Salão nobre do palácio do Rei Lear. Entram Kent, Gloster e Edmundo.
KENT - Sempre pensei que o rei fosse mais afeiçoado ao duque de Albânia do que ao de Cornualha.
GLOSTER - Era o que também me parecia; mas agora, na divisão do reino, não se pode saber qual dos
dois duques ele aprecia mais, porque as partes foram pesadas com tal eqüidade, que a mais impertinente
curiosidade não saberá decidir-se por nenhuma delas.
KENT - Este rapaz é vosso filho, milorde?
GLOSTER - Sua educação, senhor, esteve a meu cargo. Tantas vezes corei de confessá-lo, que
presentemente já me encontro calejado.
KENT - Não posso compreender-vos.
GLOSTER - Mas a mãe deste mancebo o compreendia perfeitamente, senhor; tanto assim, que ficou com
o ventre arredondado com um filho que arranjou para seu berço, antes de conseguir um marido para o seu
leito. Percebeis alguma falta nisso?
KENT - Não posso desejar que a falta não houvesse sido cometida, à vista da graça de suas
conseqüências.
GLOSTER - Mas possuo um filho legítimo, senhor, coisa de um ano mais velho do que este, que nem
por isso tenho em mais alta estima. É verdade que este peralta veio ao mundo com certo descoco, antes
de ser chamado; mas também é verdade que sua mãe era muito linda. Foi gerado na folia, sendo me
agora preciso reconhecer o bastardo. Conheceis este gentil-homem, Edmundo?
EDMUNDO - Não, milorde.
GLOSTER - É o milorde de Kent; de agora em diante lembra-te dele como de honrado amigo meu.
EDMUNDO - Ao dispor de Vossa Senhoria.
KENT - Desejo amar-vos e peço que me ensejeis oportunidades de conhecer-vos mais de perto.
EDMUNDO - Esforçar-me-ei por merecê-lo, senhor.
GLOSTER - Esteve fora nove anos e precisará sair de novo. O rei vem vindo.
(Fanfarra. Entram Lear, Cornualha, Albânia, Goneril, Regane, Cordélia e séqüito.)
LEAR - Gloster, fazei entrar na sala os nobres da França e da Burgúndia.
GLOSTER - Neste instante, meu soberano.
(Saem Gloster e Edmundo.)
LEAR - Enquanto isso, mostrar pretendo nossos desígnios mais recônditos. Um mapa! Ficai sabendo,
assim, que dividimos nosso reino em três partes, sendo nossa firme intenção livrar-nos, na velhice, dos
cuidados, bem como dos negócios, para confiá-los a mais jovens forças, e, assim, nos arrastarmos para a
morte, de qualquer fardo isento. Nosso filho de Cornualha, assim como vós, Albânia, filho também não
menos caro, temos o propósito certo, neste instante, de declarar publicamente o dote de nossas filhas,
para que a discórdia futura fique obviada desde agora. Os príncipes da França e da Burgúndia, grandes
rivais no amor de nossa filha mais nova, em nossa corte já fizeram sua parada longa e apaixonada. Ora
aguardam resposta. Minhas filhas - já que neste momento nos despimos do governo, não só, dos
territórios e cuidados do Estado - ora dizei-me qual de vós mais amor nos tem deveras, porque alargar
possamos nossa dádiva onde contende a natureza e o mérito. Fale primeiro Goneril, a nossa filha mais
velha.
GONERIL - Senhor, amo-vos mais do que as palavras poderão exprimir, mais ternamente do que a visão,
o espaço, a liberdade, muito mais do que tudo que é prezado, raro ou valioso, tanto quanto a vida com
saúde, beleza, honras e graça, como jamais amou filha nenhuma ou pai se viu amado; é amor que torna
pobre o alento e o discurso balbuciante. Amo-vos para além de todo extremo.
CORDÉLIA (à parte) - Cordélia que fará? Ama e se cala.
LEAR - Todo este trecho aqui, de uma a outra linha, com suas matas e campinas ricas, com rios
caudalosos e seus prados de larga bordadura, te pertencem. De tua prole e de Albânia, como posse
perpétua vai ficar. Que diz agora nossa segunda filha, a queridíssima Regane, esposa de Cornualha? Fala.
REGANE - De igual metal que minha irmã sou feita e pelo preço dela me avalio. No imo peito descubro
que ela soube dar expressão ao meu amor sincero. Mas ficou muito aquém, pois inimiga me declaro de
quantas alegrias se contenham na mui preciosa esfera dos sentidos tão-só. Achei minha única felicidade
na afeição de Vossa mui querida Grandeza.
CORDÉLIA (à parte) - Então, coitada de Cordélia! Contudo, nem por isso, pois estou certa de que meu
afeto mais rico é do que a língua.
LEAR - Que para ti e os teus fique de herança permanente este terço avantajado do nosso belo reino, em
rendas, graças e extensão não menor em nenhum ponto do que o que em sorte coube a Goneril. Nossa
alegria, agora, conquanto a última, não a menor, e cujo afeto jovem os vinhedos da França e o branco
leite da Burgúndia disputam: que podeis dizer-nos para um terço mais opimo virdes a obter do que os das
vossas manas? Falai.
CORDÉLIA - Meu senhor, nada.
LEAR - Nada?
CORDÉLIA - Nada.
LEAR - De nada sairá nada. Novamente dizei alguma coisa.
CORDÉLIA - Oh desditosa! Trazer não posso o coração à boca. Amo a Vossa Grandeza como o dever
me impõe, nem mais nem menos.
LEAR - Que é isso, Cordélia? Concertai um pouco vossas palavras, para não deitardes a perder vossa
dita.
CORDÉLIA - Meu bondoso senhor, vós me gerastes, educastes e me amastes, pagando eu todos esses
benefícios qual fora de justiça: com obediência e amor vos honro sempre extremamente. Por que têm
maridos minhas irmãs, se dizem que vos amam sobre todas as coisas? Se algum dia vier a casar, há de
seguir o dono do meu dever apenas a metade de meu amor, metade dos cuidados e das obrigações.
Certeza é nunca vir a casar-me como as duas manas, para amar a meu pai por esse modo. LEAR - Do
coração te veio o que disseste?
CORDÉLIA - Sim, meu senhor.
LEAR - Tão jovem e tão áspera?
CORDÉLIA - Tão jovem, meu senhor, e verdadeira.
LEAR - Então vai ser teu dote só a tua veracidade. Pois pela sagrada irradiação do sol, pelos mistérios de
Hécate e, assim, da noite, pelas grandes operações dos orbes que nos fazem viver e definhar: desde este
instante me desligo dos laços consanguíneos, preocupações de pai e parentesco, passando a te considerar
como uma pessoa estranha a mim e a meu afeto, de agora para sempre. O cita bárbaro ou selvagem que
faz da prole pábulo para o apetite, há de ser mais vizinho do meu seio, acolhido e consolado, do que tu,
que não és já filha minha.
KENT - Meu senhor...
LEAR - Kent, silêncio; não te metas entre o dragão e sua grande cólera. Predileção lhe tinha e pensei
sempre que haveria de achar grato repouso em seus carinhos. Foge-me da vista! Tão certo como eu ter
paz no sepulcro, o coração de pai lhe tiro agora. Chamai França! Que é que ainda se mexe? Chamai
Burgúndia aqui! Cornualha e Albânia, acrescentai mais este dote aos outros de minhas duas filhas. Que
se case com ela o orgulho, a que franqueza chama. Juntamente comigo vos invisto no meu poder, minhas
prerrogativas e em todas as extensas dignidades que à majestade se unem. Nós, seguindo nisso o curso
mensal e reservando cem cavaleiros, cujo encargo fica por vossa conta, nossa casa havemos de na vossa
fazer por modo alterno. De rei, o nome apenas reteremos, com suas dignidades; mas o mando, a
execução das leis, as rendas, tudo, caros filhos, é vosso. E como certo penhor do que ora afirmo, esta
coroa dividirei entre ambos.
KENT - Real Lear, a quem como meu rei acatei sempre, amei como a meu pai, acompanhei como a
senhor e a quem nas minhas preces tinha como padroeiro...
LEAR - O arco está armado; sai da frente da seta!
KENT - Não; dispara-a, embora a farpa o coração me atinja. Descortês será Kent, se é louco Lear. Que
estás fazendo, velho? Acaso pensas que o dever tenha medo de falar, quando o poder se abaixa até à
lisonja? A honra obriga à franqueza, quando tomba na loucura, assim tanto, a majestade. Anula o teu
decreto, e recorrendo aos teus mais ponderosos argumentos, reprime logo essa medonha pressa. Minha
vida em penhor do que te afirmo; afeição inferior não te dedica tua terceira filha, nem tampouco sentirão
menos as pessoas cuja voz grave não ressoa no vazio.
LEAR - Por tua vida, Kent, nem mais um pio!
KENT - Penhor a vida me foi sempre, para contra os teus inimigos arriscá-la. Perdê-la não receio,
quando o exige tua própria salvação.
LEAR - Fora da minha vista!
KENT - Vê melhor, Lear, e ora consente que a mira de teus olhos eu me torne.
LEAR - Agora, por Apolo...
KENT - Por Apolo, agora em vão juraste por teus deuses.
LEAR - Oh vassalo! Insolente!
(Leva a mão à espada.)
ALBÂNIA E CORNUALHA - Não; detende-vos, caro senhor.
KENT - Manda matar teu médico e à impura doença entrega os honorários! Revoga o teu decreto; do
contrário, enquanto alento me restar no peito, direi que estás errado.
LEAR - Ouve-me, biltre! Por teu dever de vassalagem, ouve-me! Já que tentaste provocar a quebra de
nosso voto - o que jamais fizemos - e com teimoso orgulho te meteste entre nossa sentença e nosso trono
- o que não pode suportar a nossa natureza, nem menos nosso posto - de pé nosso poder, toma tua paga:
cinco dias te damos, porque possas contra os males do mundo premunir-te; ao sexto voltarás o dorso
odioso a todo o nosso reino; e se no décimo esse corpo banido for achado dentro de nossas terras, esse
instante será tua morte. Já daqui! Por Júpiter, não haverá revogação agora.
KENT - Adeus, rei. Declarar quero a verdade: o exílio é aqui, e longe, a liberdade.
(A Cordélia.)
Possam os deuses te amparar, menina, cujo pensar com o bom discurso afina.
(A Regane e Goneríl.)
Que por bons atos sejam confirmados vossos largos discursos e empolados. - Kent, assim, se despede dos
presentes e a novas terras leva os pés dolentes.
(Sai.)
(Fanfarra. Volta Gloster com França, Burgúndia e pessoas do séqüito.)
GLOSTER - Senhor, França e Burgúndia estão presentes.
LEAR - Milorde de Burgúndia, primeiramente a vós nos dirigimos, que sois rival, com este soberano, na
corte à nossa filha. Qual o mínimo que exigis como dote e em cuja falta desistis do pedido?
BURGÚNDIA - Muito nobre majestade, não peço nada acima do que já ofereceu Vossa Grandeza, que
menos não dará.
LEAR - Nobre Burgúndia, quando cara nos era, nós a tínhamos nesse preço; mas ora baixou muito.
Senhor, ali está ela. Se algum traço dessa coisinha de nenhum realce ou até mesmo ela toda, redobrada de
nosso desfavor, sem mais acréscimo, pode do agrado ser de Vossa Graça: ela aqui está; pertence-vos.
BURGÚNDIA - Ignoro que responder.
LEAR - Quereis, com as faltas todas que lhe são próprias, sem nenhum amigo, adotada por nosso recente
ódio, com toda nossa maldição por dote, expulsada por nosso juramento, levá-la ou recusá-la?
BURGÚNDIA - Real senhor, perdão; mas nessas condições, é claro, ninguém faz uma escolha.
LEAR - Então deixai-a, senhor; porque vos assevero, em nome do poder que me criou, que toda a sua
fortuna é o que vos disse. (A França.) Vós, potente soberano, de vosso amor não quero tão longe me
afastar, que almeje ver-vos unido a quem odeio. Assim, suplico-vos desviar vossa afeição para um objeto
mais digno do que a mísera criatura que a natureza quase se envergonha de declarar por sua.
FRANÇA - É muito estranho que aquela que, até há pouco, era a mais rara jóia de vosso afeto, o tema
excelso de vossos elogios, vosso bálsamo na velhice, a melhor, a mais querida, pudesse cometer assim,
de pronto, um crime tão monstruoso que desmanche tantas pregas da graça. Com certeza mui contrário à
natura foi seu crime, e muito a deturpou, se vosso afeto tão notório não é o que antes era. Acreditar tal
coisa a seu respeito, só com o auxílio da fé, pois, sem milagre, a isso a razão jamais me levaria.
CORDÉLIA - Suplico entanto a Vossa Majestade - pois careço dessa arte lisa e untuosa de falar em
contrário ao próprio intento, pois o que fazer quero já realizo, mesmo antes de falar - que deixeis claro
não ter sido nenhum vício infamante, velhacaria alguma, ato impudico, nem qualquer passo menos
decoroso que de vosso favor e vossa graça me privou neste instante, mas apenas a carência daquilo que
me deixa mais rica ainda: o olhar adulador e língua que não ter muito me alegra muito embora essa falta
seja a causa de me fazer perder vossa amizade.
LEAR - Melhor te fora nunca ter nascido, do que deixares de agradar-me agora.
FRANÇA - Então, foi isso apenas? Uma certa lentidão natural, que, muitas vezes, deixa de relatar a
própria história do que fazer pretende? Que dizeis, milorde de Burgúndia, desta noiva? O amor não é
amor, quando se mescla de considerações que muito aberram da meta principal. Ficais com ela?
BURGÚNDIA - Dai-lhe, real Lear, unicamente a parte que havíeis prometido, e, neste instante, tomo
Cordélia pela mão e a faço Duqueza de Burgúndia.
LEAR - Nada; sou firme; fiz um juramento.
BURGÚNDIA - Muito me pesa, então, que após haverdes perdido o pai, também percais o esposo.
CORDÉLIA - Seja a paz com Burgúndia! Já que havia em seu amor intuitos de riquezas, não serei sua
esposa.
FRANÇA - Linda Cordélia, pobre, ainda és mais rica; mais procurada, ainda, no abandono, e mais
amada, quando desprezada: de ti, dessas virtudes, apodero-me neste momento. Seja, assim, legítimo
apanhar o que foi jogado fora. Que estranho, ó deuses! que um glacial desprezo o respeito me inflame e
deixe preso! Deserdando tua filha, ó rei! deste ansa para rainha eu a fazer da França. Nenhum dos duques
da Burgúndia aquosa a noiva minha levará preciosa. Cordélia, adeus lhes dize, cruéis embora; perdes
aqui, para ganhar lá fora.
LEAR - França, leva-a contigo; é tua; nós tal filha já não temos, não, e após o que houve ela perdeu, por
mais que faça, nosso amor, nossa bênção, nossa graça. Vamos, nobre Burgúndia.
(Fanfarras. Saem Lear, Burgúndia, Cornualha, Albânia, Gloster e séqüito.)
FRANÇA - Dizei adeus agora a vossas manas.
CORDÉLIA - Jóias de nosso pai, com olhos úmidos Cordélia ora vos deixa. Eu vos conheço, mas como
irmã não quero dar o nome verdadeiro de vossas faltas todas. Cuidai de nosso pai; entrego-o a vossos
peitos que os próprios méritos proclamam. No entanto, ai! se em sua graça eu me encontrasse, talvez
melhor asilo lhe mostrasse. Assim, adeus para ambas.
REGANE - Não queirais ensinar nossos deveres.
GONERIL - Procurai agradar vosso marido que como esmola vos pegou da sorte. Revelastes caráter
obstinado; digna, portanto, sois do vosso fado.
CORDÉLIA - O tempo há de mostrar quem tem malícia, que a vergonha é o castigo da estultícia. Passai
bem.
FRANÇA - Vamos, linda Cordélia.
(Saem França e Cordélia.)
GONERIL - Mana, não é pouco o que tenho a dizer sobre um assunto que nos toca muito de perto. Creio
que nosso pai vai partir esta noite.
REGANE - Isso é certeza, e em vossa companhia. No próximo mês ficará conosco.
GONERIL - Vistes como sua velhice é caprichosa; não é das menos valiosas a observação que tivemos
oportunidade de fazer; sempre revelou muito mais afeição para nossa irmã, transparecendo agora
claramente a falta de senso com que acaba de expulsá-la.
REGANE - E a fraqueza da idade, sendo certo que ele sempre se conheceu mal.
GONERIL - Até mesmo na melhor idade e de mais vigor, costumava revelar precipitação. Por isso,
preparemo-nos para receber de sua velhice não somente os defeitos enraizados de longa data, como
também as rabugices inconvenientes que trazem consigo os anos achacosos e irritáveis. REGANE -
Teremos de assistir ainda a muitas explosões súbitas, como essa de que resultou o banimento de Kent.
GONERIL - Ainda terão de realizar-se as cerimônias complementares da despedida entre ele e França.
Unamo-nos, é o que vos peço; se nosso pai conservar o poder com semelhante disposição, essa última
abdicação de sua vontade só nos poderá ser prejudicial.
REGANE - Havemos de refletir melhor sobre isso.
GONERIL - Precisaremos fazer qualquer coisa, enquanto o assunto está quente.
(Saem.)
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REI LEAR
REI LEAR - (King Lear) William Shakespeare
Personagens
LEAR, rei da Bretanha.
O rei da França.
O duque de Burgúndia.
O duque de Cornualha.
O duque de Albânia.
O conde de Kent.
O conde de Gloster.
EDGAR, filho de Gloster.
EDMUNDO, filho bastardo de Gloster.
CURAN, um cortesão.
OSVALDO, intendente de Goneril.
Um velho, caseiro de Gloster.
Um médico.
O bobo.
Um oficial, empregado por Edmundo.
Um gentil-homem, ligado a Cordélia.
Um arauto.
Criados de Cornualha.
GONERIL, filha de Lear
REGANE, filha de Lear
CORDÉLIA, filha de Lear
Cavaleiros do séqüito de Lear, oficiais, mensageiros, soldados e criados.
Personagens
LEAR, rei da Bretanha.
O rei da França.
O duque de Burgúndia.
O duque de Cornualha.
O duque de Albânia.
O conde de Kent.
O conde de Gloster.
EDGAR, filho de Gloster.
EDMUNDO, filho bastardo de Gloster.
CURAN, um cortesão.
OSVALDO, intendente de Goneril.
Um velho, caseiro de Gloster.
Um médico.
O bobo.
Um oficial, empregado por Edmundo.
Um gentil-homem, ligado a Cordélia.
Um arauto.
Criados de Cornualha.
GONERIL, filha de Lear
REGANE, filha de Lear
CORDÉLIA, filha de Lear
Cavaleiros do séqüito de Lear, oficiais, mensageiros, soldados e criados.
REI LEAR, ATO I, Cena II
Sala no castelo do conde de Gloster. Entra Edmundo com uma carta.
EDMUNDO - Sê minha deusa agora, natureza! A tuas leis empenho meus serviços. Porque terei de me
curvar à peste do costume e deixar que a impertinência das nações me despoje, tão-somente porque nasci
algumas doze luas, ou catorze, depois de qualquer mano? Por que bastardo? Por que mal nascido, se
minhas proporções são tão bem feitas, a alma tão franca e a compostura toda tão certa como a de
qualquer rebento de uma senhora honesta? Por que causa, pois, nos estigmatizam de baixeza, bastardo,
baixo, baixo?... Por que baixos todos nós que no furto deleitoso da natureza recebemos partes mais
ajustadas e mais alto espírito do que acontece nos cansados leitos, antiquados e insípidos, só feitos para
criar uma chusma de casquilhos, entre o sono e a vigília concebidos? Assim, Edgar legítimo, preciso
ficar com vossas terras. Tem o afeto de nosso pai não só o bastardo Edmundo, como o filho legítimo.
"Legítimo!" bela expressão! Espero, meu legítimo, que se esta carta for bem despachada e meu plano der
certo, o baixo Edmundo vai passar o legítimo. Prospero... Cresço... Amparai, ó deuses! os bastardos.
(Entra Gloster.)
GLOSTER - Banido Kent assim! França, colérico, se despediu, e o rei partiu à noite! Resignou ao poder,
tendo ficado com pensão reduzida! E tanta coisa em menos de um segundo! Olá, Edmundo, que
novidades há?
EDMUNDO (escondendo a carta) - Não há novidades, se não for do desagrado de Vossa Senhoria.
GLOSTER - Por que escondeis com tanta precipitação essa carta?
EDMUNDO - Não sei de nenhuma novidade, senhor.
GLOSTER - Que papel estáveis lendo?
EDMUNDO - Nada, milorde.
GLOSTER - Nada? Que necessidade havia, então, de enfiá-lo tão depressa no bolso? O que em si mesmo
é nada, não tem necessidade de ser escondido desse modo. Deixai-me ver! Vamos! Se for mesmo nada,
não precisarei de óculos.
EDMUNDO - Peço-vos, senhor, que me perdoeis; é uma carta de meu irmão, que eu ainda não li até ao
fim; mas pelo que pude ver assim por cima, penso que seu conteúdo é impróprio para vossa vista.
GLOSTER - Dai-me essa carta, senhor!
EDMUNDO - Farei mal tanto em recusá-la com em dar-vo-la. Seu conteúdo, pelo que pude alcançar, é
censurável.
GLOSTER - Quero vê-la; quero vê-la.
EDMUNDO - Quero crer, como justificativa de meu irmão, que ele escreveu apenas com o intuito de
provar ou confirmar minha virtude.
GLOSTER - "Nossas instituições e o respeito à velhice tornam o mundo amargo para os nossos melhores
anos, privam-nos dos bens até que nossa caduquice não se possa aproveitar deles. Começo a ver uma
escravidão inútil e presunçosa na opressão da tirania envelhecida, que governa não porque tenha poder,
mas por ser tolerada. Procurai-me, para que eu possa expandir-me a esse respeito. Se nosso pai dormisse
até que eu o despertasse, gozaríeis para sempre da metade das rendas dele e seríeis o bem-amado de
vosso irmão Edgar." - Hum! Conspiração! "Se dormisse até que eu o despertasse, gozaríeis da metade
das rendas dele." - Meu filho Edgar teve mão para escrever isto? coração e cérebro para concebê-lo?
Como te veio isto ter às mãos? Quem te trouxe esta carta?
EDMUNDO - Não foi trazida, senhor, e nisso é que consiste toda a treta; foi jogada pela janela de meu
quarto.
GLOSTER - Reconheceis a letra de vosso irmão?
EDMUNDO - Se o assunto fosse bom, milorde, eu iria jurar que a letra é dele; mas quando o considero
mais de perto, quero crer que não seja.
GLOSTER - É dele, sim.
EDMUNDO - A mão é dele, milorde; mas espero que o coração não esteja no conteúdo.
GLOSTER - Antes, ele nunca vos sondou a esse respeito?
EDMUNDO - Nunca, milorde; mas por várias vezes já o ouvi asseverar que quando os filhos atingem a
idade adulta e os pais começam a declinar, o pai deveria tornar-se como que pupilo do filho, ficando seus
bens sob a direção deste.
GLOSTER - Oh celerado! celerado! A mesma coisa que ele diz na carta! Celerado execrável! Celerado
desnaturado, odioso, bestial! Pior do que bestial! Vai buscá-lo imediatamente. Vou prendê-lo.
Abominável celerado! Onde está ele?
EDMUNDO - Ao certo não sei, milorde. Se concordardes em sustar vossa indignação contra meu irmão,
até que possais tirar dele melhores testemunhos de suas intenções, seguireis por um caminho certo; ao
passo que se procederdes com violência e vos enganardes quanto aos seus planos, abrireis em vossa
honra uma grande brecha e destruireis o próprio coração de sua obediência. Atrevo-me a apostar a vida
em como ele escreveu isso tudo apenas para pôr à prova a afeição que eu voto a Vossa Honra, sem
qualquer intenção maldosa.
GLOSTER - Pensais desse modo?
EDMUNDO - Se Vossa Honra concordar, eu vos colocarei em um lugar de onde possais ouvir-nos
conversar a esse respeito, vindo desta arte a convencer-vos pelo próprio testemunho dos ouvidos, e isso
sem delongas, ainda esta tarde.
GLOSTER - Não é possível que ele seja tão monstruoso...
EDMUNDO - De forma alguma; tenho certeza.
GLOSTER - ... com relação a seu próprio pai, que lhe dedica amor tão terno e desinteressado... Céu e
terra! Edmundo, ide procurá-lo; sondai-o, por obséquio; arranjai tudo de acordo com vossa sabedoria.
