

EDGAR - Ouvistes, porventura, falar de uma batalha a ser travada?

GENTIL-HOMEM - É certo e mui sabido. Todo o mundo que sons distingue, ouviu falar sobre isso.

EDGAR - Mas, por obséquio: a que distância se acha o outro exército?

GENTIL-HOMEM- Perto, e vem com pressa. A vista surgirá dentro de uma hora; é o que se espera.

EDGAR - Agradecido. É tudo.

GENTIL-HOMEM - Muito embora a rainha aqui se encontre por um motivo especial, o exército dela
avançou.

EDGAR - Bem; muito agradecido.
(Sai o gentil-homem.)

GLOSTER - Ó deuses sempre bons! tirai-me a vida, não permitindo que meu mau espírito tentar me
venha novamente, para que à vossa revelia eu peça a morte.

EDGAR - Pai, rezais muito bem.

GLOSTER - Quem sois, amigo?

EDGAR - Indivíduo mui pobre, que os reveses da fortuna amansou e que pela arte das desgraças alheias
e das próprias à compaixão se revelou sensível.

GLOSTER - Do imo peito agradeço. Que a bondade do céu e sua bênção te acompanhem sempre e
sempre.
(Entra Osvaldo.)

OSVALDO - Oh! Cabeça posta a prêmio! Encontro mui feliz! Essa cabeça sem olhos só criou carne
porque a minha fortuna prosperasse. Miserável traidor, concentra-te depressa, a espada que vai tirar-te a
vida está sacada.

GLOSTER - Então põe força em tua mão amiga.
(Edgar se interpõe.)

OSVALDO - Por que te atreves, rústico atrevido, a amparar um traidor, publicamente como tal
proclamado? Vai-te embora; do contrário, a infecção da sorte dele passará para ti. Larga-lhe o braço!

EDGAR - Não largo ele, seu moço; não há percisão disso.

OSVALDO - Solta-o, escravo! Do contrário, morrerás.

EDGAR - Ide embora, seu moço; ide embora e deixai os pobre viver. Se as ameaças pudessem tirar-me a
vida, esta teria sido encurtada de uma quinzena. Não vos aproximeis do velho; ficai de longe, é o que eu
digo, ou então vamos tirar a prova para ver o que é mais duro, se vosso coco ou este meu cacete. Gosto
de franqueza.

OSVALDO - Sai da frente, monturo!

EDGAR - Vou curar vossos dentes, seu moço. Vinde. Vossos botes não me metem medo.
(Batem-se; Edgar o abate.)

OSVALDO - Oh! matas-te-me, escravo! Coisa à-toa, fica com minha bolsa. Se desejas prosperar,
sepultura dá a meu corpo e entrega as cartas que aqui trago a Edmundo, conde de Gloster. Morte
intempestiva!
(Morre.)

EDGAR - Sei quem és, um velhaco diligente; tão dedicado aos vícios da patroa quanto a maldade desejar
pudera.

GLOSTER - Como! Morreu?

EDGAR - Pai, repousai; Sentai-vos. Revistemos-lhe os bolsos. Essas cartas de que falou serão talvez
amigas. Morreu; só me aborrece não ter ele tido um outro carrasco. Mas vejamos. Permiti mole cera; e
vós, costumes, não nos culpeis; porque saber possamos as idéias de nossos inimigos os próprios corações

lhes abriríamos. Abrir cartas, assim é mais legítimo. "Lembrai-vos de nossos juramentos recíprocos.
Tendes muitas oportunidades de suprimi-lo; se vontade não vos faltar, oportunidade e lugar haveis de ter
de sobra. Nada se terá feito se ele voltar como vencedor, porque ficarei como sua prisioneira e o leito
dele como minha prisão. Libertai-me, portanto, desse calor odioso, e, pelo vosso trabalho, ficai com o
lugar dele. Vossa - esposa é o que eu desejara chamar-me - serva afetuosa Goneril. " Oh insondável
campo da perfídia feminina! Uma conjura contra a vida de um marido tão virtuoso, para ser por meu
mano substituído! Vou enterrar-te aqui na areia mesmo, sacrilego correio de assassinos luxuriosos, a fim
de em tempo certo ferir a vista do ameaçado duque com este papel fatal. E está com sorte por eu poder
contar-lhe de tua morte.

GLOSTER - O rei ficou insano; quão teimoso meu vil juízo se mostra, permitindo-me ficar de pé e
intacto me deixando o sentido de minha dor imensa. Fora melhor ficar de todo louco. Assim se
apartariam das tristezas os pensamentos, que as desgraças perdem a autoconsciência, quando sob o
império de errôneas fantasias.
(Ruído de tambor ao longe.)

EDGAR - Dai-me a mão. Ouço ao longe um tambor, se não me engano. Vamos, pai; vou confiar-vos a
um amigo.
(Saem.)

Cena VII

Uma tenda no acampamento francês. Entram Cordélia, Kent, um médico e um gentil-homem.

CORDÉLIA - Ó meu bondoso Kent, de que maneira posso viver e agir, para que a tua bondade
recompense? Minha vida será curta demais, sem que eu disponha de medida adequada.

KENT - Já me sobram, senhora, os vossos agradecimentos Vai de par meu relato com a mais simples
verdade, sem acréscimos nem falhas.

CORDÉLIA - Veste roupa melhor; essa roupagem faz lembrados momentos muito tristes. Por favor,
troca-a.

KENT - Não, cara senhora; perdoai-me; mas prejudicara muito meus planos dar-me a conhecer agora.
Como graça vos peço continuardes sem me reconhecer, até que o tempo e eu concordemos nisso.