Daria todos os meus haveres para poder alcançar plena certeza a esse respeito.
EDMUNDO - Vou procurá-lo, senhor, neste momento; farei tudo do melhor modo possível e vos porei a
par do que houver.
GLOSTER - Esses últimos eclipses do sol e da lua não nos anunciam nada bom. Muito embora a ciência
da natureza possa explicá-los desta ou daquela maneira, a própria natureza se sente chicoteada pelos
efeitos que se lhes seguem. O amor esfria, a amizade desaparece, os irmãos se desavêm; nas cidades,
tumultos; nos campos, discórdias; nos palácios, traições, rompendo-se os laços entre filhos e pais. Esse
meu filho desnaturado confirma aqueles sinais: é filho contra pai. O rei se afasta da trilha da natureza: é
pai contra filho. Já vimos o melhor de nosso tempo: maquinações, imposturas, traições e toda sorte de
desordens ruinosas nos acompanham sem sossego até à sepultura. Vai buscar-me esse celerado,
Edmundo; nada terás a perder. Procede com cautela. E o nobre e magnânimo Kent, banido! Seu crime, a
honestidade! É muito estranho!
(Sai.)
EDMUNDO - Essa é a maravilhosa tolice do mundo: quando as coisas não nos correm bem - muitas
vezes por culpa de nossos próprios excessos - pomos a culpa de nossos desastres no sol, na lua e nas
estrelas, como se fôssemos celerados por necessidade, tolos por compulsão celeste, velhacos, ladrões e
traidores pelo predomínio das esferas; bêbedos, mentirosos e adúlteros, pela obediência forçosa a
influências planetárias, sendo toda nossa ruindade atribuída a influência divina... Ótima escapatória para
o homem, esse mestre da devassidão, responsabilizar as estrelas por sua natureza de bode. Meu pai se
juntou a minha mãe sob a cauda do Dragão e minha natividade se deu sob a Grande Ursa: de onde se
segue que eu tenho de ser violento e lascivo. Pelo pé de Deus! Eu teria sido o que sou, ainda que a mais
virginal estrela do firmamento houvesse piscado por ocasião de minha bastardização. Edgar...
(Entra Edgar.)
Pronto! Ei-lo que chega, tal qual a catástrofe na velha comédia. Minha deixa é "Melancolia pérfida", com
um suspiro como os de Tom de Bedlam. Oh! Esses eclipses pressagiam as desordens que vemos. Fá, sol,
lá, mi!
EDGAR - Olá, mano Edmundo! Que graves meditações são essas?
EDMUNDO - Estava pensando, mano, numa predição que li num dia destes, sobre o que há de seguir-se
a estes eclipses.
EDGAR - Preocupai-vos com essas coisas?
EDMUNDO - Posso afirmar-vos que por infelicidade se realizam os efeitos anunciados, tal como:
sentimentos contra as leis da natureza entre pais e filhos; mortes, fome, dissolução de amizades antigas,
divisões no Estado, ameaças e maldições contra os reis e os nobres, suspeitas injustificadas, proscrição de
amigos, dispersão de coortes, infrações conjugais e não sei o que mais.
EDGAR - Há quanto tempo sois sectário da astronomia?
EDMUNDO - Vamos, vamos... Quando vistes meu pai pela última vez?
EDGAR - Ontem à noite.
EDMUNDO - Falastes-lhe?
EDGAR - Sim; duas horas seguidas.
EDMUNDO - Despedistes-vos em bons termos? Não observastes nele nenhum sinal de
descontentamento, quer na fisionomia, quer nas expressões?
EDGAR - Absolutamente nenhum.
EDMUNDO - Refleti melhor sobre o que poderíeis ter feito para ofendê-lo, e fazei-me neste ponto a
vontade, evitando sua presença, até que o tempo se incumba de esfriar o ardor de seu desagrado, que
neste momento de tal modo se mostra revolto, que dificilmente poderia acalmar-se com maltratar vossa
pessoa.
EDGAR - Algum celerado me fez isso.
EDMUNDO - É o que eu receio. Peço que o eviteis com paciência, até que se torne mais vagaroso o
ímpeto de sua cólera. E, como disse, retirai-vos para os meus aposentos, onde disporei as coisas de modo
que possais ouvir milorde conversar. Ide logo, por obséquio. Se vos arriscardes a sair, que seja armado.
EDGAR - Armado, irmão?
EDMUNDO - Mano, eu vos aconselho para vosso bem; saí armado. Não quero ser homem de bem, se
em tudo isso houver algo de bom para vós. Contei-vos o que vi e ouvi, mas muito por cima, sem vos
apresentar a imagem horrorosa da coisa. Peço-vos, ide logo.
EDGAR - Terei logo notícias vossas?
EDMUNDO - Neste negócio estarei a vosso inteiro dispor.
(Sai Edgar.)
Um pai simplório e um mano em tudo nobre, que, pela própria condição, tão longe se acha de qualquer
mal, que nem suspeitas sobre isso pode ter e em cuja tola probidade montar vai facilmente minha
velhacaria. A coisa é clara: terras vou ter, ganhando-as com finura; falhando o berço, o espírito as segura.
(Sai.)
EDMUNDO - Sê minha deusa agora, natureza! A tuas leis empenho meus serviços. Porque terei de me
curvar à peste do costume e deixar que a impertinência das nações me despoje, tão-somente porque nasci
algumas doze luas, ou catorze, depois de qualquer mano? Por que bastardo? Por que mal nascido, se
minhas proporções são tão bem feitas, a alma tão franca e a compostura toda tão certa como a de
qualquer rebento de uma senhora honesta? Por que causa, pois, nos estigmatizam de baixeza, bastardo,
baixo, baixo?... Por que baixos todos nós que no furto deleitoso da natureza recebemos partes mais
ajustadas e mais alto espírito do que acontece nos cansados leitos, antiquados e insípidos, só feitos para
criar uma chusma de casquilhos, entre o sono e a vigília concebidos? Assim, Edgar legítimo, preciso
ficar com vossas terras. Tem o afeto de nosso pai não só o bastardo Edmundo, como o filho legítimo.
"Legítimo!" bela expressão! Espero, meu legítimo, que se esta carta for bem despachada e meu plano der
certo, o baixo Edmundo vai passar o legítimo. Prospero... Cresço... Amparai, ó deuses! os bastardos.
(Entra Gloster.)
GLOSTER - Banido Kent assim! França, colérico, se despediu, e o rei partiu à noite! Resignou ao poder,
tendo ficado com pensão reduzida! E tanta coisa em menos de um segundo! Olá, Edmundo, que
novidades há?
EDMUNDO (escondendo a carta) - Não há novidades, se não for do desagrado de Vossa Senhoria.
GLOSTER - Por que escondeis com tanta precipitação essa carta?
EDMUNDO - Não sei de nenhuma novidade, senhor.
GLOSTER - Que papel estáveis lendo?
EDMUNDO - Nada, milorde.
GLOSTER - Nada? Que necessidade havia, então, de enfiá-lo tão depressa no bolso? O que em si mesmo
é nada, não tem necessidade de ser escondido desse modo. Deixai-me ver! Vamos! Se for mesmo nada,
não precisarei de óculos.
EDMUNDO - Peço-vos, senhor, que me perdoeis; é uma carta de meu irmão, que eu ainda não li até ao
fim; mas pelo que pude ver assim por cima, penso que seu conteúdo é impróprio para vossa vista.
GLOSTER - Dai-me essa carta, senhor!
EDMUNDO - Farei mal tanto em recusá-la com em dar-vo-la. Seu conteúdo, pelo que pude alcançar, é
censurável.
GLOSTER - Quero vê-la; quero vê-la.
EDMUNDO - Quero crer, como justificativa de meu irmão, que ele escreveu apenas com o intuito de
provar ou confirmar minha virtude.
GLOSTER - "Nossas instituições e o respeito à velhice tornam o mundo amargo para os nossos melhores
anos, privam-nos dos bens até que nossa caduquice não se possa aproveitar deles. Começo a ver uma
escravidão inútil e presunçosa na opressão da tirania envelhecida, que governa não porque tenha poder,
mas por ser tolerada. Procurai-me, para que eu possa expandir-me a esse respeito. Se nosso pai dormisse
até que eu o despertasse, gozaríeis para sempre da metade das rendas dele e seríeis o bem-amado de
vosso irmão Edgar." - Hum! Conspiração! "Se dormisse até que eu o despertasse, gozaríeis da metade
das rendas dele." - Meu filho Edgar teve mão para escrever isto? coração e cérebro para concebê-lo?
Como te veio isto ter às mãos? Quem te trouxe esta carta?
EDMUNDO - Não foi trazida, senhor, e nisso é que consiste toda a treta; foi jogada pela janela de meu
quarto.
GLOSTER - Reconheceis a letra de vosso irmão?
EDMUNDO - Se o assunto fosse bom, milorde, eu iria jurar que a letra é dele; mas quando o considero
mais de perto, quero crer que não seja.
GLOSTER - É dele, sim.
EDMUNDO - A mão é dele, milorde; mas espero que o coração não esteja no conteúdo.
GLOSTER - Antes, ele nunca vos sondou a esse respeito?
EDMUNDO - Nunca, milorde; mas por várias vezes já o ouvi asseverar que quando os filhos atingem a
idade adulta e os pais começam a declinar, o pai deveria tornar-se como que pupilo do filho, ficando seus
bens sob a direção deste.
GLOSTER - Oh celerado! celerado! A mesma coisa que ele diz na carta! Celerado execrável! Celerado
desnaturado, odioso, bestial! Pior do que bestial! Vai buscá-lo imediatamente. Vou prendê-lo.
Abominável celerado! Onde está ele?
EDMUNDO - Ao certo não sei, milorde. Se concordardes em sustar vossa indignação contra meu irmão,
até que possais tirar dele melhores testemunhos de suas intenções, seguireis por um caminho certo; ao
passo que se procederdes com violência e vos enganardes quanto aos seus planos, abrireis em vossa
honra uma grande brecha e destruireis o próprio coração de sua obediência. Atrevo-me a apostar a vida
em como ele escreveu isso tudo apenas para pôr à prova a afeição que eu voto a Vossa Honra, sem
qualquer intenção maldosa.
GLOSTER - Pensais desse modo?
EDMUNDO - Se Vossa Honra concordar, eu vos colocarei em um lugar de onde possais ouvir-nos
conversar a esse respeito, vindo desta arte a convencer-vos pelo próprio testemunho dos ouvidos, e isso
sem delongas, ainda esta tarde.
GLOSTER - Não é possível que ele seja tão monstruoso...
EDMUNDO - De forma alguma; tenho certeza.
GLOSTER - ... com relação a seu próprio pai, que lhe dedica amor tão terno e desinteressado... Céu e
terra! Edmundo, ide procurá-lo; sondai-o, por obséquio; arranjai tudo de acordo com vossa sabedoria.
Daria todos os meus haveres para poder alcançar plena certeza a esse respeito.
EDMUNDO - Vou procurá-lo, senhor, neste momento; farei tudo do melhor modo possível e vos porei a
par do que houver.
GLOSTER - Esses últimos eclipses do sol e da lua não nos anunciam nada bom. Muito embora a ciência
da natureza possa explicá-los desta ou daquela maneira, a própria natureza se sente chicoteada pelos
efeitos que se lhes seguem. O amor esfria, a amizade desaparece, os irmãos se desavêm; nas cidades,
tumultos; nos campos, discórdias; nos palácios, traições, rompendo-se os laços entre filhos e pais. Esse
meu filho desnaturado confirma aqueles sinais: é filho contra pai. O rei se afasta da trilha da natureza: é
pai contra filho. Já vimos o melhor de nosso tempo: maquinações, imposturas, traições e toda sorte de
desordens ruinosas nos acompanham sem sossego até à sepultura. Vai buscar-me esse celerado,
Edmundo; nada terás a perder. Procede com cautela. E o nobre e magnânimo Kent, banido! Seu crime, a
honestidade! É muito estranho!
(Sai.)
EDMUNDO - Essa é a maravilhosa tolice do mundo: quando as coisas não nos correm bem - muitas
vezes por culpa de nossos próprios excessos - pomos a culpa de nossos desastres no sol, na lua e nas
estrelas, como se fôssemos celerados por necessidade, tolos por compulsão celeste, velhacos, ladrões e
traidores pelo predomínio das esferas; bêbedos, mentirosos e adúlteros, pela obediência forçosa a
influências planetárias, sendo toda nossa ruindade atribuída a influência divina... Ótima escapatória para
o homem, esse mestre da devassidão, responsabilizar as estrelas por sua natureza de bode. Meu pai se
juntou a minha mãe sob a cauda do Dragão e minha natividade se deu sob a Grande Ursa: de onde se
segue que eu tenho de ser violento e lascivo. Pelo pé de Deus! Eu teria sido o que sou, ainda que a mais
virginal estrela do firmamento houvesse piscado por ocasião de minha bastardização. Edgar...
(Entra Edgar.)
Pronto! Ei-lo que chega, tal qual a catástrofe na velha comédia. Minha deixa é "Melancolia pérfida", com
um suspiro como os de Tom de Bedlam. Oh! Esses eclipses pressagiam as desordens que vemos. Fá, sol,
lá, mi!
EDGAR - Olá, mano Edmundo! Que graves meditações são essas?
EDMUNDO - Estava pensando, mano, numa predição que li num dia destes, sobre o que há de seguir-se
a estes eclipses.
EDGAR - Preocupai-vos com essas coisas?
EDMUNDO - Posso afirmar-vos que por infelicidade se realizam os efeitos anunciados, tal como:
sentimentos contra as leis da natureza entre pais e filhos; mortes, fome, dissolução de amizades antigas,
divisões no Estado, ameaças e maldições contra os reis e os nobres, suspeitas injustificadas, proscrição de
amigos, dispersão de coortes, infrações conjugais e não sei o que mais.
EDGAR - Há quanto tempo sois sectário da astronomia?
EDMUNDO - Vamos, vamos... Quando vistes meu pai pela última vez?
EDGAR - Ontem à noite.
EDMUNDO - Falastes-lhe?
EDGAR - Sim; duas horas seguidas.
EDMUNDO - Despedistes-vos em bons termos? Não observastes nele nenhum sinal de
descontentamento, quer na fisionomia, quer nas expressões?
EDGAR - Absolutamente nenhum.
EDMUNDO - Refleti melhor sobre o que poderíeis ter feito para ofendê-lo, e fazei-me neste ponto a
vontade, evitando sua presença, até que o tempo se incumba de esfriar o ardor de seu desagrado, que
neste momento de tal modo se mostra revolto, que dificilmente poderia acalmar-se com maltratar vossa
pessoa.
EDGAR - Algum celerado me fez isso.
EDMUNDO - É o que eu receio. Peço que o eviteis com paciência, até que se torne mais vagaroso o
ímpeto de sua cólera. E, como disse, retirai-vos para os meus aposentos, onde disporei as coisas de modo
que possais ouvir milorde conversar. Ide logo, por obséquio. Se vos arriscardes a sair, que seja armado.
EDGAR - Armado, irmão?
EDMUNDO - Mano, eu vos aconselho para vosso bem; saí armado. Não quero ser homem de bem, se
em tudo isso houver algo de bom para vós. Contei-vos o que vi e ouvi, mas muito por cima, sem vos
apresentar a imagem horrorosa da coisa. Peço-vos, ide logo.
EDGAR - Terei logo notícias vossas?
EDMUNDO - Neste negócio estarei a vosso inteiro dispor.
(Sai Edgar.)
Um pai simplório e um mano em tudo nobre, que, pela própria condição, tão longe se acha de qualquer
mal, que nem suspeitas sobre isso pode ter e em cuja tola probidade montar vai facilmente minha
velhacaria. A coisa é clara: terras vou ter, ganhando-as com finura; falhando o berço, o espírito as segura.
(Sai.)
REI LEAR, ATO I, Cena IV
Uma sala no mesmo. Entra Kent disfarçado.
KENT - Se eu puder conseguir uma outra fala que torne a minha estranha, é bem possível que minha boa
empresa a alcançar venha o êxito pleno pelo qual as próprias feições desfigurei. Banido Kent, se ora
servir puderes lá mesmo de onde há pouco foste expulso, pode se dar que o mestre a que tanto amas te
encontre serviçal.
(Toque de trompa. Entram Lear, cavaleiros e séqüito.)
LEAR - Não me façam esperar nem um segundo pelo jantar. Vai logo aprontá-lo.
(Sai o criado.) Então, quem és tu?
KENT - Um homem, senhor.
LEAR - Qual é a tua profissão? Que pretendes de nós?
KENT - Minha profissão é não ser menos do que pareço; servir fielmente a quem confiar em mim; amar
quem for honesto; conversar com quem for sábio e falar pouco; temer a justiça; brigar quando não
houver outro jeito, e não comer peixe.
LEAR - Quem és tu?
KENT - Um tipo de coração honesto e tão pobre quanto o rei.
LEAR - Se como súdito és tão pobre quanto ele como rei, és, realmente, paupérrimo. Que desejas?
KENT - Serviço.
LEAR - A quem queres servir?
KENT - A vós.
LEAR - Conheces-me, companheiro?
KENT - Não, senhor; mas revelais algo em vossa postura, que me leva a vos chamar de mestre.
LEAR - E que coisa é essa?
KENT - Autoridade.
LEAR - Que serviços podes prestar?
KENT - Sei guardar um segredo honesto, montar a cavalo, correr, estropiar uma história interessante,
dizer grosseiramente uma mensagem fácil. Tudo o que um homem ordinário pode fazer, eu também
posso, sendo o melhor em mim a diligência.
LEAR - Que idade tens?
KENT - Não sou tão jovem, senhor, para amar uma mulher por causa de seu canto, nem tão velho para
me apaixonar por ela sem motivo: tenho quarenta e oito anos na carcunda.
LEAR - Segue-me; irás servir-me. Se depois do jantar não me pareceres pior, não nos separaremos muito
logo. O jantar, olá! Onde está o meu rapaz? O meu bobo? - Vós, aí: ide chamar o meu bobo.
(Sai um criado.)
(Entra Osvaldo.)
Vós aí, maroto: onde está minha filha?
OSVALDO - Se o permitis...
(Sai.)
LEAR - Que foi que disse aquele tipo? Chamai-me aqui esse rústico.
(Sai um cavaleiro.)
Onde está o meu bobo, eh! Só parece que o mundo está dormindo. Então, onde está esse mastim?
(Volta o cavaleiro.)
CAVALEIRO - Ele disse, milorde, que vossa filha não está passando bem.
LEAR - Por que motivo aquele escravo não voltou, quando o chamei?
CAVALEIRO - Senhor, ele me respondeu redondamente que não queria voltar.
LEAR - Não queria?
CAVALEIRO - Senhor, não sei o que acontece, mas, a meu ver, Vossa Alteza não é tratado com a
afeição cerimoniosa a que estáveis acostumado. Observa-se sensível quebra de carinho, não só com
relação à conduta da criadagem, como com a do próprio duque e a de vossa filha.
LEAR - Ah! És dessa opinião?
CAVALEIRO - Suplico-vos, milorde, que me perdoeis, se eu estiver enganado, mas o meu zelo não pode
ficar calado, quando penso que Vossa Alteza está sendo prejudicado.
LEAR - Fazes-me lembrado de minha própria percepção; ultimamente tenho notado um certo quê de
negligência, que eu atribuía mais à minha própria natureza desconfiada do que a qualquer intenção real e
ao propósito de descortesia. Vou examinar isso de mais perto. Mas onde está o meu bobo? Há dois dias
que não o vejo.
CAVALEIRO - Desde que a minha jovem senhora partiu para a França, senhor, o bobo definhou
bastante.
LEAR - Sobre isso, basta; já o havia notado muito bem. - Vós aí! Ide dizer a minha filha que desejo
falar-lhe.
(Sai o criado.)
E vós, ide chamar o meu bobo!
(Sai outro criado.)
(Entra Osvaldo.)
Oh! Vós, Senhor! Vinde cá, senhor! Quem sou eu, senhor?
OSVALDO - O pai da senhora.
LEAR - "O pai da senhora"? O criado do senhor, cão! Bastardo, escravo, maroto!
OSVALDO - Com vossa permissão, milorde, mas não sou nada disso.
LEAR - Atreves-te a fitar-me desse modo, biltre?
(Bate-lhe.)
OSVALDO - Não consinto que me batam, milorde.
KENT - Nem que te dêem um pontapé, meu jogador de futebol?
(Dá-lhe um pontapé.)
LEAR - Agradeço-te, companheiro; tu me serves, e eu passarei a estimar-te.
KENT - Vamos, senhor, levantai-vos! Fora daqui! Vou ensinar-vos a distinguir as pessoas. Fora! Fora!
Se quiserdes medir outra vez vosso comprimento de labrego, é só continuardes aqui. Caso contrário,
fora! Vamos! Não tendes senso? Assim!
(Empurra Osvaldo para fora.)
LEAR - Muito obrigado, amigo servidor; aqui está pelo teu serviço.
(Dá dinheiro a Kent.)
(Entra o bobo.)
BOBO - Eu também desejo recompensá-lo; aqui está o meu barrete.
(Oferece o gorro a Kent.)
LEAR - Então, meu belo peralta, que estás fazendo?
BOBO - Amigo, farias bem em aceitar o meu gorro.
KENT - Por quê, bobo?
BOBO - Por teres tomado o partido de quem já caiu no desagrado. É assim; se não puderes sorrir do lado
do vento, em pouco tempo apanharás resfriado. Toma; fica como meu gorro. Ora vê, este sujeito baniu
duas de suas filhas e fez um grande favor à terceira, contra a própria vontade dela. Se vais segui-lo,
precisarás usar o meu gorro. Então, meu tio? Quisera ter dois gorros e duas filhas.
LEAR - Por quê, menino?
BOBO - Se eu chegasse a lhes dar todos os meus haveres, me reservaria os gorros. Este aqui me
pertence; pede outro a tuas filhas.
LEAR - Toma cuidado com a chibata, maroto!
BOBO - A verdade é um cachorro que se mete na casinha e precisa ser chibateada para sair, enquanto a
senhora galga pode ficar a feder junto do fogo.
LEAR - Pestilência amarga para mim!
BOBO (a Kent) - Amigo, vou ensinar-te um discurso.
LEAR - Ouçamo-lo.
BOBO - Toma nota, tio: Não esbanjes teu estado; embora o saibas, calado; não andes, sejas levado; no
aprender, muito cuidado; guarda sempre o mor bocado; deixa as mulheres e o vinho; não te metas com o
vizinho, porque em uma e outra dezena terás mais uma vintena.
KENT - Isso tudo e nada é a mesma coisa, bobo.
BOBO - Então é como discurso de advogado sem salário. Destes-me nada por ele. Tio, poderíeis fazer
algum uso de nada?
LEAR - Não, menino; nada pode ser feito de nada.
BOBO - (a Kent) - Por obséquio, dize-lhe a quanto monta a renda de suas terras; ele não acredita num
bobo.
LEAR - Um bobo amargo.
BOBO - Saberás dizer, meu rapaz, que diferença há entre um bobo amargo e um bobo doce?
LEAR - Não, menino; ensina-ma.
BOBO - Quem o conselho te deu de doar todas as tuas terras põe aqui ao lado meu, e o dele toma; não
erras: verás logo, lado a lado, o doce bobo e o amargoso; um aqui, sarapintado, o outro aí mesmo,
achacoso.
LEAR - Com isso queres dizer que eu sou bobo, menino?
BOBO - Já abriste mão de todos os outros títulos; esse é o único que te veio do berço.
KENT - Milorde, o que ele disse não é inteiramente destituído de senso. BOBO - Não, por minha fé; os
senhores e os grandes não permitirão que eu fique sozinho; se eu obtiver o monopólio, eles hão de querer
sua parte, e as senhoras também; não deixarão que toda a loucura fique comigo; virão arrebatar-me um
pedaço. Tio, dá-me um ovo, que te darei duas coroas.
LEAR - Que espécie de coroas?
BOBO - Ora, depois de haver cortado o ovo em duas partes e comido o seu conteúdo, as duas coroas do
ovo. Quando partiste pelo meio a tua coroa e deste as duas metades, carregas-te o burro às costas através
do atoleiro. Não tinhas espírito em tua coroa calva, quando fizeste presente da de ouro. Se eu falar sobre
isso como costumo, que seja chicoteado o primeiro que me compreender. Nunca os lobos passaram tanto
apuro. O sábio é tolo e fraco; a mente não podendo usar no escuro, vive como macaco.
LEAR - Desde quando ficaste tão amigo de canções, maroto?
BOBO - Ora, tio, desde que de tuas filhas fizeste tuas mães. Porque desde que lhes entregaste a vergasta
e desceste os calções, elas choram de alegria; de tristeza eu rio e canto, por ver um rei na folia mas na
cabeça, nem tanto. Tio, por obséquio, arranja um mestre-escola que ensine teu bobo a mentir. Desejara
muito aprender a mentir.
LEAR - Se mentires, maroto, serás açoitado.
BOBO - Não posso compreender que tu e tuas filhas sejais aparentados; elas me açoitam por eu dizer a
verdade, enquanto tu pretendes fazer o mesmo no caso de eu mentir, sem contarmos que algumas vezes
tenho sido açoitado por estar quieto. Quisera ser tudo neste mundo, menos bobo, mas não desejo ser o
que és, tio; dos dois lados raspaste o espírito, sem deixar nada no meio. Aí vem vindo uma das
raspadoras.
(Entra Goneril.)
LEAR - Então, filha? Por que esse diadema carrancudo? Ultimamente só parece que andais sempre de
sobrecenho fechado.
BOBO - Tu eras um belo tipo, quando não precisavas preocupar-te com as suas carrancas; agora és um
zero sem número. Presentemente, sou mais do que tu; sou um bobo, ao passo que tu és nada.
(A Goneril.)
Pois não, pois não! Vou segurar a língua, que é o que vossa fisionomia me está ordenando, muito embora
nada houvésseis dito. Mum, mum! Quem não guardou mel nenhum, tem de viver em jejum. Ali está uma
ervilha sem grão.
(Apontando para Lear.)
GONERIL - Não somente, senhor, o vosso bobo, que se permite muitas liberdades, como outros
cavaleiros insolentes de vosso séqüito, a cada hora brigam e suscitam questões, fazendo arruaças de todo
intoleráveis. Pois, senhor, pensei que, pondo-vos a par do fato, acharia remédio; mas começo, realmente,
a me temer, pelo que há pouco dissestes e fizestes, que esse abuso apoio encontra em vós, tomando
alento em vossa tolerância. Se for isso, não deixará de ser punida a falta nem de velar os meios de defesa
que, ao bem-estar de todos só visando, poderá ofender-vos por maneira que, em outras conexões, fora
aprobriosa, mas que a necessidade o nome empresta de conduta discreta.
BOBO - Porque, como sabeis, tio, tanto ao pardal o cuco deu bom milho, que a cabeça esmagou-lhe o
próprio filho. E assim a luz se apagou e nós ficamos no escuro.
LEAR - Sois nossa filha?
GONERIL - Desejara que usásseis o bom senso de que vos sei provido e que pusésseis de lado essas
disposições recentes que a tal ponto vos tem mudado a essência.
BOBO - Não saberá um asno, quando a carroça puxa o cavalo? "Toca, Jug! Eu te amo!"
LEAR - Conhece-me ainda alguém? Não, não é Lear. Andava Lear assim? Falava assim? Onde terá os
olhos? Há de fraca ter a razão e rombos os sentidos. Estarei acordado? Não. Quem pode vir-me contar
quem em verdade eu seja?
BOBO - A sombra de Lear.
LEAR - Desejaria aprender isso, porque pelos atributos da soberania, do conhecimento e da razão, eu
seria levado a crer que tive filhas.
BOBO - Que fariam de vós um pai obediente.
LEAR - Como vos chamais, bela senhora?
GONERIL - Esse espanto, senhor, é mui do gosto de vossa nova telha. Desejara que compreendêsseis
bem minha intenção. Por velho e venerável, deveríeis ser sensato também. Uma centena de cavaleiros e
escudeiros tendes para servir-vos, gente de tal modo desordeira, atrevida e depravada, que nossa corte,
corrompida pelas práticas deles todos, se assemelha a taberna em motim. O epicurismo e a torpeza
fizeram-na tornar-se mais taberna e bordel do que palácio cheio de tradições. O próprio pejo está a exigir
uma medida urgente. Deixai-vos, pois, rogar por quem, sem isso, vos tomara o que pede, isto é, de um
pouco reduzir vosso séqüito, devendo ser o restante, apenas, destinado a vos cuidar da idade e, sobretudo,
ter consciência de vós e dessa gente.
LEAR - Demônio e inferno! Tragam meu cavalo! Reuni logo meu séqüito! Bastarda degenerada, não
desejo ser-te pesado em nada. Resta-me outra filha.
GONERIL - Bateis na minha gente, e essa canalha desordenada trata os superiores como se fossem
criados.
(Entra Albânia.)
LEAR - Ai de quem se arrepende tardiamente! (A Albânia.) Ó senhor, vós aqui? São ordens vossas?
Falai, senhor! - Olá! Mandai trazer-me o meu cavalo! - Ingratidão, demônio de coração de mármore,
mais feio, quando numa criança se revela, do que o monstro marinho.
ALBÂNIA - Por obséquio, senhor, ficai mais calmo.
LEAR (a Goneril) - Detestável harpia, estás mentindo! Minha gente toda é escolhida e de costumes
limpos; conhecedores são de seus deveres e com muito cuidado mantêm sempre a honra do próprio
nome. Ó faltazinha, como em Cordélia apareceste feia! Tu, como banco de tormento, as traves de minha
natureza deslocaste de seu estado fixo e todo o afeto me chupaste do peito, transformando-o no fel mais
amargoso. Ó Lear! Ó Lear!
(Batendo na testa.)
Bate agora a esta porta, que a loucura deixou entrar e o teu tão caro juízo permitiu que saísse. Vamos,
vamos, minha gente!
ALBÂNIA - Senhor, sou inocente, como não sei também qual o motivo que vos deixou colérico.
LEAR - É possível, meu senhor. Natureza, agora me ouve! Deusa querida, atende-me! Suspende teus
desígnios, se acaso pretendias deixar fecunda agora esta criatura; ao ventre lança-lhe a esterilidade,
ressequidos lhe deixa os órgãos todos da procriação, não permitindo nunca que lhe nasça do corpo
desprezível uma criança que a possa honrar um dia. Se tiver de procriar, que tenha um filho feito só de
malícia, porque viva para um desnaturado e pervertido tormento lhe ser sempre. Que lhe faça muitas
rugas nascer na fronte jovem e, com ardentes lágrimas, profundos sulcos lhe abra nas faces; que
compense com chacotas e riso os sofrimentos e cuidados maternos, para que ela possa ver como dói mais
fundamente que o dente da serpente a filha ingrata. Fora daqui! Partamos!
ALBÂNIA - Deuses do alto, que adoramos, que é que houve?
GONERIL - Não vos seja preocupação saberdes o motivo. Que seus caprichos tenham livre o campo que
sua caduquice lhes confere.
(Volta Lear.)
LEAR - Como! Cinqüenta dos meus homens, postos de lado, de uma vez, em quinze dias?
ALBÂNIA - Que aconteceu, senhor?
LEAR - Já vou contar-te.
(A Goneril.)
Vida e morte! Envergonha-me que tenhas poder para abalar dessa maneira minha virilidade e que estas
lágrimas escaldantes, que à força se me escapam, te façam parecer condigna delas. Caiam em ti
nevoeiros e rajadas. Que as feridas profundas da paterna maldição os sentidos te corroam. Velhos olhos e
tontos, se chorardes novamente essa causa, hei de arrancar-vos para ao barro atirar-vos e, com as gotas
que estiverdes perdendo, amolecê-lo. Chegamos a este ponto? Pois que seja! Outra filha me resta,
estando eu certo de que ela é para mim bondosa e afável. Quando vier a saber o que fizeste, há de com as
próprias unhas arranhar-te essas feições de lobo. Então, a forma me verás reassumir que ora presumes
perdida para sempre. É o que te digo.
(Saem Lear, Kent e o séqüito.)
GONERIL - Ouvistes tudo?
ALBÂNIA - Goneril, não posso ser tão parcial, embora vos estime...
GONERIL - Por obséquio, é o bastante. Olá! Osvaldo! (Ao bobo.) Vós, senhor, mais velhaco do que
bobo, segui vosso patrão.
BOBO - Tio Lear! Tio Lear! Espera aí e leva o bobo contigo! Se uma raposa eu pegasse com sua filha
repace e o couro dela tirasse... De gorro assim sobre a face, seria o bobo da classe.
(Sai.)
GONERIL - Esse homem tem razão: cem cavaleiros! Fora boa política, em verdade, deixá-lo com cem
homens que, por nada, qualquer queixa, capricho ou fantasia, armas à caduquice lhe dariam, ficando
dependendo nossas vidas só de sua mercê. Olá, Osvaldo!
ALBÂNIA - Vosso medo é excessivo.
GONERIL - É mais seguro do que confiar demais. E preferível o obstáculo afastar de que me temo, a
temer ser pegada de surpresa. Conheço-o muito bem; já por escrito comuniquei à mana o que ele disse.
Se ela o aceitar com todos os seus homens depois de eu ter mostrado...
(Entra Osvaldo.)
Então, Osvaldo, já escrevestes a carta para a mana?
OSVALDO - Sim, escrevi, senhora.
GONERIL - Levai convosco alguns dos nossos homens e parti a cavalo. Dai-lhe plenas informações de
tudo o que receio, acrescentando o que quiserdes, para reforçar o recado. Parti logo, e, assim, voltai
depressa.
(Sai Osvaldo.)
Não, milorde, essa brandura que mostrais, leitosa, conquanto eu não censure, permiti-me que vos diga,
porém: mais censurado sois por falta de senso do que mesmo louvado por bondoso em demasia.
ALBÂNIA - Não sei até onde vosso olhar alcança, mas temo que estragueis a boa usança.
GONERIL - Então...
ALBÂNIA - Bem, bem; os fatos o dirão. (Saem.)
KENT - Se eu puder conseguir uma outra fala que torne a minha estranha, é bem possível que minha boa
empresa a alcançar venha o êxito pleno pelo qual as próprias feições desfigurei. Banido Kent, se ora
servir puderes lá mesmo de onde há pouco foste expulso, pode se dar que o mestre a que tanto amas te
encontre serviçal.
(Toque de trompa. Entram Lear, cavaleiros e séqüito.)
LEAR - Não me façam esperar nem um segundo pelo jantar. Vai logo aprontá-lo.
(Sai o criado.) Então, quem és tu?
KENT - Um homem, senhor.
LEAR - Qual é a tua profissão? Que pretendes de nós?
KENT - Minha profissão é não ser menos do que pareço; servir fielmente a quem confiar em mim; amar
quem for honesto; conversar com quem for sábio e falar pouco; temer a justiça; brigar quando não
houver outro jeito, e não comer peixe.
LEAR - Quem és tu?
KENT - Um tipo de coração honesto e tão pobre quanto o rei.
LEAR - Se como súdito és tão pobre quanto ele como rei, és, realmente, paupérrimo. Que desejas?
KENT - Serviço.
LEAR - A quem queres servir?
KENT - A vós.
LEAR - Conheces-me, companheiro?
KENT - Não, senhor; mas revelais algo em vossa postura, que me leva a vos chamar de mestre.
LEAR - E que coisa é essa?
KENT - Autoridade.
LEAR - Que serviços podes prestar?
KENT - Sei guardar um segredo honesto, montar a cavalo, correr, estropiar uma história interessante,
dizer grosseiramente uma mensagem fácil. Tudo o que um homem ordinário pode fazer, eu também
posso, sendo o melhor em mim a diligência.
LEAR - Que idade tens?
KENT - Não sou tão jovem, senhor, para amar uma mulher por causa de seu canto, nem tão velho para
me apaixonar por ela sem motivo: tenho quarenta e oito anos na carcunda.
LEAR - Segue-me; irás servir-me. Se depois do jantar não me pareceres pior, não nos separaremos muito
logo. O jantar, olá! Onde está o meu rapaz? O meu bobo? - Vós, aí: ide chamar o meu bobo.
(Sai um criado.)
(Entra Osvaldo.)
Vós aí, maroto: onde está minha filha?
OSVALDO - Se o permitis...
(Sai.)
LEAR - Que foi que disse aquele tipo? Chamai-me aqui esse rústico.
(Sai um cavaleiro.)
Onde está o meu bobo, eh! Só parece que o mundo está dormindo. Então, onde está esse mastim?
(Volta o cavaleiro.)
CAVALEIRO - Ele disse, milorde, que vossa filha não está passando bem.
LEAR - Por que motivo aquele escravo não voltou, quando o chamei?
CAVALEIRO - Senhor, ele me respondeu redondamente que não queria voltar.
LEAR - Não queria?
CAVALEIRO - Senhor, não sei o que acontece, mas, a meu ver, Vossa Alteza não é tratado com a
afeição cerimoniosa a que estáveis acostumado. Observa-se sensível quebra de carinho, não só com
relação à conduta da criadagem, como com a do próprio duque e a de vossa filha.
LEAR - Ah! És dessa opinião?
CAVALEIRO - Suplico-vos, milorde, que me perdoeis, se eu estiver enganado, mas o meu zelo não pode
ficar calado, quando penso que Vossa Alteza está sendo prejudicado.
LEAR - Fazes-me lembrado de minha própria percepção; ultimamente tenho notado um certo quê de
negligência, que eu atribuía mais à minha própria natureza desconfiada do que a qualquer intenção real e
ao propósito de descortesia. Vou examinar isso de mais perto. Mas onde está o meu bobo? Há dois dias
que não o vejo.
CAVALEIRO - Desde que a minha jovem senhora partiu para a França, senhor, o bobo definhou
bastante.
LEAR - Sobre isso, basta; já o havia notado muito bem. - Vós aí! Ide dizer a minha filha que desejo
falar-lhe.
(Sai o criado.)
E vós, ide chamar o meu bobo!
(Sai outro criado.)
(Entra Osvaldo.)
Oh! Vós, Senhor! Vinde cá, senhor! Quem sou eu, senhor?
OSVALDO - O pai da senhora.
LEAR - "O pai da senhora"? O criado do senhor, cão! Bastardo, escravo, maroto!
OSVALDO - Com vossa permissão, milorde, mas não sou nada disso.
LEAR - Atreves-te a fitar-me desse modo, biltre?
(Bate-lhe.)
OSVALDO - Não consinto que me batam, milorde.
KENT - Nem que te dêem um pontapé, meu jogador de futebol?
(Dá-lhe um pontapé.)
LEAR - Agradeço-te, companheiro; tu me serves, e eu passarei a estimar-te.
KENT - Vamos, senhor, levantai-vos! Fora daqui! Vou ensinar-vos a distinguir as pessoas. Fora! Fora!
Se quiserdes medir outra vez vosso comprimento de labrego, é só continuardes aqui. Caso contrário,
fora! Vamos! Não tendes senso? Assim!
(Empurra Osvaldo para fora.)
LEAR - Muito obrigado, amigo servidor; aqui está pelo teu serviço.
(Dá dinheiro a Kent.)
(Entra o bobo.)
BOBO - Eu também desejo recompensá-lo; aqui está o meu barrete.
(Oferece o gorro a Kent.)
LEAR - Então, meu belo peralta, que estás fazendo?
BOBO - Amigo, farias bem em aceitar o meu gorro.
KENT - Por quê, bobo?
BOBO - Por teres tomado o partido de quem já caiu no desagrado. É assim; se não puderes sorrir do lado
do vento, em pouco tempo apanharás resfriado. Toma; fica como meu gorro. Ora vê, este sujeito baniu
duas de suas filhas e fez um grande favor à terceira, contra a própria vontade dela. Se vais segui-lo,
precisarás usar o meu gorro. Então, meu tio? Quisera ter dois gorros e duas filhas.
LEAR - Por quê, menino?
BOBO - Se eu chegasse a lhes dar todos os meus haveres, me reservaria os gorros. Este aqui me
pertence; pede outro a tuas filhas.
LEAR - Toma cuidado com a chibata, maroto!
BOBO - A verdade é um cachorro que se mete na casinha e precisa ser chibateada para sair, enquanto a
senhora galga pode ficar a feder junto do fogo.
LEAR - Pestilência amarga para mim!
BOBO (a Kent) - Amigo, vou ensinar-te um discurso.
LEAR - Ouçamo-lo.
BOBO - Toma nota, tio: Não esbanjes teu estado; embora o saibas, calado; não andes, sejas levado; no
aprender, muito cuidado; guarda sempre o mor bocado; deixa as mulheres e o vinho; não te metas com o
vizinho, porque em uma e outra dezena terás mais uma vintena.
KENT - Isso tudo e nada é a mesma coisa, bobo.
BOBO - Então é como discurso de advogado sem salário. Destes-me nada por ele. Tio, poderíeis fazer
algum uso de nada?
LEAR - Não, menino; nada pode ser feito de nada.
BOBO - (a Kent) - Por obséquio, dize-lhe a quanto monta a renda de suas terras; ele não acredita num
bobo.
LEAR - Um bobo amargo.
BOBO - Saberás dizer, meu rapaz, que diferença há entre um bobo amargo e um bobo doce?
LEAR - Não, menino; ensina-ma.
BOBO - Quem o conselho te deu de doar todas as tuas terras põe aqui ao lado meu, e o dele toma; não
erras: verás logo, lado a lado, o doce bobo e o amargoso; um aqui, sarapintado, o outro aí mesmo,
achacoso.
LEAR - Com isso queres dizer que eu sou bobo, menino?
BOBO - Já abriste mão de todos os outros títulos; esse é o único que te veio do berço.
KENT - Milorde, o que ele disse não é inteiramente destituído de senso. BOBO - Não, por minha fé; os
senhores e os grandes não permitirão que eu fique sozinho; se eu obtiver o monopólio, eles hão de querer
sua parte, e as senhoras também; não deixarão que toda a loucura fique comigo; virão arrebatar-me um
pedaço. Tio, dá-me um ovo, que te darei duas coroas.
LEAR - Que espécie de coroas?
BOBO - Ora, depois de haver cortado o ovo em duas partes e comido o seu conteúdo, as duas coroas do
ovo. Quando partiste pelo meio a tua coroa e deste as duas metades, carregas-te o burro às costas através
do atoleiro. Não tinhas espírito em tua coroa calva, quando fizeste presente da de ouro. Se eu falar sobre
isso como costumo, que seja chicoteado o primeiro que me compreender. Nunca os lobos passaram tanto
apuro. O sábio é tolo e fraco; a mente não podendo usar no escuro, vive como macaco.
LEAR - Desde quando ficaste tão amigo de canções, maroto?
BOBO - Ora, tio, desde que de tuas filhas fizeste tuas mães. Porque desde que lhes entregaste a vergasta
e desceste os calções, elas choram de alegria; de tristeza eu rio e canto, por ver um rei na folia mas na
cabeça, nem tanto. Tio, por obséquio, arranja um mestre-escola que ensine teu bobo a mentir. Desejara
muito aprender a mentir.
LEAR - Se mentires, maroto, serás açoitado.
BOBO - Não posso compreender que tu e tuas filhas sejais aparentados; elas me açoitam por eu dizer a
verdade, enquanto tu pretendes fazer o mesmo no caso de eu mentir, sem contarmos que algumas vezes
tenho sido açoitado por estar quieto. Quisera ser tudo neste mundo, menos bobo, mas não desejo ser o
que és, tio; dos dois lados raspaste o espírito, sem deixar nada no meio. Aí vem vindo uma das
raspadoras.
(Entra Goneril.)
LEAR - Então, filha? Por que esse diadema carrancudo? Ultimamente só parece que andais sempre de
sobrecenho fechado.
BOBO - Tu eras um belo tipo, quando não precisavas preocupar-te com as suas carrancas; agora és um
zero sem número. Presentemente, sou mais do que tu; sou um bobo, ao passo que tu és nada.
(A Goneril.)
Pois não, pois não! Vou segurar a língua, que é o que vossa fisionomia me está ordenando, muito embora
nada houvésseis dito. Mum, mum! Quem não guardou mel nenhum, tem de viver em jejum. Ali está uma
ervilha sem grão.
(Apontando para Lear.)
GONERIL - Não somente, senhor, o vosso bobo, que se permite muitas liberdades, como outros
cavaleiros insolentes de vosso séqüito, a cada hora brigam e suscitam questões, fazendo arruaças de todo
intoleráveis. Pois, senhor, pensei que, pondo-vos a par do fato, acharia remédio; mas começo, realmente,
a me temer, pelo que há pouco dissestes e fizestes, que esse abuso apoio encontra em vós, tomando
alento em vossa tolerância. Se for isso, não deixará de ser punida a falta nem de velar os meios de defesa
que, ao bem-estar de todos só visando, poderá ofender-vos por maneira que, em outras conexões, fora
aprobriosa, mas que a necessidade o nome empresta de conduta discreta.
BOBO - Porque, como sabeis, tio, tanto ao pardal o cuco deu bom milho, que a cabeça esmagou-lhe o
próprio filho. E assim a luz se apagou e nós ficamos no escuro.
LEAR - Sois nossa filha?
GONERIL - Desejara que usásseis o bom senso de que vos sei provido e que pusésseis de lado essas
disposições recentes que a tal ponto vos tem mudado a essência.
BOBO - Não saberá um asno, quando a carroça puxa o cavalo? "Toca, Jug! Eu te amo!"
LEAR - Conhece-me ainda alguém? Não, não é Lear. Andava Lear assim? Falava assim? Onde terá os
olhos? Há de fraca ter a razão e rombos os sentidos. Estarei acordado? Não. Quem pode vir-me contar
quem em verdade eu seja?
BOBO - A sombra de Lear.
LEAR - Desejaria aprender isso, porque pelos atributos da soberania, do conhecimento e da razão, eu
seria levado a crer que tive filhas.
BOBO - Que fariam de vós um pai obediente.
LEAR - Como vos chamais, bela senhora?
GONERIL - Esse espanto, senhor, é mui do gosto de vossa nova telha. Desejara que compreendêsseis
bem minha intenção. Por velho e venerável, deveríeis ser sensato também. Uma centena de cavaleiros e
escudeiros tendes para servir-vos, gente de tal modo desordeira, atrevida e depravada, que nossa corte,
corrompida pelas práticas deles todos, se assemelha a taberna em motim. O epicurismo e a torpeza
fizeram-na tornar-se mais taberna e bordel do que palácio cheio de tradições. O próprio pejo está a exigir
uma medida urgente. Deixai-vos, pois, rogar por quem, sem isso, vos tomara o que pede, isto é, de um
pouco reduzir vosso séqüito, devendo ser o restante, apenas, destinado a vos cuidar da idade e, sobretudo,
ter consciência de vós e dessa gente.
LEAR - Demônio e inferno! Tragam meu cavalo! Reuni logo meu séqüito! Bastarda degenerada, não
desejo ser-te pesado em nada. Resta-me outra filha.
GONERIL - Bateis na minha gente, e essa canalha desordenada trata os superiores como se fossem
criados.
(Entra Albânia.)
LEAR - Ai de quem se arrepende tardiamente! (A Albânia.) Ó senhor, vós aqui? São ordens vossas?
Falai, senhor! - Olá! Mandai trazer-me o meu cavalo! - Ingratidão, demônio de coração de mármore,
mais feio, quando numa criança se revela, do que o monstro marinho.
ALBÂNIA - Por obséquio, senhor, ficai mais calmo.
LEAR (a Goneril) - Detestável harpia, estás mentindo! Minha gente toda é escolhida e de costumes
limpos; conhecedores são de seus deveres e com muito cuidado mantêm sempre a honra do próprio
nome. Ó faltazinha, como em Cordélia apareceste feia! Tu, como banco de tormento, as traves de minha
natureza deslocaste de seu estado fixo e todo o afeto me chupaste do peito, transformando-o no fel mais
amargoso. Ó Lear! Ó Lear!
(Batendo na testa.)
Bate agora a esta porta, que a loucura deixou entrar e o teu tão caro juízo permitiu que saísse. Vamos,
vamos, minha gente!
ALBÂNIA - Senhor, sou inocente, como não sei também qual o motivo que vos deixou colérico.
LEAR - É possível, meu senhor. Natureza, agora me ouve! Deusa querida, atende-me! Suspende teus
desígnios, se acaso pretendias deixar fecunda agora esta criatura; ao ventre lança-lhe a esterilidade,
ressequidos lhe deixa os órgãos todos da procriação, não permitindo nunca que lhe nasça do corpo
desprezível uma criança que a possa honrar um dia. Se tiver de procriar, que tenha um filho feito só de
malícia, porque viva para um desnaturado e pervertido tormento lhe ser sempre. Que lhe faça muitas
rugas nascer na fronte jovem e, com ardentes lágrimas, profundos sulcos lhe abra nas faces; que
compense com chacotas e riso os sofrimentos e cuidados maternos, para que ela possa ver como dói mais
fundamente que o dente da serpente a filha ingrata. Fora daqui! Partamos!