CORDÉLIA - Pois que seja, meu bondoso senhor. (Ao médico.) Que faz o rei?

O MÉDICO - Ainda dorme, senhora.

CORDÉLIA - Ó divindades piedosas, deixai boa a grande brecha de sua natureza maltratada! Afinai os
sentidos em desordem e dissonantes deste pai que em criança voltou a transformar-se.

O MEDICO - Vossa Alteza permitirá que o rei nós despertemos? Já dormiu muito.

CORDÉLIA - Segui nisso apenas vossos conhecimentos, procedendo como melhor julgardes. Já o
vestiram?
(Entra Lear numa cadeira, carregado por criados.)

GENTIL-HOMEM - Já sim, senhora, pois no mais pesado do sono lhe trocamos toda a roupa.

O MÉDICO - Ficai junto, senhora, no momento de o despertarmos, pois não tenho dúvidas quanto a suas
melhoras.

CORDÉLIA - Muito bem.
(Música.)

O MÉDICO - Aproximai-vos, por favor. A música, aí, mais alto!

CORDÉLIA - Ó meu querido pai! Em meus lábios suspende teus remédios, convalescença, e deixa que
este beijo repare a imensa dor que minhas manas produziram em tua reverência.

KENT - Minha boa princesa e mui querida!

CORDÉLIA - Mesmo que pai não fosse delas duas. estes cabelos brancos lhes teriam forçado à
compaixão. Uma cabeça como esta poderia ser exposta à fúria das rajadas? defrontar-se com o trovão
pavoroso e o mais terrível ziguezaguear de temerosos raios? Ficar de guarda - pobre sentinela! - com este
elmo tão fino? O próprio cão do meu imigro, embora me tivesse mordido, houvera, numa noite dessas,
permanecido junto do meu fogo. E tu, meu pobre pai, foste forçado a abrigar-te com porcos e mendigos
numa pouca de palha embolorada! Ai, que dor. Maravilha é não haveres a um só tempo perdido a vida e
o espírito. Vai acordar; falai-lhe.

O MÉDICO - Vós, senhora; será melhor.

CORDÉLIA - Como se sente agora meu real senhor? E Vossa Majestade como passa?

LEAR - Foi mal de vossa parte retirar-me do túmulo. És uma alma da bem-aventurança; eu, porém, me
acho a uma roda de fogo sempre atado, que minhas próprias lágrimas escaldam como chumbo fundido.

CORDÉLIA - Conheceis-me, senhor?

LEAR - És um espírito; conheço-te. Desde quando morreste?

CORDÉLIA - Divagando sempre por muito longe.

O MÉDICO - Concedei-lhe mais algum tempo; despertou há pouco.

LEAR - Onde estive? Onde estou? É dia claro? Oh! Procederam muito mal comigo; morrer de
compaixão eu poderia, se visse alguém tratado desse modo. Não sei o que dizer; jurar não quero que
estas mãos sejam minhas. Mas vejamos: sinto esta alfinetada. Quem me dera saber quem sou, realmente.

CORDÉLIA - Senhor, olhai para o meu lado, e as mãos estendei sobre mim, para abençoar-me. Não,
meu senhor! Não vos ponhais de joelhos!

LEAR - Ah! Não zombeis de mim, é o que vos peço. Sou um velho imprestável e caduco, para cima de
oitenta, nem uma hora mais nem menos. E, para ser sincero, receio ter o espírito avariado. Creio vos
conhecer e, assim, a este homem; mas em dúvida me acho, pois ignoro de todo onde me encontro, sem
que possa lembrar-me destas vestes. De igual modo não sei onde passei a última noite. Oh! não riais de
mim! Porque tão certo como eu ser homem, quer afigurar-me que esta dama é Cordélia, minha filha.

CORDÉLIA - Sou ela mesma, meu senhor; sou ela.

LEAR - Tendes lágrimas úmidas? Realmente. Não choreis, é o que peço. Se tiverdes veneno para

dar-me, hei de bebê-lo. Sei que amor não me tendes. Vossas manas - tanto quanto me lembro -
procederam comigo muito mal. Mas tendes causa; ao passo que nenhuma delas tinha.

CORDÉLIA - Nenhuma causa! Não; nenhuma causa!

LEAR - Estou na França?

KENT - Em vosso próprio reino, senhor.

LEAR - Não me enganeis.

O MÉDICO - Ficai tranqüila, boa senhora. Já está morta nele, como estais vendo, a grande fúria. Agora
perigoso é fazê-lo novamente subir ao longo do perdido tempo. Levai-o para dentro, sem cansá-lo com
perguntas, até que se refaça.

CORDÉLIA - Quererá Vossa Alteza andar um pouco?

LEAR - Precisareis comigo ter paciência. Esquecei e perdoai-me, por obséquio. Estou velho e caduco.
(Saem Lear, Cordélia, o médico e os criados.)

GENTIL-HOMEM - Confirmou-se a notícia, senhor, de que o duque de Cornualha foi morto?

KENT - Perfeitamente, senhor.

GENTIL-HOMEM - Quem está à testa de seus homens?

KENT - Ao que dizem, o filho bastardo de Gloster.

GENTIL-HOMEM - Dizem que Edgar, seu filho exilado, está na Alemanha com o conde de Kent.

KENT - Os boatos variam. É tempo de abrirmos os olhos; as forças do reino se aproximam com presteza.

GENTIL-HOMEM - A decisão promete ser sangrenta. Passai bem, senhor.
(Sai.)

KENT - Ou boa ou má, a minha conclusão os golpes de hoje à luz sair farão.
(Sai.)