ALBÂNIA - Deuses do alto, que adoramos, que é que houve?
GONERIL - Não vos seja preocupação saberdes o motivo. Que seus caprichos tenham livre o campo que
sua caduquice lhes confere.
(Volta Lear.)
LEAR - Como! Cinqüenta dos meus homens, postos de lado, de uma vez, em quinze dias?
ALBÂNIA - Que aconteceu, senhor?
LEAR - Já vou contar-te.
(A Goneril.)
Vida e morte! Envergonha-me que tenhas poder para abalar dessa maneira minha virilidade e que estas
lágrimas escaldantes, que à força se me escapam, te façam parecer condigna delas. Caiam em ti
nevoeiros e rajadas. Que as feridas profundas da paterna maldição os sentidos te corroam. Velhos olhos e
tontos, se chorardes novamente essa causa, hei de arrancar-vos para ao barro atirar-vos e, com as gotas
que estiverdes perdendo, amolecê-lo. Chegamos a este ponto? Pois que seja! Outra filha me resta,
estando eu certo de que ela é para mim bondosa e afável. Quando vier a saber o que fizeste, há de com as
próprias unhas arranhar-te essas feições de lobo. Então, a forma me verás reassumir que ora presumes
perdida para sempre. É o que te digo.
(Saem Lear, Kent e o séqüito.)
GONERIL - Ouvistes tudo?
ALBÂNIA - Goneril, não posso ser tão parcial, embora vos estime...
GONERIL - Por obséquio, é o bastante. Olá! Osvaldo! (Ao bobo.) Vós, senhor, mais velhaco do que
bobo, segui vosso patrão.
BOBO - Tio Lear! Tio Lear! Espera aí e leva o bobo contigo! Se uma raposa eu pegasse com sua filha
repace e o couro dela tirasse... De gorro assim sobre a face, seria o bobo da classe.
(Sai.)
GONERIL - Esse homem tem razão: cem cavaleiros! Fora boa política, em verdade, deixá-lo com cem
homens que, por nada, qualquer queixa, capricho ou fantasia, armas à caduquice lhe dariam, ficando
dependendo nossas vidas só de sua mercê. Olá, Osvaldo!
ALBÂNIA - Vosso medo é excessivo.
GONERIL - É mais seguro do que confiar demais. E preferível o obstáculo afastar de que me temo, a
temer ser pegada de surpresa. Conheço-o muito bem; já por escrito comuniquei à mana o que ele disse.
Se ela o aceitar com todos os seus homens depois de eu ter mostrado...
(Entra Osvaldo.)
Então, Osvaldo, já escrevestes a carta para a mana?
OSVALDO - Sim, escrevi, senhora.
GONERIL - Levai convosco alguns dos nossos homens e parti a cavalo. Dai-lhe plenas informações de
tudo o que receio, acrescentando o que quiserdes, para reforçar o recado. Parti logo, e, assim, voltai
depressa.
(Sai Osvaldo.)
Não, milorde, essa brandura que mostrais, leitosa, conquanto eu não censure, permiti-me que vos diga,
porém: mais censurado sois por falta de senso do que mesmo louvado por bondoso em demasia.
ALBÂNIA - Não sei até onde vosso olhar alcança, mas temo que estragueis a boa usança.
GONERIL - Então...
ALBÂNIA - Bem, bem; os fatos o dirão. (Saem.)
REI LEAR, ATO I, Cena III
Um quarto no palácio do duque de Albânia. Entram Goneril e seu intendente Osvaldo.
GONERIL - Meu pai bateu no gentil-homem, por ter este ralhado com o bobo dele?
OSVALDO - Sim, minha senhora.
GONERIL - Dia e noite me ofende. Não se passa nenhuma hora sem que ele não fuzile com qualquer
grosseria, que a nós todos traz somente discórdia. Não o suporto; turbulentos estão seus cavaleiros e a
censurar-nos ele próprio vive por dá cá aquela palha. Não pretendo falar com ele, quando vier da caça.
Dizei que estou doente; e, se cumprirdes com certa negligência algum serviço, estará bem; responderei
por tudo.
OSVALDO - Ei-lo, senhora; ouço o barulho, dele.
(Ouve-se toque de trompa.)
GONERIL - Mostrai a negligência que quiserdes, vós e os outros de casa, pois desejo que me venha falar
a esse respeito. Se não gostar, então que se transfira para a casa da mana, cujo modo de pensar, estou
certa, está de acordo com o meu, em não querer ser governada. Velho caduco, a pretender o mando sobre
o que já doou! Por minha vida, os velhos tontos são de novo crianças; com ralhos, só, precisam ser
tratados. Lembrai-vos do que eu disse.
OSVALDO - Sim, senhora.
GONERIL - E lançai frio olhar para seus homens. Pouco importa o que vier; avisai todos. Quero achar
nisso tudo algum pretexto para poder falar. Sem mais delongas, escreverei à mana, para que ela faça
como eu. Prepara logo a ceia.
(Saem.)
GONERIL - Meu pai bateu no gentil-homem, por ter este ralhado com o bobo dele?
OSVALDO - Sim, minha senhora.
GONERIL - Dia e noite me ofende. Não se passa nenhuma hora sem que ele não fuzile com qualquer
grosseria, que a nós todos traz somente discórdia. Não o suporto; turbulentos estão seus cavaleiros e a
censurar-nos ele próprio vive por dá cá aquela palha. Não pretendo falar com ele, quando vier da caça.
Dizei que estou doente; e, se cumprirdes com certa negligência algum serviço, estará bem; responderei
por tudo.
OSVALDO - Ei-lo, senhora; ouço o barulho, dele.
(Ouve-se toque de trompa.)
GONERIL - Mostrai a negligência que quiserdes, vós e os outros de casa, pois desejo que me venha falar
a esse respeito. Se não gostar, então que se transfira para a casa da mana, cujo modo de pensar, estou
certa, está de acordo com o meu, em não querer ser governada. Velho caduco, a pretender o mando sobre
o que já doou! Por minha vida, os velhos tontos são de novo crianças; com ralhos, só, precisam ser
tratados. Lembrai-vos do que eu disse.
OSVALDO - Sim, senhora.
GONERIL - E lançai frio olhar para seus homens. Pouco importa o que vier; avisai todos. Quero achar
nisso tudo algum pretexto para poder falar. Sem mais delongas, escreverei à mana, para que ela faça
como eu. Prepara logo a ceia.
(Saem.)
REI LEAR, ATO I, Cena V
Pátio diante do mesmo. Entram Lear, Kent e o bobo.
LEAR - Parti na frente, para Gloster, com estas cartas. Não conteis a minha filha do que sabeis senão o
que ela vos perguntar com relação ao assunto da carta. Se não fordes muito diligente no recado, chegarei
lá primeiro.
KENT - Não dormirei, senhor, enquanto não tiver entregue vossa carta.
(Sai.)
BOBO - Se o homem tivesse o cérebro no calcanhar, não correria o risco de apanhar frieira?
LEAR - Correria, pequeno. BOBO - Então peço-te que fiques alegre, porque o teu espírito não irá andar
de chinelas.
LEAR - Ah, ah, ah!
BOBO - Vais ver como tua outra filha te trata bem, porque embora ela se pareça tanto com esta aqui
como uma maçã silvestre com uma maçã comum, posso dizer o que posso dizer.
LEAR - Que é que podes dizer, pequeno? BOBO - Que ela te vai ser de gosto tão idêntico ao gosto desta
como o de duas maçãs silvestres. Saberás dar-me a razão de termos o nariz no meio do rosto?
LEAR - Não.
BOBO - Ora, é para ficarmos com um olho de cada lado do nariz, a fim de espiarmos o que não
pudermos cheirar.
LEAR - Fui injusto com ela...
BOBO - Sabes como é que a ostra fabrica a valva?
LEAR - Não.
BOBO - Nem eu; mas poderei dizer-te porque o caracol tem casa.
LEAR - Por que é?
BOBO - Ora, é para guardar a cabeça e não a dar às filha ficando, assim, sem ter onde guardar os cornos.
LEAR - Quero esquecer minha natureza. Um pai tão carinhoso! Estão prontos os cavalos?
BOBO - Teus asnos foram procurá-los. A razão por que sete estrelas não são mais de sete é muito
interessante.
LEAR - Não é por não serem oito?
BOBO - Justamente. Darias um excelente bobo.
LEAR - Retomá-lo pela força! Ingratidão monstruosa!
BOBO - Se tu fosses o meu bobo, tio, eu te daria uma sova por teres ficado velho antes do tempo.
LEAR - Como assim?
BOBO - Não devias ter envelhecido antes de ficares sábio.
LEAR - Não quero ficar louco, céu bondoso! Mantém-me o juízo; tudo menos louco!
(Entra um gentil-homem.)
Então, estão prontos os cavalos?
GENTIL-HOMEM - Estão prontos, senhor.
LEAR - Vamos, pequeno.
BOBO - A donzela que rir de mim neste momento, donzela não será, se é certo o que ora avento.
(Saem.)
LEAR - Parti na frente, para Gloster, com estas cartas. Não conteis a minha filha do que sabeis senão o
que ela vos perguntar com relação ao assunto da carta. Se não fordes muito diligente no recado, chegarei
lá primeiro.
KENT - Não dormirei, senhor, enquanto não tiver entregue vossa carta.
(Sai.)
BOBO - Se o homem tivesse o cérebro no calcanhar, não correria o risco de apanhar frieira?
LEAR - Correria, pequeno. BOBO - Então peço-te que fiques alegre, porque o teu espírito não irá andar
de chinelas.
LEAR - Ah, ah, ah!
BOBO - Vais ver como tua outra filha te trata bem, porque embora ela se pareça tanto com esta aqui
como uma maçã silvestre com uma maçã comum, posso dizer o que posso dizer.
LEAR - Que é que podes dizer, pequeno? BOBO - Que ela te vai ser de gosto tão idêntico ao gosto desta
como o de duas maçãs silvestres. Saberás dar-me a razão de termos o nariz no meio do rosto?
LEAR - Não.
BOBO - Ora, é para ficarmos com um olho de cada lado do nariz, a fim de espiarmos o que não
pudermos cheirar.
LEAR - Fui injusto com ela...
BOBO - Sabes como é que a ostra fabrica a valva?
LEAR - Não.
BOBO - Nem eu; mas poderei dizer-te porque o caracol tem casa.
LEAR - Por que é?
BOBO - Ora, é para guardar a cabeça e não a dar às filha ficando, assim, sem ter onde guardar os cornos.
LEAR - Quero esquecer minha natureza. Um pai tão carinhoso! Estão prontos os cavalos?
BOBO - Teus asnos foram procurá-los. A razão por que sete estrelas não são mais de sete é muito
interessante.
LEAR - Não é por não serem oito?
BOBO - Justamente. Darias um excelente bobo.
LEAR - Retomá-lo pela força! Ingratidão monstruosa!
BOBO - Se tu fosses o meu bobo, tio, eu te daria uma sova por teres ficado velho antes do tempo.
LEAR - Como assim?
BOBO - Não devias ter envelhecido antes de ficares sábio.
LEAR - Não quero ficar louco, céu bondoso! Mantém-me o juízo; tudo menos louco!
(Entra um gentil-homem.)
Então, estão prontos os cavalos?
GENTIL-HOMEM - Estão prontos, senhor.
LEAR - Vamos, pequeno.
BOBO - A donzela que rir de mim neste momento, donzela não será, se é certo o que ora avento.
(Saem.)
REI LEAR, ATO II, Cena I
Pátio diante do castelo do duque de Gloster. Entram Edmundo e Curan, que se encontram.
EDMUNDO - Deus te guarde, Curan.
CURAN - E a vós também, senhor. Estive com vosso pai e lhe dei a notícia de que o duque de Cornualha
e Regane sua duquesa chegarão aqui esta noite.
EDMUNDO - E por que isso?
CURAN - Ignoro-o. Não ouvistes as notícias que correm por aí? Refiro-me apenas às que são
cochichadas e que não são mais do que assuntos soprados aos ouvidos.
EDMUNDO - Eu? Não. Por obséquio, quais são elas?
CURAN - Não ouvistes dizer que é muito provável uma guerra entre os duques de Cornualha e de
Albânia?
EDMUNDO - Nem uma palavra.
CURAN - Então ainda haveis de ouvir algo a esse respeite. Passai bem, senhor.
(Sai.)
EDMUNDO - O duque aqui esta noite? Melhor... Ótimo! Isso cai mesmo certo no meu plano. Meu pai
pôs gente em busca de meu mano e um negócio nauseoso ainda me resta para ser posto em prática. Mãos
à obra. Celeridade e sorte! Mano, mano! Uma palavra! Vinde! Estou chamando!
(Entra Edgar.)
Meu pai está de espreita. Oh! Fugi logo; deixai o esconderijo, que este ponto já se tornou sabido. E
conveniente aproveitar a noite. Por acaso não vos manifestastes em prejuízo do duque de Cornualha? Ele
vem vindo para aqui, apressado, em plena noite, e Regane com ele. Não dissestes a favor dele nada,
contra o duque de Albânia? Pensai bem.
EDGAR - Não disse nada, tenho certeza.
EDMUNDO - Ouço meu pai que chega. Perdoai-me, mas por fingimento, apenas, tirai também a espada
e defendei-vos, só por simulação. Parti, agora. - Rendei-vos! Vamos ante nosso pai! Luz, aqui! - Fugi,
mano! - Tochas! Tochas! - Assim. Adeus, adeus.
(Sai Edgar.)
Agora um pouco de sangue há de fazer nascer a idéia de um combate mais sério.
(Fere-se no braço.)
Já vi bêbedos fazer por brincadeira mais do que isso.
Pai! Pai! Prendei! Prendei! Ninguém me ajuda?
(Entram Gloster e criados, com tochas.)
GLOSTER - Edmundo, onde está o biltre?
EDMUNDO - Aqui se achava, no escuro, espada em punho, depravados conjuros resmungando e, como
a dama auspiciosa, a invocar a própria lua.
GLOSTER - Mas onde está?
EDMUNDO - Senhor, estou sangrando.
GLOSTER - Mas onde está esse vilão, Edmundo?
EDMUNDO - Fugiu por lá, senhor, quando viu que era de todo inútil...
GLOSTER - Lá? Ide atrás dele!
(Saem alguns criados.)
"De todo inútil..." Quê?
EDMUNDO - Sim, persuadir-me a vos tirar a vida. Respondi-lhe que os deuses vingadores desferiam
seus duros raios contra os parricidas; lembrei-lhe os laços múltiplos e fortes que aos pais os filhos
prendem. Em resumo, senhor: vendo o desgosto que eu opunha a suas intenções desnaturadas,
enraivecido, espada em punho, ataca-me o corpo exposto e o braço aqui me fere. Mas ao ver que os
espíritos eu tinha bem despertos e que pela justeza da causa a combatê-lo se atreviam, ou por eu ter muito
barulho feito, de repente, fugiu.
GLOSTER - Pode esconder-se onde quiser, que neste território encontrado há de ser. E, uma vez preso...
liquidado. Meu mestre, o nobre duque, meu mui digno patrono e amado príncipe chega esta noite. Assim,
proclamarei, com sua autoridade, que há de nossa graça alcançar quem quer que encontre o biltre e o
covarde assassino entregue ao cepo. E se alguém o esconder, morra igualmente!
EDMUNDO - E quando procurava dissuadi-lo de semelhante intento, achando-o cada vez mais
determinado em realizá-lo, e ameacei denunciá-lo, respondeu-me: "Bastardo sem haveres, então pensas
que, se acareados fôssemos, alguma confiança em teu valor, virtude ou mérito reforçar poderia o que
dissesses? Não; pois o que eu negasse - e hei de fazê-lo, embora apresentasses cartas minhas - atribuiria
tudo a teus conselhos, traça e manobras pérfidas. Preciso fora deixares tolo o mundo inteiro, para que
ninguém visse quanto o lucro de minha morte te seria estímulo para que a procurasses".
GLOSTER - Celerado teimoso e endurecido! Negaria sua própria carta? Não, não é meu filho.
(Fanfarras.)
Atenção! As trombetas são do duque. Não sei por que motivo nos visita. Os portos fecharei, para que o
biltre não nos possa escapar. O duque me há de permitir isso. Espalharei por toda parte o retrato dele;
assim, o reino conhecerá seus traços. Minhas terras, rapaz fiel e natural, recursos hei de arranjar para que
a herdá-las venhas.
(Entram Cornualha, Regane e séqüito.)
CORNUALHA - Então, meu nobre amigo? Desde o instante que aqui cheguei - e foi neste momento -
soube coisas mui raras.
REGANE - Confirmadas, toda vingança ainda não bastara para ir sobre o ofensor. Então, milorde?
GLOSTER - Ó senhora, senhora! Espedaçado ficou-me o coração. Espedaçado!
REGANE - Como! O afilhado de meu pai tentou contra vossa existência? Aquele mesmo em que meu
pai pôs nome? Vosso Edgar?
GLOSTER - O senhora! A vergonha ora me manda ficar calado.
REGANE - Acaso ele não era companheiro dos homens turbulentos que servem a meu pai?
GLOSTER - Não sei, senhora Oh! É terrível tudo!
EDMUNDO - Sim, senhora; pertencia a esse bando.
REGANE - Se assim é, não admira que mostrasse sentimentos tão baixos. Partiu deles a idéia de matar o
velho, para desbaratarem logo seus haveres. De minha irmã recebi hoje cedo boas informações sobre essa
gente, com tantas advertências, que, se acaso quiserem ir parar em minha casa, não me encontrarei lá.
CORNUALHA - Nem eu, Regane. Edmundo, soube agora que prestastes a vosso pai serviços de bom
filho.
EDMUNDO - Só fiz o meu dever.
GLOSTER - Fez frustrar a manobra do outro, tendo recebido a ferida que aqui vedes, quando tentou
prendê-lo.
CORNUALHA - Seguiu gente no encalço dele?
GLOSTER - Sim, meu bom senhor.
CORNUALHA - Sendo apanhado, havemos de deixá-lo em condições de nunca mais receio vir a causar
a alguém. Tomai vós mesmo todas as providências e disponde do meu poder como vos for do agrado. E
vós, Edmundo, tão recompensado neste momento, assim pela obediência como pela virtude, sereis nosso.
Pessoas de lealdade tão provada são muito necessárias. Começamos, assim, por nos apoderar de vós.
EDMUNDO - Embora mais não faça, hei de lealmente servir a meu senhor.
GLOSTER - Muito agradeço por ele a Vossa Graça.
CORNUALHA - Com certeza não sabeis a razão desta visita...
REGANE - . . .assim fora de tempo, abrindo nosso caminho pela noite de olhos negros. Motivos, nobre
Gloster, de algum peso tornam vossos conselhos necessários. Nosso pai nos escreve, e nossa mana, sobre
certos dissídios, parecendo-me mais acertado responder a todos longe de nossa casa. Os mensageiros
estão aqui à espera da resposta. Velho e bondoso amigo, deixai calmo, de todo, o coração, e em nosso
auxílio vinde com bons conselhos sobre assunto que exige muita urgência.
GLOSTER - Ao vosso inteiro dispor, senhor, me encontro. Vossas Graças são bem-vindas aqui.
(Saem.)
EDMUNDO - Deus te guarde, Curan.
CURAN - E a vós também, senhor. Estive com vosso pai e lhe dei a notícia de que o duque de Cornualha
e Regane sua duquesa chegarão aqui esta noite.
EDMUNDO - E por que isso?
CURAN - Ignoro-o. Não ouvistes as notícias que correm por aí? Refiro-me apenas às que são
cochichadas e que não são mais do que assuntos soprados aos ouvidos.
EDMUNDO - Eu? Não. Por obséquio, quais são elas?
CURAN - Não ouvistes dizer que é muito provável uma guerra entre os duques de Cornualha e de
Albânia?
EDMUNDO - Nem uma palavra.
CURAN - Então ainda haveis de ouvir algo a esse respeite. Passai bem, senhor.
(Sai.)
EDMUNDO - O duque aqui esta noite? Melhor... Ótimo! Isso cai mesmo certo no meu plano. Meu pai
pôs gente em busca de meu mano e um negócio nauseoso ainda me resta para ser posto em prática. Mãos
à obra. Celeridade e sorte! Mano, mano! Uma palavra! Vinde! Estou chamando!
(Entra Edgar.)
Meu pai está de espreita. Oh! Fugi logo; deixai o esconderijo, que este ponto já se tornou sabido. E
conveniente aproveitar a noite. Por acaso não vos manifestastes em prejuízo do duque de Cornualha? Ele
vem vindo para aqui, apressado, em plena noite, e Regane com ele. Não dissestes a favor dele nada,
contra o duque de Albânia? Pensai bem.
EDGAR - Não disse nada, tenho certeza.
EDMUNDO - Ouço meu pai que chega. Perdoai-me, mas por fingimento, apenas, tirai também a espada
e defendei-vos, só por simulação. Parti, agora. - Rendei-vos! Vamos ante nosso pai! Luz, aqui! - Fugi,
mano! - Tochas! Tochas! - Assim. Adeus, adeus.
(Sai Edgar.)
Agora um pouco de sangue há de fazer nascer a idéia de um combate mais sério.
(Fere-se no braço.)
Já vi bêbedos fazer por brincadeira mais do que isso.
Pai! Pai! Prendei! Prendei! Ninguém me ajuda?
(Entram Gloster e criados, com tochas.)
GLOSTER - Edmundo, onde está o biltre?
EDMUNDO - Aqui se achava, no escuro, espada em punho, depravados conjuros resmungando e, como
a dama auspiciosa, a invocar a própria lua.
GLOSTER - Mas onde está?
EDMUNDO - Senhor, estou sangrando.
GLOSTER - Mas onde está esse vilão, Edmundo?
EDMUNDO - Fugiu por lá, senhor, quando viu que era de todo inútil...
GLOSTER - Lá? Ide atrás dele!
(Saem alguns criados.)
"De todo inútil..." Quê?
EDMUNDO - Sim, persuadir-me a vos tirar a vida. Respondi-lhe que os deuses vingadores desferiam
seus duros raios contra os parricidas; lembrei-lhe os laços múltiplos e fortes que aos pais os filhos
prendem. Em resumo, senhor: vendo o desgosto que eu opunha a suas intenções desnaturadas,
enraivecido, espada em punho, ataca-me o corpo exposto e o braço aqui me fere. Mas ao ver que os
espíritos eu tinha bem despertos e que pela justeza da causa a combatê-lo se atreviam, ou por eu ter muito
barulho feito, de repente, fugiu.
GLOSTER - Pode esconder-se onde quiser, que neste território encontrado há de ser. E, uma vez preso...
liquidado. Meu mestre, o nobre duque, meu mui digno patrono e amado príncipe chega esta noite. Assim,
proclamarei, com sua autoridade, que há de nossa graça alcançar quem quer que encontre o biltre e o
covarde assassino entregue ao cepo. E se alguém o esconder, morra igualmente!
EDMUNDO - E quando procurava dissuadi-lo de semelhante intento, achando-o cada vez mais
determinado em realizá-lo, e ameacei denunciá-lo, respondeu-me: "Bastardo sem haveres, então pensas
que, se acareados fôssemos, alguma confiança em teu valor, virtude ou mérito reforçar poderia o que
dissesses? Não; pois o que eu negasse - e hei de fazê-lo, embora apresentasses cartas minhas - atribuiria
tudo a teus conselhos, traça e manobras pérfidas. Preciso fora deixares tolo o mundo inteiro, para que
ninguém visse quanto o lucro de minha morte te seria estímulo para que a procurasses".
GLOSTER - Celerado teimoso e endurecido! Negaria sua própria carta? Não, não é meu filho.
(Fanfarras.)
Atenção! As trombetas são do duque. Não sei por que motivo nos visita. Os portos fecharei, para que o
biltre não nos possa escapar. O duque me há de permitir isso. Espalharei por toda parte o retrato dele;
assim, o reino conhecerá seus traços. Minhas terras, rapaz fiel e natural, recursos hei de arranjar para que
a herdá-las venhas.
(Entram Cornualha, Regane e séqüito.)
CORNUALHA - Então, meu nobre amigo? Desde o instante que aqui cheguei - e foi neste momento -
soube coisas mui raras.
REGANE - Confirmadas, toda vingança ainda não bastara para ir sobre o ofensor. Então, milorde?
GLOSTER - Ó senhora, senhora! Espedaçado ficou-me o coração. Espedaçado!
REGANE - Como! O afilhado de meu pai tentou contra vossa existência? Aquele mesmo em que meu
pai pôs nome? Vosso Edgar?
GLOSTER - O senhora! A vergonha ora me manda ficar calado.
REGANE - Acaso ele não era companheiro dos homens turbulentos que servem a meu pai?
GLOSTER - Não sei, senhora Oh! É terrível tudo!
EDMUNDO - Sim, senhora; pertencia a esse bando.
REGANE - Se assim é, não admira que mostrasse sentimentos tão baixos. Partiu deles a idéia de matar o
velho, para desbaratarem logo seus haveres. De minha irmã recebi hoje cedo boas informações sobre essa
gente, com tantas advertências, que, se acaso quiserem ir parar em minha casa, não me encontrarei lá.
CORNUALHA - Nem eu, Regane. Edmundo, soube agora que prestastes a vosso pai serviços de bom
filho.
EDMUNDO - Só fiz o meu dever.
GLOSTER - Fez frustrar a manobra do outro, tendo recebido a ferida que aqui vedes, quando tentou
prendê-lo.
CORNUALHA - Seguiu gente no encalço dele?
GLOSTER - Sim, meu bom senhor.
CORNUALHA - Sendo apanhado, havemos de deixá-lo em condições de nunca mais receio vir a causar
a alguém. Tomai vós mesmo todas as providências e disponde do meu poder como vos for do agrado. E
vós, Edmundo, tão recompensado neste momento, assim pela obediência como pela virtude, sereis nosso.
Pessoas de lealdade tão provada são muito necessárias. Começamos, assim, por nos apoderar de vós.
EDMUNDO - Embora mais não faça, hei de lealmente servir a meu senhor.
GLOSTER - Muito agradeço por ele a Vossa Graça.
CORNUALHA - Com certeza não sabeis a razão desta visita...
REGANE - . . .assim fora de tempo, abrindo nosso caminho pela noite de olhos negros. Motivos, nobre
Gloster, de algum peso tornam vossos conselhos necessários. Nosso pai nos escreve, e nossa mana, sobre
certos dissídios, parecendo-me mais acertado responder a todos longe de nossa casa. Os mensageiros
estão aqui à espera da resposta. Velho e bondoso amigo, deixai calmo, de todo, o coração, e em nosso
auxílio vinde com bons conselhos sobre assunto que exige muita urgência.
GLOSTER - Ao vosso inteiro dispor, senhor, me encontro. Vossas Graças são bem-vindas aqui.
(Saem.)
REI LEAR, ATO II, Cena III
Uma parte da charneca. Entra Edgar.
EDGAR - Eu próprio ouvi o pregão em que diziam que me acho foragido, tendo à caça conseguido
escapar no oco de uma árvore. Não há porto algum livre, nenhum ponto 59 em que não haja guarda e
rigorosa vigilância, no intuito de apanhar-me. Salvo estarei enquanto fugir deles, pretendendo assumir a
mais abjeta, mais humilde aparência com que nunca, no seu desprezo aos homens, a miséria dos animais
se houvesse aproximado. Lama no rosto hei de passar, nos lombos porei qualquer coberta, desmanchados
trarei sempre os cabelos, e, com minha nudez patente, hei de enfrentar a fúria dos ventos e do céu. Tenho
modelos e precedentes aqui mesmo, nesses mendigos tresloucados que, com urros, nos braços nus e
entorpecidos cravam alfinetes, espinhos, pregos, ramos de rosmaninho e, assim, de aspecto horrível, nas
cabanas, nas vilas miseráveis, nos apriscos de ovelhas, nos moinhos, com imprecações de loucos ou com
rezas a caridade forçam. Pobre Tom! Pobre Turlu! Já sou alguma coisa; mas, como Edgar, serei coisa
nenhuma.
(Sai.)
Cena IV
Diante do castelo de Gloster. Kent no cepo. Entram Lear, o bobo e um gentil-homem.
LEAR - É estranho que de casa se partissem sem me terem reenviado o mensageiro.
GENTIL-HOMEM - Pelo que saber pude, até esta noite tenção não tinham de sair de casa.
KENT - Salve, meu nobre mestre!
LEAR - Como! Fazes da vergonha recreio?
KENT - Não, milorde.
BOBO - Ah! ah! Usa ligas muito duras. Os cavalos são amarrados pela cabeça; cachorros e ursos, pelo
pescoço; os macacos, pela cintura, e os homens pelas pernas. Quando alguém tem as pernas muito
desenvoltas, calça meias de pau.
LEAR - Quem errou a tal ponto com teu posto, para te pôr aí?
KENT - Foi ele e ela; o filho e a filha vossa.
LEAR- Não!
KENT - É certo.
LEAR - Não, repito.
KENT - O contrário eu também digo.
LEAR - Não fariam tal coisa.
KENT - Pois fizeram.
LEAR - Juro por Júpiter que não.
KENT - Por Juno, torno a jurar que sim.
LEAR - Não o ousariam, não poderiam tê-lo feito. For a pior do que um assassínio tal ultraje ao respeito
infligir. Com a mais decente pressa agora me conta de que modo pudeste merecer, ou antes, eles
infligir-te essa pena, se aqui vieste de nossa parte como mensageiro.
KENT - No instante em que, senhor, na casa deles a missiva entreguei de Vossa Alteza, sem que tivesse
tido tempo ainda de alçar-me do lugar em que se achava meu dever ajoelhado, fumegante chegou um
correio, em água todo esfeito de tanta pressa, o fôlego cortado, a arquejar cumprimentos de sua ama,
Goneril. Entregou-lhes uma carta - sem se importar com meu recado em curso - que lida fui de pronto, e
a cujo assunto os homens logo reúnem, vão diretos para os cavalos, dizem-me que os siga e o vagar da
resposta aqui esperasse, dirigindo-me sempre olhares frios. Tendo o outro mensageiro aqui encontrado,
cuja chegada, vira-o bem, a minha havia envenenado - e que era o mesmo velhaco que se comportara
contra Vossa Alteza com tanto atrevimento - mostrando-me mais homem do que sábio, saquei da espada,
enquanto ele alarmava toda a casa com berros de covarde. Acharam, vosso filho e vossa filha, essa
infração bastante grave, para o opróbrio merecer por que ora passo.
BOBO - O inverno ainda não passou, no caso de voarem nesta direção os patos selvagens. Quando os
pais só vestem trapos, os filhos nem querem vê-los; quando são ricos e guapos, são para eles só desvelos.
A Fortuna marafona sempre os pobres abandona. Mas apesar de tudo, tuas filhas te proporcionarão mais
dólares do que possas contar em um ano.
LEAR - Oh! Como ao peito esta paixão me sobe! Desce, "histerica passio", dor que sobe! E em baixo teu
lugar. E onde está a filha?
KENT - Senhor, com o conde, aí dentro.
LEAR - Não me sigas; espera aqui.
(Sai.)
GENTIL-HOMEM - Nenhuma ofensa, acaso, fizestes, a não ser a que contastes?
KENT - Nenhuma. Mas por que traz o rei tão pouca gente?
BOBO - Se tivesses sido posto no tronco por essa pergunta, fora bem merecido.
KENT - Por quê, bobo?
BOBO - Vamos pôr-te a aprender com uma formiga, que te ensinará que no inverno não há trabalho.
Todas as pessoas que seguem o nariz são levadas pelos olhos, com exceção dos cegos, não havendo um
só nariz, entre vinte, que não perceba quem está fedendo. Solta a roda grande, quando ela começar a rolar
colina abaixo, se não quiseres quebrar o pescoço; mas quando a roda grande subir a colina, bem: que te
arraste atrás dela. Quando um sábio te der melhor conselho, dá-lhe o meu de retorno. Quisera que só
fosse seguido pelos velhos, por ser conselho de bobo. Quem a outrem serve e lucro tem em mira, e tudo o
mais desleixa, se chove, apronta a trouxa e se retira, e no pegão o deixa. Mas eu não fugirei; o bobo fica;
seja o sábio fujão. Bobo se torna um biltre, quando estica; mas biltre o bobo, não.
KENT - Onde aprendeste isso, bobo?
BOBO - Não foi no cepo, bobo.
(Volta Lear, com Gloster.)
LEAR - Recusam-se a falar-me? Estão doentes? Fatigados? Viajaram toda a noite? Meras tretas;
imagens, tão-somente, de revolta e abandono. Arranja-me outra resposta mais razoável.
GLOSTER - Meu querido senhor, conheceis bem a natureza colérica do duque e como sempre
persistente se mostra e irredutível em quanto determina.
LEAR - Vingança! Peste! Morte! Confusão! Colérica? Que natureza? Ó Gloster, escuta: falar quero,
neste instante, com o Duque de Cornualha e sua esposa.
GLOSTER - Pois não, senhor; já lhes mandei recado.
LEAR - "Já lhes mandei recado!" Entendes-me, homem?
GLOSTER - Entendo, bom senhor.
LEAR - O rei deseja conversar com Cornualha, o pai querido deseja conversar com a própria filha; quer
ser obedecido. Já lhes deram semelhante "recado"? Sangue e vida! Colérico! O duque é mui colérico!
Dizei ao duque ardente... Não; é cedo. Pode ser que se encontre doente mesmo. A descuidar nos levam
sempre as doenças dos deveres que impõe, sempre, a saúde. Já não somos nós mesmos, quando, opressa,
ordena a natureza ao próprio espírito que padeça com o corpo. Esperar devo; combater quero este pendor
violento que me leva a tomar o acesso mórbido pelo homem são. Que morra o meu prestígio!
(Olhando para Kent.)
Por que razão ele se encontra ali? Esse ato me persuade de que a ausência do duque e da duquesa é
fingimento. Ponham logo meu criado em liberdade! Ide dizer ao duque e sua esposa que desejo falar-lhes
neste instante; agora mesmo! Saiam para ouvir-me; se não, em frente aos aposentos deles irei tocar
tambor de dar a morte ao sono com o barulho.
GLOSTER - Quem me dera que entre vós tudo viesse a concertar-se!
(Sai.)
LEAR - Ai de mim! Sinto o coração subir. Para baixo, de novo!
BOBO - Grita com ele, tio, como fazia a cozinheira com as enguias, ao pô-las vivas na frigideira.
Batia-lhes na cabeça com uma vara e gritava-lhes: "Para baixo, mal-educadas! Para baixo!" No entanto,
tinha um irmão que, por pura bondade, passava manteiga no feno do cavalo.
(Entram Cornualha, Regane, Gloster e criados.)
LEAR - Bom dia aos dois.
CORNUALHA - E salve Vossa Graça.
(Kent é posto em liberdade.)
REGANE - Fico alegre por ver Vossa Grandeza.
LEAR - Sim, Regane, sei disso; como as causas também de pensar dessa maneira. Se o não ficasses, eu
me divorciara da tumba de tua mãe como da de uma mulher adúltera. (A Kent.) Então, liberto? Depois
falamos nisso. Minha cara Regane, ah! tua irmã não vale nada. Ó Regane! a maldade corroedora ela
amarrou aqui, como um abutre.
(Indica o coração.)
Mal te posso falar. Não poderias conceber a maneira desumana... Ah, Regane!
REGANE - Por obséquio, senhor, tende paciência. Penso que estais tão longe de apreciar-lhe todo o
mérito, como de esquecer-se ela de seus deveres.
LEAR - De que modo?
REGANE - Não posso crer que minha irmã se tenha descuidado no mínimo de suas obrigações. Se acaso,
meu senhor, procurou restringir a turbulência de vossos seguidores, deu-se tudo com bases tais e tão
recomendáveis intenções, que de toda pecha a expungem.
LEAR - Lanço-lhe a maldição!
REGANE - O senhor, já estais velho! A natureza chegou em vós ao seu confim postremo. Devereis ser
guiado e governado por alguém que, melhor do que vós mesmo, vossas necessidades compreendesse.
Assim, vos peço, retornai para ela, senhor, e confessai que injusto fostes.
LEAR - Eu, pedir-lhe perdão? Vede como isso vai bem com nossa casa: Amada filha, confesso que sou
velho, sendo certo que a velhice é trambolho. Assim, de joelhos,
(Ajoelha-se.)
peço-vos conceder-me cama, roupa e um pouco de alimento.
REGANE - Meu bondoso senhor, não prossigais. São descabidas essas momices. Retornai para ela.
LEAR (levantando-se) - Jamais, Regane; ela cortou-me o séqüito de metade dos homens, dirigiu-me
olhares carrancudos, alcançando-me o coração com a língua viperina. Que em sua fronte ingrata caiam
todas as vinganças que o céu guardado tenha. Insuflai-lhe nos ossos jovens, ares pestilenciais, humores
deformantes! CORNUALHA - Ora, senhor, que coisa!
LEAR - Lançai-lhe, raios ágeis, vossas flamas ofuscantes nos olhos desdenhosos! Infectai-lhe a beleza,
brumas densas aspiradas dos charcos e engendradas pelo potente sol, para que venha a abater-se-lhe o
orgulho e encarquilhar-se. REGANE - Oh deuses abençoados! Iguais votos me fareis, quando vosso
humor violento tomar conta de vós.
LEAR - Jamais, Regane; jamais terás a minha maldição. Teu ser mui delicado não te leva a nenhuma
aspereza. Os olhos dela são ferozes; os teus, porém, confortam, não causam queimaduras. Não se casa
com tua natureza rogar praga contra minhas vontades, reduzir-me o séqüito, lançar-me termos ásperos,
limitar-me a pensão e, finalmente, ferrolhos antepor à minha entrada. Não; mais do que ela sabes os
deveres da natureza, obrigações dos filhos, o que a delicadeza impõe a todos e à gratidão devemos.
Esquecida não estás da metade do meu reino, que te entreguei por dote.
REGANE - Retornemos ao assunto, senhor. LEAR - Quem pôs meu homem no cepo?
(Ouve-se toque de trombeta.)
CORNUALHA - Que trombeta será essa?
REGANE - Conheço o toque; é minha irmã. Sua carta fica assim confirmada com a notícia de que viria
aqui. Chegou a senhora?
(Entra Osvaldo.)
LEAR - Eis um escravo, cujo orgulho fácil e barato repousa nos favores instáveis da senhora a que ele
serve. Fora da minha vista, sacripanta!
CORNUALHA - Que quer dizer com isso Vossa Graça?
LEAR - Quem ao cepo prendeu este meu criado? Regane, espero que não saibas disto. Mas quem vem
lá?
(Entra Goneril.)
Ó céus, se amais os velhos, se com a obediência vosso cetro brando se compadece, se também sois velho,
tomai o meu partido e vinde pôr-vos ao meu lado.
(A Goneril.) Não tens vergonha, acaso, de olhar para estas barbas? Ó Regane! tomá-la pelas mãos?
GONERIL - Por que não há de fazê-lo, meu senhor? Qual foi meu erro? Nem tudo é ofensa que a tolice
julga e a loucura nomeia.
LEAR - Ó flancos! duros sois por demais! Resistireis ainda? Por que no cepo foi parar meu homem?
CORNUALHA - Fui eu que o pus aí, senhor; mas suas desordens não faziam jus a tanta promoção.
LEAR - Como assim! Fostes vós mesmo?
REGANE - Por obséquio, meu pai; já que sois fraco, comportai-vos de acordo. Se até ao prazo final de
vosso mês vos conformardes em voltar para a mana, e lá ficardes, despedindo metade desse séquito,
vinde, então, para mim. Agora me acho fora de casa, sem dispor dos meios necessários a vosso
tratamento.
LEAR - Procurá-la de novo? Cinqüenta homens despedidos? Jamais! Preferiria abjurar todo abrigo e
expor-me à própria inimizade do ar, em companheiro transformar-me do lobo e da coruja, sob a dura
pressão da adversidade. Voltar para ela? Esse ardoroso França, que recebeu sem dote minha filha mais
nova, para mim fora mais fácil diante do trono dele ir ajoelhar-me e, tal qual escudeiro, mendigar-lhe
pensão mesquinha que esta vida abjeta permita sustentar. Voltar para ela! Antes tornar-me escravo ou ser
azêmola deste palafreneiro detestável.
(Mostrando Osvaldo.)
GONERIL - Senhor, à vossa escolha.
LEAR - Filha, peço-te que não me deixes louco. Não desejo, menina, incomodar-te por mais tempo.
Adeus. Não nos veremos nunca mais; nunca mais voltaremos a encontrar-nos. Mas és meu sangue, minha
carne: filha. Ou melhor: uma doença em minha carne, a que forçado sou a chamar minha; és um inchaço,
uma úlcera pestosa, um carbúnculo podre e tumefeito no meu sangue corrupto. Contudo, não quero
repreender-te. Que a vergonha venha quando quiser; não vou chamá-la. Não pedirei ao portador de raios
que troveje, nem nada a teu respeito direi de mal a Jove, o juiz supremo. Se puderes, emenda-te; melhora
quando quiseres. Posso ser paciente. Posso ficar em casa de Regane com meus cem cavaleiros.
REGANE - Mais cuidado! Não contava convosco, nem me encontro preparada para vos dar condigno
acolhimento. Ouvi, senhor, a mana. Quem põe razão nesses acessos vossos facilmente conclui que já
estais velho. Logo... Ela sabe o que convém ao caso.
LEAR - Isso foi bem falado?
REGANE - Quero crê-lo, senhor. Como! Cinqüenta seguidores? Não vos bastam? Quereis mais gente
ainda? Precisareis de tantos? Sim, que os próprios perigos e as despesas esse número desaconselham.
Como poderia haver paz numa casa entre tão grande número de homens sob comando duplo? É difícil se
não quase impossível.
GONERIL - Por que não poderíeis ser servido pela gente da mana ou pela minha? REGANE - Por que
não, meu senhor? Se qualquer deles de vós se descuidasse, fora fácil repreendê-los por isso. Se quiserdes,
assim, morar comigo - e agora vejo que tal coisa é arriscada - pediria que trouxésseis apenas vinte e
cinco. Para mais não terei lugar nem mesmo disposição.
LEAR - Fui eu que vos dei tudo...
REGANE - E em tempo certo o destes.
LEAR - Instituí-vos minhas depositárias e tutoras, reservando-me apenas uma escolta desse número.
Como! Deveria procurar-vos, então, com vinte e cinco? Regane, assim falastes?
REGANE - E repito-o; nem mais um, meu senhor.
LEAR - Certas criaturas boa aparência apresentar conseguem, quando outras em maldade as sobrepujam.
Não sendo as piores, cabem-lhe elogios. Contigo ficarei; os teus cinqüenta o dobro são dos vinte e cinco
dela, e o seu amor tu vales duas vezes.
GONERIL - Senhor, ouvi-me. Que necessidade tendes de vinte e cinco, dez, ou cinco pessoas para vos
servir, em casa que dispõe até mais do dobro disso para tratar de vós?
REGANE - E por que de uma?
LEAR - Oh! não faleis sobre a necessidade. Nossos mendigos mais necessitados muita coisa supérflua
ainda possuem. À natureza concedei apenas o que ela própria exige, e a vida humana tão barata será
como a das feras. És uma dama. Se já fosse luxo andarmos aquecidos, não teria necessidade alguma a
natureza dessas vestes luxuosas que em matéria de aquecimento em nada te protegem. Mas a necessidade
verdadeira... Ó céus, dai-me paciência! É de paciência que necessito agora. Ó deuses! vedes aqui um
pobre velho, tão pesado de anos que de cuidados, duplamente desgraçado! Se acaso levantastes o coração
das filhas contra os pais, não me deixeis tão parvo que suporte tudo isso humildemente; nobre cólera
fazei que em mim desperte, sem deixardes que as armas da mulher, as gotas de água, as faces varonis
manchar me venham. Não, bruxas desumanas! Tal vingança hei de tomar de vós, que o mundo inteiro...
Farei tais coisas - quais, ainda o ignoro - que hão de ser o terror de toda a terra. Pensais talvez que vou
derramar lágrimas? Não, não hei de chorar. Tenho causas sobejas para tanto; mas antes de fazê-lo, há de
partir-se-me o coração em vinte mil pedaços. Bobo, vou ficar louco!
(Saem Lear, Gloster, Kent e o bobo.)
CORNUALHA - Recolhamo-nos; vai haver tempestade.
(Ouve-se a tempestade a distância.)
REGANE - É mui pequena a casa para comportar o velho e mais seus seguidores.
GONERIL - É só dele toda a culpa. Privou-se do conforto, tendo, assim, de provar da própria insânia.
REGANE - De grado o acolheria; mas só ele, sem nenhum de seus homens.
GONERIL - É o que eu penso, também. Mas onde está milorde Gloster? CORNUALHA - Acompanhou
o velho. Ei-lo de volta.
(Volta Gloster.)
GLOSTER - Está furioso o rei.
CORNUALHA - Para onde foi?
GLOSTER - Pede cavalos; mas não sei para onde tenciona dirigir-se.
CORNUALHA - Pois deixemo-lo; saberá conduzir-se.
GONERIL - Não insteis, senhor, de jeito algum para que fique.
GLOSTER - Oh céus! A noite vem baixando, e os ventos penetrantes já sopram com veemência. Em
muitas milhas em redor não se acha facilmente um arbusto.
REGANE - Ora, senhor! os teimosos aprendem com os incômodos que a si mesmos procuram. Fechai
logo vossas portas; os homens que o acompanham são capazes de tudo. O que eles podem induzi-lo a
fazer - sendo de ouvidos tão fáceis de enganar - manda a prudência que com razão temamos.
CORNUALHA - Fechai logo vossas portas, senhor. Minha Regane vos dá um bom conselho. A noite é
horrível; saí da tempestade. Recolhamo-nos.
(Saem.)
EDGAR - Eu próprio ouvi o pregão em que diziam que me acho foragido, tendo à caça conseguido
escapar no oco de uma árvore. Não há porto algum livre, nenhum ponto 59 em que não haja guarda e
rigorosa vigilância, no intuito de apanhar-me. Salvo estarei enquanto fugir deles, pretendendo assumir a
mais abjeta, mais humilde aparência com que nunca, no seu desprezo aos homens, a miséria dos animais
se houvesse aproximado. Lama no rosto hei de passar, nos lombos porei qualquer coberta, desmanchados
trarei sempre os cabelos, e, com minha nudez patente, hei de enfrentar a fúria dos ventos e do céu. Tenho
modelos e precedentes aqui mesmo, nesses mendigos tresloucados que, com urros, nos braços nus e
entorpecidos cravam alfinetes, espinhos, pregos, ramos de rosmaninho e, assim, de aspecto horrível, nas
cabanas, nas vilas miseráveis, nos apriscos de ovelhas, nos moinhos, com imprecações de loucos ou com
rezas a caridade forçam. Pobre Tom! Pobre Turlu! Já sou alguma coisa; mas, como Edgar, serei coisa
nenhuma.
(Sai.)
Cena IV
Diante do castelo de Gloster. Kent no cepo. Entram Lear, o bobo e um gentil-homem.
LEAR - É estranho que de casa se partissem sem me terem reenviado o mensageiro.
GENTIL-HOMEM - Pelo que saber pude, até esta noite tenção não tinham de sair de casa.
KENT - Salve, meu nobre mestre!
LEAR - Como! Fazes da vergonha recreio?
KENT - Não, milorde.
BOBO - Ah! ah! Usa ligas muito duras. Os cavalos são amarrados pela cabeça; cachorros e ursos, pelo
pescoço; os macacos, pela cintura, e os homens pelas pernas. Quando alguém tem as pernas muito
desenvoltas, calça meias de pau.
LEAR - Quem errou a tal ponto com teu posto, para te pôr aí?
KENT - Foi ele e ela; o filho e a filha vossa.
LEAR- Não!
KENT - É certo.
LEAR - Não, repito.
KENT - O contrário eu também digo.
LEAR - Não fariam tal coisa.
KENT - Pois fizeram.
LEAR - Juro por Júpiter que não.
KENT - Por Juno, torno a jurar que sim.
LEAR - Não o ousariam, não poderiam tê-lo feito. For a pior do que um assassínio tal ultraje ao respeito
infligir. Com a mais decente pressa agora me conta de que modo pudeste merecer, ou antes, eles
infligir-te essa pena, se aqui vieste de nossa parte como mensageiro.
KENT - No instante em que, senhor, na casa deles a missiva entreguei de Vossa Alteza, sem que tivesse
tido tempo ainda de alçar-me do lugar em que se achava meu dever ajoelhado, fumegante chegou um
correio, em água todo esfeito de tanta pressa, o fôlego cortado, a arquejar cumprimentos de sua ama,
Goneril. Entregou-lhes uma carta - sem se importar com meu recado em curso - que lida fui de pronto, e
a cujo assunto os homens logo reúnem, vão diretos para os cavalos, dizem-me que os siga e o vagar da
resposta aqui esperasse, dirigindo-me sempre olhares frios. Tendo o outro mensageiro aqui encontrado,
cuja chegada, vira-o bem, a minha havia envenenado - e que era o mesmo velhaco que se comportara
contra Vossa Alteza com tanto atrevimento - mostrando-me mais homem do que sábio, saquei da espada,
enquanto ele alarmava toda a casa com berros de covarde. Acharam, vosso filho e vossa filha, essa
infração bastante grave, para o opróbrio merecer por que ora passo.
BOBO - O inverno ainda não passou, no caso de voarem nesta direção os patos selvagens. Quando os
pais só vestem trapos, os filhos nem querem vê-los; quando são ricos e guapos, são para eles só desvelos.
A Fortuna marafona sempre os pobres abandona. Mas apesar de tudo, tuas filhas te proporcionarão mais
dólares do que possas contar em um ano.
LEAR - Oh! Como ao peito esta paixão me sobe! Desce, "histerica passio", dor que sobe! E em baixo teu
lugar. E onde está a filha?
KENT - Senhor, com o conde, aí dentro.
LEAR - Não me sigas; espera aqui.
(Sai.)
GENTIL-HOMEM - Nenhuma ofensa, acaso, fizestes, a não ser a que contastes?
KENT - Nenhuma. Mas por que traz o rei tão pouca gente?
BOBO - Se tivesses sido posto no tronco por essa pergunta, fora bem merecido.
KENT - Por quê, bobo?
BOBO - Vamos pôr-te a aprender com uma formiga, que te ensinará que no inverno não há trabalho.
Todas as pessoas que seguem o nariz são levadas pelos olhos, com exceção dos cegos, não havendo um
só nariz, entre vinte, que não perceba quem está fedendo. Solta a roda grande, quando ela começar a rolar
colina abaixo, se não quiseres quebrar o pescoço; mas quando a roda grande subir a colina, bem: que te
arraste atrás dela. Quando um sábio te der melhor conselho, dá-lhe o meu de retorno. Quisera que só
fosse seguido pelos velhos, por ser conselho de bobo. Quem a outrem serve e lucro tem em mira, e tudo o
mais desleixa, se chove, apronta a trouxa e se retira, e no pegão o deixa. Mas eu não fugirei; o bobo fica;
seja o sábio fujão. Bobo se torna um biltre, quando estica; mas biltre o bobo, não.
KENT - Onde aprendeste isso, bobo?
BOBO - Não foi no cepo, bobo.
(Volta Lear, com Gloster.)
LEAR - Recusam-se a falar-me? Estão doentes? Fatigados? Viajaram toda a noite? Meras tretas;
imagens, tão-somente, de revolta e abandono. Arranja-me outra resposta mais razoável.
GLOSTER - Meu querido senhor, conheceis bem a natureza colérica do duque e como sempre
persistente se mostra e irredutível em quanto determina.
LEAR - Vingança! Peste! Morte! Confusão! Colérica? Que natureza? Ó Gloster, escuta: falar quero,
neste instante, com o Duque de Cornualha e sua esposa.
GLOSTER - Pois não, senhor; já lhes mandei recado.
LEAR - "Já lhes mandei recado!" Entendes-me, homem?
GLOSTER - Entendo, bom senhor.
LEAR - O rei deseja conversar com Cornualha, o pai querido deseja conversar com a própria filha; quer
ser obedecido. Já lhes deram semelhante "recado"? Sangue e vida! Colérico! O duque é mui colérico!
Dizei ao duque ardente... Não; é cedo. Pode ser que se encontre doente mesmo. A descuidar nos levam
sempre as doenças dos deveres que impõe, sempre, a saúde. Já não somos nós mesmos, quando, opressa,
ordena a natureza ao próprio espírito que padeça com o corpo. Esperar devo; combater quero este pendor
violento que me leva a tomar o acesso mórbido pelo homem são. Que morra o meu prestígio!
(Olhando para Kent.)
Por que razão ele se encontra ali? Esse ato me persuade de que a ausência do duque e da duquesa é
fingimento. Ponham logo meu criado em liberdade! Ide dizer ao duque e sua esposa que desejo falar-lhes
neste instante; agora mesmo! Saiam para ouvir-me; se não, em frente aos aposentos deles irei tocar
tambor de dar a morte ao sono com o barulho.
GLOSTER - Quem me dera que entre vós tudo viesse a concertar-se!
(Sai.)
LEAR - Ai de mim! Sinto o coração subir. Para baixo, de novo!
BOBO - Grita com ele, tio, como fazia a cozinheira com as enguias, ao pô-las vivas na frigideira.
Batia-lhes na cabeça com uma vara e gritava-lhes: "Para baixo, mal-educadas! Para baixo!" No entanto,
tinha um irmão que, por pura bondade, passava manteiga no feno do cavalo.
(Entram Cornualha, Regane, Gloster e criados.)
LEAR - Bom dia aos dois.
CORNUALHA - E salve Vossa Graça.
(Kent é posto em liberdade.)
REGANE - Fico alegre por ver Vossa Grandeza.
LEAR - Sim, Regane, sei disso; como as causas também de pensar dessa maneira. Se o não ficasses, eu
me divorciara da tumba de tua mãe como da de uma mulher adúltera. (A Kent.) Então, liberto? Depois
falamos nisso. Minha cara Regane, ah! tua irmã não vale nada. Ó Regane! a maldade corroedora ela
amarrou aqui, como um abutre.
(Indica o coração.)
Mal te posso falar. Não poderias conceber a maneira desumana... Ah, Regane!
REGANE - Por obséquio, senhor, tende paciência. Penso que estais tão longe de apreciar-lhe todo o
mérito, como de esquecer-se ela de seus deveres.
LEAR - De que modo?
REGANE - Não posso crer que minha irmã se tenha descuidado no mínimo de suas obrigações. Se acaso,
meu senhor, procurou restringir a turbulência de vossos seguidores, deu-se tudo com bases tais e tão
recomendáveis intenções, que de toda pecha a expungem.
LEAR - Lanço-lhe a maldição!
REGANE - O senhor, já estais velho! A natureza chegou em vós ao seu confim postremo. Devereis ser
guiado e governado por alguém que, melhor do que vós mesmo, vossas necessidades compreendesse.
Assim, vos peço, retornai para ela, senhor, e confessai que injusto fostes.
LEAR - Eu, pedir-lhe perdão? Vede como isso vai bem com nossa casa: Amada filha, confesso que sou
velho, sendo certo que a velhice é trambolho. Assim, de joelhos,
(Ajoelha-se.)
peço-vos conceder-me cama, roupa e um pouco de alimento.
REGANE - Meu bondoso senhor, não prossigais. São descabidas essas momices. Retornai para ela.
LEAR (levantando-se) - Jamais, Regane; ela cortou-me o séqüito de metade dos homens, dirigiu-me
olhares carrancudos, alcançando-me o coração com a língua viperina. Que em sua fronte ingrata caiam
todas as vinganças que o céu guardado tenha. Insuflai-lhe nos ossos jovens, ares pestilenciais, humores
deformantes! CORNUALHA - Ora, senhor, que coisa!
LEAR - Lançai-lhe, raios ágeis, vossas flamas ofuscantes nos olhos desdenhosos! Infectai-lhe a beleza,
brumas densas aspiradas dos charcos e engendradas pelo potente sol, para que venha a abater-se-lhe o
orgulho e encarquilhar-se. REGANE - Oh deuses abençoados! Iguais votos me fareis, quando vosso
humor violento tomar conta de vós.
LEAR - Jamais, Regane; jamais terás a minha maldição. Teu ser mui delicado não te leva a nenhuma
aspereza. Os olhos dela são ferozes; os teus, porém, confortam, não causam queimaduras. Não se casa
com tua natureza rogar praga contra minhas vontades, reduzir-me o séqüito, lançar-me termos ásperos,
limitar-me a pensão e, finalmente, ferrolhos antepor à minha entrada. Não; mais do que ela sabes os
deveres da natureza, obrigações dos filhos, o que a delicadeza impõe a todos e à gratidão devemos.
Esquecida não estás da metade do meu reino, que te entreguei por dote.
REGANE - Retornemos ao assunto, senhor. LEAR - Quem pôs meu homem no cepo?
(Ouve-se toque de trombeta.)
CORNUALHA - Que trombeta será essa?
REGANE - Conheço o toque; é minha irmã. Sua carta fica assim confirmada com a notícia de que viria
aqui. Chegou a senhora?
(Entra Osvaldo.)
LEAR - Eis um escravo, cujo orgulho fácil e barato repousa nos favores instáveis da senhora a que ele
serve. Fora da minha vista, sacripanta!
CORNUALHA - Que quer dizer com isso Vossa Graça?
LEAR - Quem ao cepo prendeu este meu criado? Regane, espero que não saibas disto. Mas quem vem
lá?
(Entra Goneril.)
Ó céus, se amais os velhos, se com a obediência vosso cetro brando se compadece, se também sois velho,
tomai o meu partido e vinde pôr-vos ao meu lado.
(A Goneril.) Não tens vergonha, acaso, de olhar para estas barbas? Ó Regane! tomá-la pelas mãos?
GONERIL - Por que não há de fazê-lo, meu senhor? Qual foi meu erro? Nem tudo é ofensa que a tolice
julga e a loucura nomeia.
LEAR - Ó flancos! duros sois por demais! Resistireis ainda? Por que no cepo foi parar meu homem?
CORNUALHA - Fui eu que o pus aí, senhor; mas suas desordens não faziam jus a tanta promoção.
LEAR - Como assim! Fostes vós mesmo?
REGANE - Por obséquio, meu pai; já que sois fraco, comportai-vos de acordo. Se até ao prazo final de
vosso mês vos conformardes em voltar para a mana, e lá ficardes, despedindo metade desse séquito,
vinde, então, para mim. Agora me acho fora de casa, sem dispor dos meios necessários a vosso
tratamento.
LEAR - Procurá-la de novo? Cinqüenta homens despedidos? Jamais! Preferiria abjurar todo abrigo e
expor-me à própria inimizade do ar, em companheiro transformar-me do lobo e da coruja, sob a dura
pressão da adversidade. Voltar para ela? Esse ardoroso França, que recebeu sem dote minha filha mais
nova, para mim fora mais fácil diante do trono dele ir ajoelhar-me e, tal qual escudeiro, mendigar-lhe
pensão mesquinha que esta vida abjeta permita sustentar. Voltar para ela! Antes tornar-me escravo ou ser
azêmola deste palafreneiro detestável.
(Mostrando Osvaldo.)
GONERIL - Senhor, à vossa escolha.
LEAR - Filha, peço-te que não me deixes louco. Não desejo, menina, incomodar-te por mais tempo.
Adeus. Não nos veremos nunca mais; nunca mais voltaremos a encontrar-nos. Mas és meu sangue, minha
carne: filha. Ou melhor: uma doença em minha carne, a que forçado sou a chamar minha; és um inchaço,
uma úlcera pestosa, um carbúnculo podre e tumefeito no meu sangue corrupto. Contudo, não quero
repreender-te. Que a vergonha venha quando quiser; não vou chamá-la. Não pedirei ao portador de raios
que troveje, nem nada a teu respeito direi de mal a Jove, o juiz supremo. Se puderes, emenda-te; melhora
quando quiseres. Posso ser paciente. Posso ficar em casa de Regane com meus cem cavaleiros.
REGANE - Mais cuidado! Não contava convosco, nem me encontro preparada para vos dar condigno
acolhimento. Ouvi, senhor, a mana. Quem põe razão nesses acessos vossos facilmente conclui que já
estais velho. Logo... Ela sabe o que convém ao caso.
LEAR - Isso foi bem falado?
REGANE - Quero crê-lo, senhor. Como! Cinqüenta seguidores? Não vos bastam? Quereis mais gente
ainda? Precisareis de tantos? Sim, que os próprios perigos e as despesas esse número desaconselham.
Como poderia haver paz numa casa entre tão grande número de homens sob comando duplo? É difícil se
não quase impossível.
GONERIL - Por que não poderíeis ser servido pela gente da mana ou pela minha? REGANE - Por que
não, meu senhor? Se qualquer deles de vós se descuidasse, fora fácil repreendê-los por isso. Se quiserdes,
assim, morar comigo - e agora vejo que tal coisa é arriscada - pediria que trouxésseis apenas vinte e
cinco. Para mais não terei lugar nem mesmo disposição.
LEAR - Fui eu que vos dei tudo...
REGANE - E em tempo certo o destes.
LEAR - Instituí-vos minhas depositárias e tutoras, reservando-me apenas uma escolta desse número.
Como! Deveria procurar-vos, então, com vinte e cinco? Regane, assim falastes?
REGANE - E repito-o; nem mais um, meu senhor.
LEAR - Certas criaturas boa aparência apresentar conseguem, quando outras em maldade as sobrepujam.
Não sendo as piores, cabem-lhe elogios. Contigo ficarei; os teus cinqüenta o dobro são dos vinte e cinco
dela, e o seu amor tu vales duas vezes.
GONERIL - Senhor, ouvi-me. Que necessidade tendes de vinte e cinco, dez, ou cinco pessoas para vos
servir, em casa que dispõe até mais do dobro disso para tratar de vós?
REGANE - E por que de uma?
LEAR - Oh! não faleis sobre a necessidade. Nossos mendigos mais necessitados muita coisa supérflua
ainda possuem. À natureza concedei apenas o que ela própria exige, e a vida humana tão barata será
como a das feras. És uma dama. Se já fosse luxo andarmos aquecidos, não teria necessidade alguma a
natureza dessas vestes luxuosas que em matéria de aquecimento em nada te protegem. Mas a necessidade
verdadeira... Ó céus, dai-me paciência! É de paciência que necessito agora. Ó deuses! vedes aqui um
pobre velho, tão pesado de anos que de cuidados, duplamente desgraçado! Se acaso levantastes o coração
das filhas contra os pais, não me deixeis tão parvo que suporte tudo isso humildemente; nobre cólera
fazei que em mim desperte, sem deixardes que as armas da mulher, as gotas de água, as faces varonis
manchar me venham. Não, bruxas desumanas! Tal vingança hei de tomar de vós, que o mundo inteiro...
Farei tais coisas - quais, ainda o ignoro - que hão de ser o terror de toda a terra. Pensais talvez que vou
derramar lágrimas? Não, não hei de chorar. Tenho causas sobejas para tanto; mas antes de fazê-lo, há de
partir-se-me o coração em vinte mil pedaços. Bobo, vou ficar louco!
(Saem Lear, Gloster, Kent e o bobo.)
CORNUALHA - Recolhamo-nos; vai haver tempestade.
(Ouve-se a tempestade a distância.)
REGANE - É mui pequena a casa para comportar o velho e mais seus seguidores.
GONERIL - É só dele toda a culpa. Privou-se do conforto, tendo, assim, de provar da própria insânia.
REGANE - De grado o acolheria; mas só ele, sem nenhum de seus homens.
GONERIL - É o que eu penso, também. Mas onde está milorde Gloster? CORNUALHA - Acompanhou
o velho. Ei-lo de volta.
(Volta Gloster.)
GLOSTER - Está furioso o rei.
CORNUALHA - Para onde foi?
GLOSTER - Pede cavalos; mas não sei para onde tenciona dirigir-se.
CORNUALHA - Pois deixemo-lo; saberá conduzir-se.
GONERIL - Não insteis, senhor, de jeito algum para que fique.
GLOSTER - Oh céus! A noite vem baixando, e os ventos penetrantes já sopram com veemência. Em
muitas milhas em redor não se acha facilmente um arbusto.
REGANE - Ora, senhor! os teimosos aprendem com os incômodos que a si mesmos procuram. Fechai
logo vossas portas; os homens que o acompanham são capazes de tudo. O que eles podem induzi-lo a
fazer - sendo de ouvidos tão fáceis de enganar - manda a prudência que com razão temamos.
CORNUALHA - Fechai logo vossas portas, senhor. Minha Regane vos dá um bom conselho. A noite é
horrível; saí da tempestade. Recolhamo-nos.
(Saem.)
REI LEAR, ATO II, Cena II
Diante do castelo de Gloster. Entram Kent e Osvaldo, por lados diferentes.
OSVALDO - Boa manhã para ti, amigo; és desta casa?
KENT - Sou.
OSVALDO - Onde poderemos pôr os cavalos?
KENT - No charco.
OSVALDO - Informa-me, por obséquio, se me tens amizade.
KENT - Não te tenho amizade nenhuma.
OSVALDO - Nesse caso não me preocuparei contigo.
KENT - Se eu te pegasse no curral de Lipsbury, obrigar-te-ia a te preocupares comigo.
OSVALDO - Por que me tratas desse modo? Não te conheço.
KENT - Mas eu te conheço, traste.
OSVALDO - Por quem me tomas tu?
KENT - Por um biltre, um canalha, devorador de restos; um biltre ignóbil, atrevido, oco, indigente, de
três librés, massabruta, imundo, de meias estragadas; um biltre com fígado de lírio, um chicanista;
nascido na sarjeta, namorador do espelho, espinha mole, petimetre; um lacaio que só herdou uma roupa,
um tipo que servirá de alcoviteiro, à guisa de bons serviços, mas que não passa de um misto de velhaco,
mendigo, covarde, alcoviteiro e herdeiro de uma cadela bastarda; um tipo em que darei uma coça de
arrancar rugidos, no caso de contestares a menor sílaba de todos estes teus títulos honoríficos.
OSVALDO - Ora, que sujeito monstruoso és tu, para deblaterares contra uma pessoa que nem te conhece
nem é conhecida por ti?
KENT - Que tipo de cara de bronze és tu, para dizeres que não me conheces, se há dois dias eu te dei um
pontapé na frente do rei? Saca a tua espada, pulha; ser noite não importa, visto que há luar; vou fazer de
ti uma sopa à luz da lua.
(Sacando da espada.)
Vamos, desembainha também a tua espada, maroto, coisa à toa, peralvilho! Vamos, desembainha!
OSVALDO - Retira-te daqui! Não tenho nada que ver contigo.
KENT - Desembainha, maroto! Trouxestes cartas contra o rei e tomais o partido da boneca vaidosa,
contra a realeza do pai dela. Saca a espada, biltre; se não retalho-te as canelas. Saca da espada, biltre!
Toma posição!
OSVALDO - Socorro! Olá! Assassino! Socorro!
KENT - Ataca, escravo! Defende-te, patife! Defende-te! Vamos, ataca, lacaio!
(Bate-lhe.)
(Entra Edmundo, de florete na mão.)
EDMUNDO - Então, que aconteceu?
KENT - E convosco, se vos aprouver, meu rapazinho. Vinde, meu jovem mestre, que desejo dar-vos uma
lição.
(Entram Cornualha, Regane, Gloster e criados.)
GLOSTER - Espadas! Armas! Que se passa aqui?
CORNUALHA - Por vossa vida, paz! Morre quem prosseguir. Que é que se passa?
REGANE - Os mensageiros são do rei e da mana.
CORNUALHA - Qual o motivo dessa briga? Vamos!
OSVALDO - Quase não posso respirar, milorde.
KENT - Não admira, pois forçaste demais a valentia. Pulha covarde! A natureza te renega; foste feito por
algum alfaiate.
CORNUALHA - Es um tipo curioso; um alfaiate fazer um homem?
KENT - Sim, um alfaiate, senhor; um escultor ou um pintor não o teriam feito tão mal, ainda que só
trabalhassem duas horas.
CORNUALHA - Falai vós agora: que foi que originou essa briga?
OSVALDO - Este velho desordeiro, senhor, cuja vida eu poupei só por causa daquelas barbas brancas...
KENT - Z amaldiçoado! Letra inútil! Milorde, se o permitirdes, amassarei num pilão esse vilão grosseiro,
para enlambuzar com ele as paredes da latrina. Então poupastes-me as barbas brancas, meu ranheta?
CORNUALHA - Silêncio, biltre! Grosseirão, desconheces o respeito?
KENT - Conheço, sim senhor; mas é que a cólera também tem privilégios.
CORNUALHA - Por que causa ficastes tão colérico?
KENT - Por ver de espada um pulha destituído de honestidade. Os biltres sorridentes como este aqui, tal
qual os ratos, roem os laços sacrossantos que, por fortes, não podem desmanchar; adulam todas as
paixões que refervam no imo peito de seus amos; no fogo põem mais óleo; mais neve, nos humores, de si
frios; afirmam, negam, viram seus pescoços de alcião, de acordo com as menores brisas e variações dos
amos, ignorando, como os cães, tudo o mais, senão seguir. A peste nessa cara de epiléptico! Do meu
discurso ris como de um tolo? Ganso, se eu te apanhasse na planície de Sarnum, tocar-te-ia a Camelot,
fazendo-te grasnar.
CORNUALHA - Que é isso, velho? Ficastes louco?
GLOSTER - Qual a razão disso? Vamos, falai.
KENT - Não pode haver contrários que revelem maior antipatia do que eu e esse patife.
CORNUALHA - Por que causa o chamas de patife? Que te fez?
KENT - Não vou com a cara dele.
CORNUALHA - Nem com a minha não é assim? E a deste aqui, e a dela?... KENT - Senhor, tenho por
hábito ser franco: em minha vida toda já vi rostos mais agradáveis do que quantos posso discernir sobre
os ombros dos presentes.
CORNUALHA - E algum sujeito que por já ter sido louvado de franqueza, usa linguagem rude e
insolente, contra as próprias vestes de sua natureza. É- lhe impossível adular. Não! Caráter reto e
honesto. Só diz o que é a verdade; os mais que a aceitem, se puderem; se não, falou sincero. Conheço
muito bem esses bargantes, cuja franqueza abriga mais enganos e corruptos intentos do que vinte desses
coitados cheios de zumbaias que cumprem belamente seus deveres.
KENT - Por minha alma, senhor, pela verdade, com a permissão de vosso augusto aspecto, cujo poder é
como a auréola rútila da cabeça de Febo coruscante...
CORNUALHA - Que pretendeis com isso?
KENT - Deixando de lado meu estilo, que tanto desaprovais, senhor, sei perfeitamente que não sou
bajulador. Quem vos enganou com fraseado polido não passava de um velhaco, o que, de minha parte,
não pretendo ser, ainda que disso me adviesse conquistar o vosso desagrado.
CORNUALHA - Que ofensa lhe fizestes?
OSVALDO - Eu? Nenhuma. Por um mal-entendido, não faz muito, aprouve ao rei, seu mestre,
castigar-me. Para adular-lhe a cólera, atirou-se-me este aqui por detrás e derrubou-me, sobre insultar-me,
por me ver caído, remoques atirando-me e estadeando tanta virilidade, como se algo, de fato, fosse, e
encômios ganhou logo do rei, porque atacara quem já estava vencido por si mesmo. E ora, animado pelo
êxito de tão grandioso feito, me atacou novamente. KENT - Todos esses covardes e mandriões fazem de
bobo ao próprio Ajaz.
CORNUALHA - Tragam-me logo o cepo! Maroto pertinaz, encanecido fanfarrão, haveremos de
ensinar-vos...
KENT - Senhor, para aprender sou muito velho. Para mim não mandeis trazer o cepo. Pertenço ao rei, e
foi por seu mandado que vos vim procurar. Revelaríeis pouco respeito e excesso de arrogância contra a
pessoa e a graça de meu amo, pondo no cepo o mensageiro dele.
CORNUALHA - Trazei-me o cepo! Por minha alma e honra, há de ficar aí até ao meio-dia.
REGANE - Meio-dia? Até à noite, meu senhor; a noite toda, aliás.
KENT - Como, senhora! Se eu fosse o cão de vosso pai, decerto não me daríeis esse tratamento.
REGANE - Mas dou-vo-lo, por serdes seu criado
. CORNUALHA - Este tipo é da cor dos que nos fala nossa irmã. Vamos; tragam logo o cepo!
(O cepo é trazido.)
GLOSTER - Deixai-me suplicar a Vossa Graça que não façais tal coisa. Sua falta foi grande; mas o rei,
seu bondoso amo, saberá castigá-lo. A pena baixa que ora lhe destinais só é aplicável aos mais vis
transgressores, por delitos ordinários ou crimes de pilhagem. O rei há de achar mal ver-se tratado com
tão pouco respeito no emissário que aqui vai ficar preso.
CORNUALHA - Isso é comigo; responderei por tudo.
REGANE - Pior ainda há de achar minha irmã que houvesse sido agredido e insultado o gentil-homem
da parte dela. - Assim; prendei-lhe os pés. Caro senhor, partamos.
(Kent é posto no cepo.)
(Saem todos, com exceção de Gloster e Kent.)
GLOSTER - Amigo, dás-me pena; mas o duque foi que o determinou, sabendo todos que seu
temperamento não suporta ser friccionado em nada ou posto em xeque. Hei de pedir por ti.
KENT - Não, por obséquio, senhor; não dormi nada e andei bastante. Parte do tempo dormirei; o resto
passarei assobiando. Pode dar-se que pelos calcanhares cresça a sorte de um homem de valor. Dou-vos
bom dia.
GLOSTER - Está errado o duque. Isto vai mal.
(Sai.)
KENT - Bom rei, confirmas o brocardo antigo: deixas as bênçãos de um céu calmo e límpido pelo sol
escaldante. Vem para perto, luz do mundo baixo, porque eu consiga ler esta missiva sob os teus raios
brandos. Quase nunca vemos milagres, se não for apenas quando infelizes. Veio-me esta carta, sei-o bem,
de Cordélia, que, por sorte, ficou sabendo de meu curso obscuro e há de achar ocasião, nesta nossa época
desordenada, para dar remédio ao que estiver doente. Tão cansados por contínuas vigílias, alegrai-vos,
olhos pesados, por não conseguirdes ver bem neste aposento vergonhoso. Fortuna, passa bem; sorri de
novo e faze andar mais uma vez a roda.
(Adormece.)
OSVALDO - Boa manhã para ti, amigo; és desta casa?
KENT - Sou.
OSVALDO - Onde poderemos pôr os cavalos?
KENT - No charco.
OSVALDO - Informa-me, por obséquio, se me tens amizade.
KENT - Não te tenho amizade nenhuma.
OSVALDO - Nesse caso não me preocuparei contigo.
KENT - Se eu te pegasse no curral de Lipsbury, obrigar-te-ia a te preocupares comigo.
OSVALDO - Por que me tratas desse modo? Não te conheço.
KENT - Mas eu te conheço, traste.
OSVALDO - Por quem me tomas tu?
KENT - Por um biltre, um canalha, devorador de restos; um biltre ignóbil, atrevido, oco, indigente, de
três librés, massabruta, imundo, de meias estragadas; um biltre com fígado de lírio, um chicanista;
nascido na sarjeta, namorador do espelho, espinha mole, petimetre; um lacaio que só herdou uma roupa,
um tipo que servirá de alcoviteiro, à guisa de bons serviços, mas que não passa de um misto de velhaco,
mendigo, covarde, alcoviteiro e herdeiro de uma cadela bastarda; um tipo em que darei uma coça de
arrancar rugidos, no caso de contestares a menor sílaba de todos estes teus títulos honoríficos.
OSVALDO - Ora, que sujeito monstruoso és tu, para deblaterares contra uma pessoa que nem te conhece
nem é conhecida por ti?
KENT - Que tipo de cara de bronze és tu, para dizeres que não me conheces, se há dois dias eu te dei um
pontapé na frente do rei? Saca a tua espada, pulha; ser noite não importa, visto que há luar; vou fazer de
ti uma sopa à luz da lua.
(Sacando da espada.)
Vamos, desembainha também a tua espada, maroto, coisa à toa, peralvilho! Vamos, desembainha!
OSVALDO - Retira-te daqui! Não tenho nada que ver contigo.
KENT - Desembainha, maroto! Trouxestes cartas contra o rei e tomais o partido da boneca vaidosa,
contra a realeza do pai dela. Saca a espada, biltre; se não retalho-te as canelas. Saca da espada, biltre!
Toma posição!
OSVALDO - Socorro! Olá! Assassino! Socorro!
KENT - Ataca, escravo! Defende-te, patife! Defende-te! Vamos, ataca, lacaio!
(Bate-lhe.)
(Entra Edmundo, de florete na mão.)
EDMUNDO - Então, que aconteceu?
KENT - E convosco, se vos aprouver, meu rapazinho. Vinde, meu jovem mestre, que desejo dar-vos uma
lição.
(Entram Cornualha, Regane, Gloster e criados.)
GLOSTER - Espadas! Armas! Que se passa aqui?
CORNUALHA - Por vossa vida, paz! Morre quem prosseguir. Que é que se passa?
REGANE - Os mensageiros são do rei e da mana.
CORNUALHA - Qual o motivo dessa briga? Vamos!
OSVALDO - Quase não posso respirar, milorde.
KENT - Não admira, pois forçaste demais a valentia. Pulha covarde! A natureza te renega; foste feito por
algum alfaiate.
CORNUALHA - Es um tipo curioso; um alfaiate fazer um homem?
KENT - Sim, um alfaiate, senhor; um escultor ou um pintor não o teriam feito tão mal, ainda que só
trabalhassem duas horas.
CORNUALHA - Falai vós agora: que foi que originou essa briga?
OSVALDO - Este velho desordeiro, senhor, cuja vida eu poupei só por causa daquelas barbas brancas...
KENT - Z amaldiçoado! Letra inútil! Milorde, se o permitirdes, amassarei num pilão esse vilão grosseiro,
para enlambuzar com ele as paredes da latrina. Então poupastes-me as barbas brancas, meu ranheta?
CORNUALHA - Silêncio, biltre! Grosseirão, desconheces o respeito?
KENT - Conheço, sim senhor; mas é que a cólera também tem privilégios.
CORNUALHA - Por que causa ficastes tão colérico?
KENT - Por ver de espada um pulha destituído de honestidade. Os biltres sorridentes como este aqui, tal
qual os ratos, roem os laços sacrossantos que, por fortes, não podem desmanchar; adulam todas as
paixões que refervam no imo peito de seus amos; no fogo põem mais óleo; mais neve, nos humores, de si
frios; afirmam, negam, viram seus pescoços de alcião, de acordo com as menores brisas e variações dos
amos, ignorando, como os cães, tudo o mais, senão seguir. A peste nessa cara de epiléptico! Do meu
discurso ris como de um tolo? Ganso, se eu te apanhasse na planície de Sarnum, tocar-te-ia a Camelot,
fazendo-te grasnar.
CORNUALHA - Que é isso, velho? Ficastes louco?
GLOSTER - Qual a razão disso? Vamos, falai.
KENT - Não pode haver contrários que revelem maior antipatia do que eu e esse patife.
CORNUALHA - Por que causa o chamas de patife? Que te fez?
KENT - Não vou com a cara dele.
CORNUALHA - Nem com a minha não é assim? E a deste aqui, e a dela?... KENT - Senhor, tenho por
hábito ser franco: em minha vida toda já vi rostos mais agradáveis do que quantos posso discernir sobre
os ombros dos presentes.
CORNUALHA - E algum sujeito que por já ter sido louvado de franqueza, usa linguagem rude e
insolente, contra as próprias vestes de sua natureza. É- lhe impossível adular. Não! Caráter reto e
honesto. Só diz o que é a verdade; os mais que a aceitem, se puderem; se não, falou sincero. Conheço
muito bem esses bargantes, cuja franqueza abriga mais enganos e corruptos intentos do que vinte desses
coitados cheios de zumbaias que cumprem belamente seus deveres.
KENT - Por minha alma, senhor, pela verdade, com a permissão de vosso augusto aspecto, cujo poder é
como a auréola rútila da cabeça de Febo coruscante...
CORNUALHA - Que pretendeis com isso?
KENT - Deixando de lado meu estilo, que tanto desaprovais, senhor, sei perfeitamente que não sou
bajulador. Quem vos enganou com fraseado polido não passava de um velhaco, o que, de minha parte,
não pretendo ser, ainda que disso me adviesse conquistar o vosso desagrado.
CORNUALHA - Que ofensa lhe fizestes?
OSVALDO - Eu? Nenhuma. Por um mal-entendido, não faz muito, aprouve ao rei, seu mestre,
castigar-me. Para adular-lhe a cólera, atirou-se-me este aqui por detrás e derrubou-me, sobre insultar-me,
por me ver caído, remoques atirando-me e estadeando tanta virilidade, como se algo, de fato, fosse, e
encômios ganhou logo do rei, porque atacara quem já estava vencido por si mesmo. E ora, animado pelo
êxito de tão grandioso feito, me atacou novamente. KENT - Todos esses covardes e mandriões fazem de
bobo ao próprio Ajaz.
CORNUALHA - Tragam-me logo o cepo! Maroto pertinaz, encanecido fanfarrão, haveremos de
ensinar-vos...
KENT - Senhor, para aprender sou muito velho. Para mim não mandeis trazer o cepo. Pertenço ao rei, e
foi por seu mandado que vos vim procurar. Revelaríeis pouco respeito e excesso de arrogância contra a
pessoa e a graça de meu amo, pondo no cepo o mensageiro dele.
CORNUALHA - Trazei-me o cepo! Por minha alma e honra, há de ficar aí até ao meio-dia.
REGANE - Meio-dia? Até à noite, meu senhor; a noite toda, aliás.
KENT - Como, senhora! Se eu fosse o cão de vosso pai, decerto não me daríeis esse tratamento.
REGANE - Mas dou-vo-lo, por serdes seu criado
. CORNUALHA - Este tipo é da cor dos que nos fala nossa irmã. Vamos; tragam logo o cepo!
(O cepo é trazido.)
GLOSTER - Deixai-me suplicar a Vossa Graça que não façais tal coisa. Sua falta foi grande; mas o rei,
seu bondoso amo, saberá castigá-lo. A pena baixa que ora lhe destinais só é aplicável aos mais vis
transgressores, por delitos ordinários ou crimes de pilhagem. O rei há de achar mal ver-se tratado com
tão pouco respeito no emissário que aqui vai ficar preso.
CORNUALHA - Isso é comigo; responderei por tudo.
REGANE - Pior ainda há de achar minha irmã que houvesse sido agredido e insultado o gentil-homem
da parte dela. - Assim; prendei-lhe os pés. Caro senhor, partamos.
(Kent é posto no cepo.)
(Saem todos, com exceção de Gloster e Kent.)
GLOSTER - Amigo, dás-me pena; mas o duque foi que o determinou, sabendo todos que seu
temperamento não suporta ser friccionado em nada ou posto em xeque. Hei de pedir por ti.
KENT - Não, por obséquio, senhor; não dormi nada e andei bastante. Parte do tempo dormirei; o resto
passarei assobiando. Pode dar-se que pelos calcanhares cresça a sorte de um homem de valor. Dou-vos
bom dia.
GLOSTER - Está errado o duque. Isto vai mal.
(Sai.)
KENT - Bom rei, confirmas o brocardo antigo: deixas as bênçãos de um céu calmo e límpido pelo sol
escaldante. Vem para perto, luz do mundo baixo, porque eu consiga ler esta missiva sob os teus raios
brandos. Quase nunca vemos milagres, se não for apenas quando infelizes. Veio-me esta carta, sei-o bem,
de Cordélia, que, por sorte, ficou sabendo de meu curso obscuro e há de achar ocasião, nesta nossa época
desordenada, para dar remédio ao que estiver doente. Tão cansados por contínuas vigílias, alegrai-vos,
olhos pesados, por não conseguirdes ver bem neste aposento vergonhoso. Fortuna, passa bem; sorri de
novo e faze andar mais uma vez a roda.
(Adormece.)
REI LEAR, ATO III, Cena I
Uma charneca. Tempestade, com trovões e relâmpagos. Entram Kent e um gentil-homem, que se
encontram.
KENT - Além do tempo mau, quem está aí?
GENTIL-HOMEM - Alguém inquieto como o próprio tempo.
KENT - Conheço-vos. E o rei, que faz agora?
GENTIL-HOMEM - Luta com os elementos agitados; manda ao vento que ao mar atire a terra, ou eleve
as ondas crespas muito acima dos continentes, para que se mudem todas as coisas, ou de vez acabem;
puxa os cabelos brancos que as rajadas impetuosas em seu furor apanham com cega raiva, reduzindo a
nada; em seu mundo pequeno de homem, luta por zombar do conflito sempre móvel dos ventos e da
chuva. Nesta noite, em que, depois de amamentar os filhos, a ursa não se levanta, e o leão e o lobo
famintos sem molhar a pele ficam, cabeça descoberta ele se agita, à destruição total jogando tudo.
KENT - E quem está com ele?
GENTIL-HOMEM - O bobo, apenas, que tenta dissipar-lhe com gracejos a dor do coração tão
trabalhado.
KENT - Conheço-vos, senhor; por isso atrevo-me, sob o penhor de tal conhecimento a vos contar um
caso muito grave. Há discórdia, conquanto ainda encoberta se ache de parte a parte pela astúcia, entre
Albânia e Cornualha. Eles possuem - o mesmo não se dá com todos quantos a grande estrela exalta e põe
num trono? - criados, ao parecer, mas que, de fato, são espias de França e informadores, e que se
encontram sempre a par de tudo que aqui se passa: as rixas e as conjuras dos dois duques e, após, o modo
altivo que contra o velho rei têm revelado, ou algo porventura mais profundo de que seja tudo isso mero
apêndice: o certo é que um exército da França penetrou neste reino dividido, o qual o pé firmou muito em
segredo, valendo-se de nossa negligência, no nosso melhor porto, e ora se encontra no ponto de mostrar
os estandartes. Ora é convosco: se puderdes algo construir sobre as minhas referências a ponto de ir a
Dover sem demora, encontrareis decerto ali quem há de saber agradecer-vos, quando justo relato lhe
fizerdes das tristezas desnaturais e em tudo abaladoras por que o rei tem passado. Por sangue e educação
sou gentil-homem; é com conhecimento, pois, de causa, e confiança que disso vos incumbo.
GENTIL-HOMEM - Falaremos sobre isso mais de espaço.
KENT - De forma alguma. Para convencer-vos de que eu sou muito mais do que pareço, ficai com o
conteúdo desta bolsa. Se avistardes Cordélia - o que há de dar-se, ficai bem certo disso - apresentai-lhe
este anel, que ela, então, vos dirá logo quem é o camarada que nesta hora ainda não conheceis. Mas que
tormenta! Vou procurar o rei.
GENTIL-HOMEM - Dai-me a mão. Nada mais quereis dizer-me?
KENT - Pouco; porém, de fato, mais que tudo: Quando acharmos o rei - deveis, por isso, seguir por este
lado; eu, por aquele - quem primeiro o encontrar grita para o outro.
(Saem por lados diferentes.)
encontram.
KENT - Além do tempo mau, quem está aí?
GENTIL-HOMEM - Alguém inquieto como o próprio tempo.
KENT - Conheço-vos. E o rei, que faz agora?
GENTIL-HOMEM - Luta com os elementos agitados; manda ao vento que ao mar atire a terra, ou eleve
as ondas crespas muito acima dos continentes, para que se mudem todas as coisas, ou de vez acabem;
puxa os cabelos brancos que as rajadas impetuosas em seu furor apanham com cega raiva, reduzindo a
nada; em seu mundo pequeno de homem, luta por zombar do conflito sempre móvel dos ventos e da
chuva. Nesta noite, em que, depois de amamentar os filhos, a ursa não se levanta, e o leão e o lobo
famintos sem molhar a pele ficam, cabeça descoberta ele se agita, à destruição total jogando tudo.
KENT - E quem está com ele?
GENTIL-HOMEM - O bobo, apenas, que tenta dissipar-lhe com gracejos a dor do coração tão
trabalhado.
KENT - Conheço-vos, senhor; por isso atrevo-me, sob o penhor de tal conhecimento a vos contar um
caso muito grave. Há discórdia, conquanto ainda encoberta se ache de parte a parte pela astúcia, entre
Albânia e Cornualha. Eles possuem - o mesmo não se dá com todos quantos a grande estrela exalta e põe
num trono? - criados, ao parecer, mas que, de fato, são espias de França e informadores, e que se
encontram sempre a par de tudo que aqui se passa: as rixas e as conjuras dos dois duques e, após, o modo
altivo que contra o velho rei têm revelado, ou algo porventura mais profundo de que seja tudo isso mero
apêndice: o certo é que um exército da França penetrou neste reino dividido, o qual o pé firmou muito em
segredo, valendo-se de nossa negligência, no nosso melhor porto, e ora se encontra no ponto de mostrar
os estandartes. Ora é convosco: se puderdes algo construir sobre as minhas referências a ponto de ir a
Dover sem demora, encontrareis decerto ali quem há de saber agradecer-vos, quando justo relato lhe
fizerdes das tristezas desnaturais e em tudo abaladoras por que o rei tem passado. Por sangue e educação
sou gentil-homem; é com conhecimento, pois, de causa, e confiança que disso vos incumbo.
GENTIL-HOMEM - Falaremos sobre isso mais de espaço.
KENT - De forma alguma. Para convencer-vos de que eu sou muito mais do que pareço, ficai com o
conteúdo desta bolsa. Se avistardes Cordélia - o que há de dar-se, ficai bem certo disso - apresentai-lhe
este anel, que ela, então, vos dirá logo quem é o camarada que nesta hora ainda não conheceis. Mas que
tormenta! Vou procurar o rei.
GENTIL-HOMEM - Dai-me a mão. Nada mais quereis dizer-me?
KENT - Pouco; porém, de fato, mais que tudo: Quando acharmos o rei - deveis, por isso, seguir por este
lado; eu, por aquele - quem primeiro o encontrar grita para o outro.
(Saem por lados diferentes.)
REI LEAR, ATO III, Cena III
Um quarto no castelo de Gloster. Entram Gloster e Edmundo.
GLOSTER - Ah, Edmundo, Edmundo! Não me agrada esse procedimento desnaturado. Quando lhes pedi
permissão para apiedar-me dele, privaram-me do uso de minha própria casa, proibindo-me, sob pena de
seu perpétuo descontentamento, de falar a respeito dele, de interceder a seu favor ou de ir-lhe em auxílio
de qualquer maneira.
EDMUNDO - Por demais selvagem e contrário à natureza.
GLOSTER - Acomoda-te; não digas nada. Há divisão entre os duques, e pior do que isso. Esta noite
recebi uma carta. É perigoso falar nisso. Tranquei-a no meu gabinete. Os sofrimentos por que o rei agora
está passando, serão oportunamente vingados. Parte do exército já desembarcou; teremos de ficar do lado
do rei. Vou procurá-lo secretamente e ajudá-lo. Ide conversar com o duque, para que não seja percebida
minha caridade. Se ele perguntar por mim, estou doente e de cama. Ainda que eu venha a perder a vida -
que é o menos com que estou ameaçado - é preciso que o rei, meu velho amo, seja socorrido. Há alguma
coisa muito estranha em perspectiva, Edmundo. Aconselho-vos cautela.
(Sai.)
EDMUNDO - A caridade que te foi proibida será comunicada logo ao duque, como a carta também, o
que parece serviço meritório que me rende quanto meu pai perder, a saber: tudo. Exulta o moço, o velho
fica mudo.
(Sai.)
GLOSTER - Ah, Edmundo, Edmundo! Não me agrada esse procedimento desnaturado. Quando lhes pedi
permissão para apiedar-me dele, privaram-me do uso de minha própria casa, proibindo-me, sob pena de
seu perpétuo descontentamento, de falar a respeito dele, de interceder a seu favor ou de ir-lhe em auxílio
de qualquer maneira.
EDMUNDO - Por demais selvagem e contrário à natureza.
GLOSTER - Acomoda-te; não digas nada. Há divisão entre os duques, e pior do que isso. Esta noite
recebi uma carta. É perigoso falar nisso. Tranquei-a no meu gabinete. Os sofrimentos por que o rei agora
está passando, serão oportunamente vingados. Parte do exército já desembarcou; teremos de ficar do lado
do rei. Vou procurá-lo secretamente e ajudá-lo. Ide conversar com o duque, para que não seja percebida
minha caridade. Se ele perguntar por mim, estou doente e de cama. Ainda que eu venha a perder a vida -
que é o menos com que estou ameaçado - é preciso que o rei, meu velho amo, seja socorrido. Há alguma
coisa muito estranha em perspectiva, Edmundo. Aconselho-vos cautela.
(Sai.)
EDMUNDO - A caridade que te foi proibida será comunicada logo ao duque, como a carta também, o
que parece serviço meritório que me rende quanto meu pai perder, a saber: tudo. Exulta o moço, o velho
fica mudo.
(Sai.)
REI LEAR, ATO III, Cena II
Outra parte da charneca. A tempestade continua. Entram Lear e o bobo.
LEAR - Ventos, soprai de arrebentar as próprias bochechas! Enraivai! Soprai com força! Trombas e
cataratas, derramai-vos até terdes coberto os campanários e afogado seus galos! Sulfurosos raios, velozes
como o pensamento, vanguarda dos coriscos que os carvalhos abrem de meio a meio, chamuscai-me a
cabeleira branca! E tu, trovão de tudo abalador, achata a espessa redondeza do mundo, quebra os moldes
da natureza e de uma vez desfaze todos os germes geradores do homem sem gratidão.
BOBO - Ó tio, mais vale água benta no pátio de uma casa seca, do que toda esta água de chuva ao ar
livre. Vai para dentro, bom tio, e pede a bênção de tuas filhas. Uma noite como esta não se apiada nem
de sábios nem de bobos.
LEAR - Deixa o vento roncar! Escarra, fogo! Jorra, chuva! Os trovões, o vento, o fogo, minhas filhas não
são. Não vos acuso de ingratos, elementos. Nunca um reino vos dei, nem vos chamei sequer de filhos.
Não me deveis nenhuma obediência. Que caia, pois, vosso prazer horrível. Aqui me encontro, vosso
escravo, um velho pobre, fraco, sem forças, desprezado. No entretanto, declaro-vos ministros servis, pois
com duas filhas perniciosas, travais vossas batalhas de alta origem contra uma fronte tão encanecida e tão
velha como esta. Oh! Que vergonha! BOBO - Quem tem uma casa onde enfiar a cabeça, dispõe de um
bom chapéu. Quando a braguilha quer casa, sem que o dono tenha abrigo dos piolhos é a grande vasa,
que isso é vida de mendigo. Quem põe o dedão do pé onde tem o coração, vive a gemer - a-la-fé! - por
calos que insônia dão, pois nunca ouve mulher bonita que não fizesse caretas ao espelho.
(Entra Kent.)
LEAR - Quero ser um modelo de paciência; não direi nada.
KENT - Quem está aí?
BOBO - Ora, uma majestade e uma braguilha, isto é, um sábio e um bobo.
KENT - Oh senhor! Vós aqui? Nenhuma coisa que da noite se agrada, se acomoda a uma noite como
esta. Os céus furiosos metem medo até mesmo nos rondantes da escuridão, retendo-os em seus antros.
Desde que me fiz homem não me lembro de ter presenciado tantas faixas de fogo, tanto estouro de
terríficos trovões, tantos lamentos e bramidos dos ventos e da chuva. A natureza do homem não pode
suportar o medo e a aflição que vêm disso.
LEAR - Grandes deuses, que tanto estrondo sobre nós retendes, agora procurai vossos imigos! Treme,
malvado, em quem se ocultam crimes pela justiça ainda não punidos! Mão sanguinária, oculta-te!
Perjuro, tu também; como tu, falso virtuoso, que praticas o incesto! Em estilhaços arrebenta, bargante,
que atentaste contra a vida de alguém sob aparência tranqüila e sedutora! Atrocidades no fundo ocultas,
estourai as capas que vos escondem e implorai as graças desses admoestadores pavorosos! Quanto a
mim, sou mais vítima de culpa, do que mesmo culpado.
KENT - Oh! que tristeza! Cabeça descoberta! Meu gracioso soberano, aqui perto há uma cabana, que
oferecer-vos pode algum abrigo contra o mau tempo. Recolhei-vos a ela, enquanto eu volto àquela casa
dura - mais dura do que as pedras de que é feita, e que, há momentos, quando eu pretendia saber notícias
vossas, me negou té mesmo a entrada - para que lhes force a avara cortesia.
LEAR - Sinto o espírito girar em torno. Vamos, meu pequeno! Como te sentes, caro? Muito frio? Eu
também. Companheiro, onde é que há palha? É por demais estranha a arte dos pobres que faz preciosas
as mais baixas coisas. Vossa cabana... Seja! Pobre bobo, tenho no coração um lugarzinho que se apiada
de ti. BOBO - Se não perdeste de todo a mente, com hei com hô, com tamanha chuva, com a própria
sorte fica contente, embora chova todos os dias.
LEAR - É certo, meu pequeno; vamos, leva-nos para essa tal cabana.
(Saem Lear e Kent.)
BOBO - Eis uma bela noite para deixar fria uma cortesã. Mas antes de sair quero fazer uma profecia:
Quando por obras converter a Igreja e água puser o dono na cerveja; quando o nobre for mestre do
alfaiate, e a fogueira não mais o herege mate, mas apenas o amante apaixonado; quando só houver
processo bem julgado, dívidas não tiver o cavaleiro e a calúnia poupar o mundo inteiro; quando evitar o
experto a turbamulta e a arca do avaro não ficar oculta; quando as alcoviteiras eloqüentes construírem
templos caros e imponentes: cairá em confusão este reino de Albião. Então verá quem vivo ainda estiver
que com os pés andam o homem e a mulher. Esta profecia será feita por Merlino, porque eu vivo antes do
tempo dele.
(Sai.)
LEAR - Ventos, soprai de arrebentar as próprias bochechas! Enraivai! Soprai com força! Trombas e
cataratas, derramai-vos até terdes coberto os campanários e afogado seus galos! Sulfurosos raios, velozes
como o pensamento, vanguarda dos coriscos que os carvalhos abrem de meio a meio, chamuscai-me a
cabeleira branca! E tu, trovão de tudo abalador, achata a espessa redondeza do mundo, quebra os moldes
da natureza e de uma vez desfaze todos os germes geradores do homem sem gratidão.
BOBO - Ó tio, mais vale água benta no pátio de uma casa seca, do que toda esta água de chuva ao ar
livre. Vai para dentro, bom tio, e pede a bênção de tuas filhas. Uma noite como esta não se apiada nem
de sábios nem de bobos.
LEAR - Deixa o vento roncar! Escarra, fogo! Jorra, chuva! Os trovões, o vento, o fogo, minhas filhas não
são. Não vos acuso de ingratos, elementos. Nunca um reino vos dei, nem vos chamei sequer de filhos.
Não me deveis nenhuma obediência. Que caia, pois, vosso prazer horrível. Aqui me encontro, vosso
escravo, um velho pobre, fraco, sem forças, desprezado. No entretanto, declaro-vos ministros servis, pois
com duas filhas perniciosas, travais vossas batalhas de alta origem contra uma fronte tão encanecida e tão
velha como esta. Oh! Que vergonha! BOBO - Quem tem uma casa onde enfiar a cabeça, dispõe de um
bom chapéu. Quando a braguilha quer casa, sem que o dono tenha abrigo dos piolhos é a grande vasa,
que isso é vida de mendigo. Quem põe o dedão do pé onde tem o coração, vive a gemer - a-la-fé! - por
calos que insônia dão, pois nunca ouve mulher bonita que não fizesse caretas ao espelho.
(Entra Kent.)
LEAR - Quero ser um modelo de paciência; não direi nada.
KENT - Quem está aí?
BOBO - Ora, uma majestade e uma braguilha, isto é, um sábio e um bobo.
KENT - Oh senhor! Vós aqui? Nenhuma coisa que da noite se agrada, se acomoda a uma noite como
esta. Os céus furiosos metem medo até mesmo nos rondantes da escuridão, retendo-os em seus antros.
Desde que me fiz homem não me lembro de ter presenciado tantas faixas de fogo, tanto estouro de
terríficos trovões, tantos lamentos e bramidos dos ventos e da chuva. A natureza do homem não pode
suportar o medo e a aflição que vêm disso.
LEAR - Grandes deuses, que tanto estrondo sobre nós retendes, agora procurai vossos imigos! Treme,
malvado, em quem se ocultam crimes pela justiça ainda não punidos! Mão sanguinária, oculta-te!
Perjuro, tu também; como tu, falso virtuoso, que praticas o incesto! Em estilhaços arrebenta, bargante,
que atentaste contra a vida de alguém sob aparência tranqüila e sedutora! Atrocidades no fundo ocultas,
estourai as capas que vos escondem e implorai as graças desses admoestadores pavorosos! Quanto a
mim, sou mais vítima de culpa, do que mesmo culpado.
KENT - Oh! que tristeza! Cabeça descoberta! Meu gracioso soberano, aqui perto há uma cabana, que
oferecer-vos pode algum abrigo contra o mau tempo. Recolhei-vos a ela, enquanto eu volto àquela casa
dura - mais dura do que as pedras de que é feita, e que, há momentos, quando eu pretendia saber notícias
vossas, me negou té mesmo a entrada - para que lhes force a avara cortesia.
LEAR - Sinto o espírito girar em torno. Vamos, meu pequeno! Como te sentes, caro? Muito frio? Eu
também. Companheiro, onde é que há palha? É por demais estranha a arte dos pobres que faz preciosas
as mais baixas coisas. Vossa cabana... Seja! Pobre bobo, tenho no coração um lugarzinho que se apiada
de ti. BOBO - Se não perdeste de todo a mente, com hei com hô, com tamanha chuva, com a própria
sorte fica contente, embora chova todos os dias.
LEAR - É certo, meu pequeno; vamos, leva-nos para essa tal cabana.
(Saem Lear e Kent.)
BOBO - Eis uma bela noite para deixar fria uma cortesã. Mas antes de sair quero fazer uma profecia:
Quando por obras converter a Igreja e água puser o dono na cerveja; quando o nobre for mestre do
alfaiate, e a fogueira não mais o herege mate, mas apenas o amante apaixonado; quando só houver
processo bem julgado, dívidas não tiver o cavaleiro e a calúnia poupar o mundo inteiro; quando evitar o
experto a turbamulta e a arca do avaro não ficar oculta; quando as alcoviteiras eloqüentes construírem
templos caros e imponentes: cairá em confusão este reino de Albião. Então verá quem vivo ainda estiver
que com os pés andam o homem e a mulher. Esta profecia será feita por Merlino, porque eu vivo antes do
tempo dele.
(Sai.)
REI LEAR, ATO III, Cena V
Um quarto no castelo de Gloster. Entram Cornualha e Edmundo.
CORNUALHA - Hei de vingar-me antes de deixar a casa dele.
EDMUNDO - As censuras, milorde, de que eu poderei ser alvo, por permitir que a natureza ceda a tal
ponto à lealdade, deixam-me bastante apreensivo.
CORNUALHA - Percebo agora que não foram absolutamente as más inclinações de vosso irmão que o
levaram a procurar a morte dele, senão o meritório impulso que se viu estimulado pela ruindade
condenável dele próprio.
EDMUNDO - Como é pérfido o meu destino, que me leva a arrepender-me de ser justo! Aqui está a carta
de que ele falou; traz a prova de que é partidário dos interesses da França. Oh céus! Quem me dera que
não houvesse semelhante traição, ou que não fosse eu o delator!
CORNUALHA - Vem comigo procurar a duquesa.
EDMUNDO - Se for verdadeiro o conteúdo dessa folha, tendes em mãos um negócio muito sério.
CORNUALHA - Verdadeiro ou falso, ele te fez conde de Gloster. Descobre onde está teu pai, para que
eu providencie logo sua prisão. EDMUNDO (à parte) - Se eu o encontrar confortando o rei, isso virá
reforçar as suspeitas do duque. - Hei de manter-me na trilha da lealdade, por mais doloroso que seja o
conflito entre ela e meu sangue.
CORNUALHA - Depositarei em ti minha confiança; em meu amor encontrarás um pai mais carinhoso.
(Saem.)
CORNUALHA - Hei de vingar-me antes de deixar a casa dele.
EDMUNDO - As censuras, milorde, de que eu poderei ser alvo, por permitir que a natureza ceda a tal
ponto à lealdade, deixam-me bastante apreensivo.
CORNUALHA - Percebo agora que não foram absolutamente as más inclinações de vosso irmão que o
levaram a procurar a morte dele, senão o meritório impulso que se viu estimulado pela ruindade
condenável dele próprio.
EDMUNDO - Como é pérfido o meu destino, que me leva a arrepender-me de ser justo! Aqui está a carta
de que ele falou; traz a prova de que é partidário dos interesses da França. Oh céus! Quem me dera que
não houvesse semelhante traição, ou que não fosse eu o delator!
CORNUALHA - Vem comigo procurar a duquesa.
EDMUNDO - Se for verdadeiro o conteúdo dessa folha, tendes em mãos um negócio muito sério.
CORNUALHA - Verdadeiro ou falso, ele te fez conde de Gloster. Descobre onde está teu pai, para que
eu providencie logo sua prisão. EDMUNDO (à parte) - Se eu o encontrar confortando o rei, isso virá
reforçar as suspeitas do duque. - Hei de manter-me na trilha da lealdade, por mais doloroso que seja o
conflito entre ela e meu sangue.
CORNUALHA - Depositarei em ti minha confiança; em meu amor encontrarás um pai mais carinhoso.
(Saem.)
REI LEAR, ATO III, Cena IV
A charneca. Diante de uma choupana. Entram Lear, Kent e o bobo.
KENT - É aqui, senhor. Meu bom senhor, entrai. É por demais severa a tirania da noite descoberta, para
as forças de nossa natureza.
(A tempestade continua.)
LEAR - Não; afasta-te! Desejo ficar só.
KENT - Entrai aqui, senhor.
LEAR - Quereis partir-me o coração?
KENT - Primeiro partiria o meu. Bondoso senhor, entrai.
LEAR - Estais fazendo grande cabedal desta chuva revoltada, que nos molha até os ossos. É que a sentes
dessa maneira. Porém quando a doença maior penetra, as outras não se sentem. Se corres do urso, mas
em tua fuga fores bater nas ondas rugidoras, voltarás frente para a goela dele. Livre o espírito, o corpo é
delicado. A tempestade que na mente eu trago nada me deixa perceber por meio dos sentidos, afora o que
ali bate: a ingratidão filial. Não fora o mesmo, se a boca decepar quisesse a mão que até ela se alça para
alimentá-la? Mas saberei tomar cabal vingança. Cessarei de chorar. Fechar-me a porta numa noite como
esta! Mais! Despeja, que hei de agüentar! E numa noite assim! Ah Goneril! Regane! Vosso velho pai, tão
bondoso, que vos dera tudo com franco coração! Oh! A loucura vem desse lado. Vamos evitá-la. Sobre
isso, basta.
KENT - Bem, milorde; entremos.
LEAR - Não; por favor, primeiro tu; procura tua comodidade. Este aguaceiro me impede de cuidar de
muitas coisas que muito maior dor me causariam. Mas vou entrar. (Ao bobo.) Menino, vai na frente.
Pobreza sem abrigo... Entra, entra logo. Rezo primeiro; dormirei depois.
(O bobo entra na choupana.)
Onde quer que estejais, pobres sem roupa, que os golpes suportais desta impiedosa tempestade, dizei-me:
de que modo vossos flancos mirrados e as cabeças desprotegidas, vossos trapos ricos em furos e janelas
hão de o corpo vos proteger numa estação como esta? Oh! muito pouco me ocupei com isso! Cura-te,
fausto! Vai sentir o mesmo que os miseráveis sentem, porque possas sobre eles derramar o teu supérfluo
e os céus mostrar mais justos.
EDGAR (dentro) - Pobre Tom! Braça e meia! Braça e meia!
(O bobo sai a correr da choupana.)
BOBO - Não entres aí, meu tio! Há um espírito lá dentro. Socorro! Socorro!
KENT - Dá-me a mão. Quem está lá?
BOBO - Um espírito! Um espírito! Ele disse que se chama o pobre Tom.
KENT - Quem és tu, que te pões a rosnar assim na palha? Vem para fora!
(Entra Edgar, disfarçado de demente.)
EDGAR - Afastai-vos, que o imigo me acompanha. Através do espinheiro sopra o vento; vê se te
aqueces em teu leito frio.
LEAR - Deste às tuas duas filhas tudo o que tinhas, para ficares desse jeito?
EDGAR - Quem dá alguma coisa para o pobre Tom? O maligno o levou através do fogo, através da
flama, através do vau e do redemoinho, através do lamaçal e do charco; pôs facas embaixo de seu
travesseiro e corda em sua cama; armou ratoeira em sua sopa; deixou-o orgulhoso por poder montar num
cavalo baio trotão, por cima das pontes de quatro polegadas, em perseguição da própria sombra, como
um traidor. Que sejam abençoados os teus cinco espíritos. Tom está com frio. Oh! do dê, do dê, do dê!
Que o céu te ampare contra os furacões, estrelas funestas e malefícios. Fazei alguma caridade ao pobre
Tom, que o demônio impuro atormenta. Poderia pegá-lo agora, e aqui, e ali outra vez, e aqui...
LEAR - Como! Suas filhas o trouxeram a isso? Nada te reservaste? Deste tudo?
BOBO - Não! Ele reservou para si um cobertor; caso contrário, teríamos do que nos envergonharmos.
LEAR - Que caiam sobre tuas filhas todas as misérias que impendem do ar e ameaçam os pecados dos
homens!
KENT - Senhor, ele não tem filhas.
LEAR - Morre, traidor! Pois nada poderia rebaixar de tal modo a natureza, senão filhas ingratas. Será
moda que os pais, depois de despedidos, tenham tão pouca pena de sua própria carne? Castigo judicioso,
que essa carne deu nascimento às filhas-pelicanas.
EDGAR - Pilicoc se achava empoleirado no monte Pilicoc! Alô! Alô! Oh oh!
BOBO - Esta noite gelada vai acabar fazendo de nós todos bobos ou loucos.
EDGAR - Acautela-te contra o maligno; obedece a teus pais; mantém tua palavra; não jures; não cometas
adultério com a esposa legítima do teu próximo; não enfeites tua morada com atavios vãos. Tom está
com frio.
LEAR - Que eras antes?
EDGAR - Um moço de servir, de coração e espírito altivos, que frisava os cabelos, trazia luvas no
chapéu, satisfazia a luxúria da patroa, perpetrando com ela o ato das trevas; fazia tantos juramentos
quantas palavras pronunciava, para violá-los ante a doce face do céu; um tipo que adormecia com planos
de libertinagem e acordava para pô-los em prática. Amava de coração o vinho, os dados, com a máxima
ternura; e com relação às mulheres, metia na massa o próprio turco; coração falso, ouvídos levianos,
mãos sanguinárias. Porco, na preguiça; raposa, na astúcia; lobo, na voracidade; cão, na raiva; leão, na
pilhagem. Não deixes que o ranger dos sapatos e o ruído das sedas entregues às mulheres teu pobre
coração. Mantém os pés fora dos bordéis, as mãos fora do colete, as pernas longe do livro do onzeneiro e
desafia o maligno. O vento frio ainda sopra através do espinheiro, gritando zum, mum, ha hô, no ni! ...
Delfim, meu filho, meu filho! Cessa! Deixa-o trotar!
(A tempestade continua.)
LEAR - Estarias melhor na sepultura do que enfrentando com o corpo descoberto estes extremos da
estação. Não é o homem mais do que isto? Considerai-o bem. Ao verme não deves a seda, ao animal o
abrigo, ao carneiro a lã e ao gato de algalia o perfume. Ah! Dos presentes, três somos adulterados; tu és a
coisa em si. O homem sem atavios não passa de um pobre animal, nu e fendido como tu. Fora, fora com
todos estes empréstimos! Vamos! Desabotoai-me aqui.
(Rasga as vestes.)
BOBO - Tio, por obséquio, fica quieto; a noite está muito ruim para nadarmos. Neste momento, um
pequeno fogo em campo grande faria o efeito do coração de um velho libertino: uma faiscazinha de nada,
e o resto do corpo, que nem gelo. Vê, aí vem vindo um fogo ambulante.
(Entra Gloster com uma tocha.)
EDGAR - É o demônio impuro Flibbertigibbet; chega com o toque de apagar fogo e ronda até ao
primeiro canto do galo; produz belidas e catarata, olho vesgo e beiço-de-lebre; faz embolorar o trigo
branco e atormenta a pobre criatura terrestre. Três vezes São Vital percorre os trilhos, e achando a
mula-sem-cabeça e os filhos, mandou que ali parasse e preito lhe prestasse. Sai logo, bruxa! Deixa limpa
a estrada!
KENT - Como passa Vossa Graça?
LEAR - Quem é?
KENT - Quem está aí? A quem procurais?
GLOSTER - Quem Sois? Como vos chamais?
EDGAR - O pobre Tom que se alimenta de rãs nadadoras, sapos, girinos, lagartixas e água; que na fúria
de seu coração, quando o inimigo imundo esbraveja, devora estrume de vaca como se fosse salada;
engole ratos velhos e cachorro pirento; bebe o manto verde do charco estagnado; que é chibateado de
paróquia em paróquia, posto no cepo ou na prisão; que já teve três mudas para o dorso, seis camisas para
o corpo, cavalo para montar e espada para carregar. Há sete anos que Tom só se conserva com ratazanas,
ratos e caterva. Tomai cuidado com o meu perseguidor. Fica quieto, Smulkin! Fica quieto, demônio!
GLOSTER - Como! Não tem Vossa Graça melhor companhia?
EDGAR - O príncipe das trevas é um gentil-homem; chama-se Modo e Mahu. GLOSTER - A tal ponto,
senhor, degenerados temos o sangue e a carne, que a odiar chegam a quem vida lhes deu.
EDGAR - O pobre Tom está com frio.
GLOSTER - Senhor, vinde comigo. Não se dobra meu dever às sentenças implacáveis de vossas filhas.
Muito embora tenham dado ordem para que eu fechasse a porta, a esta noite terrível entregando-vos,
ousei vir procurar-vos, porque possa levar-vos onde há fogo e mesa pronta.
LEAR - Primeiro permiti que a este filósofo dirija umas perguntas. Qual é a causa do trovão?
KENT - Aceitai, senhor, o invite que ele vos faz; à casa recolhei-vos.
LEAR - Uma palavra a este tebano sábio: em que vos aplicais?
EDGAR - Em fugir do demônio e matar piolho.
LEAR - Desejo vos pedir algo em segredo.
KENT - Insisti outra vez, senhor, com ele, para abrigar-se. Já revela indícios de que não tem bastante
firme o espírito.
(A tempestade continua.)
GLOSTER - Poderás censurá-lo? Suas filhas querem a morte dele. Ah! o bom Kent! Disse que tudo a dar
viria nisto. Pobre exilado! Asseveraste há pouco que o rei está ficando louco. Digo-te, que eu também
estou quase nesse ponto. Tive um filho, que se acha desde pouco banido do meu sangue. Contra a minha
vida tentou - agora mesmo, agora! - Amava-o como pai tão ternamente jamais ao filho amou. Para ser
franco contigo, a dor me perturbou o espírito.
(A tempestade continua.)
Que noite! Peço, instante, a Vossa Graça...
LEAR - Peço perdão, senhor. Nobre filósofo, fazei-nos companhia.
EDGAR - Tom está com frio.
GLOSTER - Amigo, vem para a cabana; aquece-te.
LEAR - Entremos todos.
KENT - Por aqui, milorde.
LEAR - Junto com ele; quero ficar sempre perto do meu filósofo.
KENT - Fazei-lhe nisso a vontade, bom senhor, deixando-o levar esse homem.
GLOSTER - Bem; cuidai vós dele.
KENT - Vamos, amigo; vem também conosco.
LEAR - Vamos, bom ateniense.
GLOSTER - Quietos! Vamos!
EDGAR - O cavaleiro Rolão chegou perto do bastião dizendo fim, fu e fão! Sinto cheiro de bretão.
(Saem.)
KENT - É aqui, senhor. Meu bom senhor, entrai. É por demais severa a tirania da noite descoberta, para
as forças de nossa natureza.
(A tempestade continua.)
LEAR - Não; afasta-te! Desejo ficar só.
KENT - Entrai aqui, senhor.
LEAR - Quereis partir-me o coração?
KENT - Primeiro partiria o meu. Bondoso senhor, entrai.
LEAR - Estais fazendo grande cabedal desta chuva revoltada, que nos molha até os ossos. É que a sentes
dessa maneira. Porém quando a doença maior penetra, as outras não se sentem. Se corres do urso, mas
em tua fuga fores bater nas ondas rugidoras, voltarás frente para a goela dele. Livre o espírito, o corpo é
delicado. A tempestade que na mente eu trago nada me deixa perceber por meio dos sentidos, afora o que
ali bate: a ingratidão filial. Não fora o mesmo, se a boca decepar quisesse a mão que até ela se alça para
alimentá-la? Mas saberei tomar cabal vingança. Cessarei de chorar. Fechar-me a porta numa noite como
esta! Mais! Despeja, que hei de agüentar! E numa noite assim! Ah Goneril! Regane! Vosso velho pai, tão
bondoso, que vos dera tudo com franco coração! Oh! A loucura vem desse lado. Vamos evitá-la. Sobre
isso, basta.
KENT - Bem, milorde; entremos.
LEAR - Não; por favor, primeiro tu; procura tua comodidade. Este aguaceiro me impede de cuidar de
muitas coisas que muito maior dor me causariam. Mas vou entrar. (Ao bobo.) Menino, vai na frente.
Pobreza sem abrigo... Entra, entra logo. Rezo primeiro; dormirei depois.
(O bobo entra na choupana.)
Onde quer que estejais, pobres sem roupa, que os golpes suportais desta impiedosa tempestade, dizei-me:
de que modo vossos flancos mirrados e as cabeças desprotegidas, vossos trapos ricos em furos e janelas
hão de o corpo vos proteger numa estação como esta? Oh! muito pouco me ocupei com isso! Cura-te,
fausto! Vai sentir o mesmo que os miseráveis sentem, porque possas sobre eles derramar o teu supérfluo
e os céus mostrar mais justos.
EDGAR (dentro) - Pobre Tom! Braça e meia! Braça e meia!
(O bobo sai a correr da choupana.)
BOBO - Não entres aí, meu tio! Há um espírito lá dentro. Socorro! Socorro!
KENT - Dá-me a mão. Quem está lá?
BOBO - Um espírito! Um espírito! Ele disse que se chama o pobre Tom.
KENT - Quem és tu, que te pões a rosnar assim na palha? Vem para fora!
(Entra Edgar, disfarçado de demente.)
EDGAR - Afastai-vos, que o imigo me acompanha. Através do espinheiro sopra o vento; vê se te
aqueces em teu leito frio.
LEAR - Deste às tuas duas filhas tudo o que tinhas, para ficares desse jeito?
EDGAR - Quem dá alguma coisa para o pobre Tom? O maligno o levou através do fogo, através da
flama, através do vau e do redemoinho, através do lamaçal e do charco; pôs facas embaixo de seu
travesseiro e corda em sua cama; armou ratoeira em sua sopa; deixou-o orgulhoso por poder montar num
cavalo baio trotão, por cima das pontes de quatro polegadas, em perseguição da própria sombra, como
um traidor. Que sejam abençoados os teus cinco espíritos. Tom está com frio. Oh! do dê, do dê, do dê!
Que o céu te ampare contra os furacões, estrelas funestas e malefícios. Fazei alguma caridade ao pobre
Tom, que o demônio impuro atormenta. Poderia pegá-lo agora, e aqui, e ali outra vez, e aqui...
LEAR - Como! Suas filhas o trouxeram a isso? Nada te reservaste? Deste tudo?
BOBO - Não! Ele reservou para si um cobertor; caso contrário, teríamos do que nos envergonharmos.
LEAR - Que caiam sobre tuas filhas todas as misérias que impendem do ar e ameaçam os pecados dos
homens!
KENT - Senhor, ele não tem filhas.
LEAR - Morre, traidor! Pois nada poderia rebaixar de tal modo a natureza, senão filhas ingratas. Será
moda que os pais, depois de despedidos, tenham tão pouca pena de sua própria carne? Castigo judicioso,
que essa carne deu nascimento às filhas-pelicanas.
EDGAR - Pilicoc se achava empoleirado no monte Pilicoc! Alô! Alô! Oh oh!
BOBO - Esta noite gelada vai acabar fazendo de nós todos bobos ou loucos.
EDGAR - Acautela-te contra o maligno; obedece a teus pais; mantém tua palavra; não jures; não cometas
adultério com a esposa legítima do teu próximo; não enfeites tua morada com atavios vãos. Tom está
com frio.
LEAR - Que eras antes?
EDGAR - Um moço de servir, de coração e espírito altivos, que frisava os cabelos, trazia luvas no
chapéu, satisfazia a luxúria da patroa, perpetrando com ela o ato das trevas; fazia tantos juramentos
quantas palavras pronunciava, para violá-los ante a doce face do céu; um tipo que adormecia com planos
de libertinagem e acordava para pô-los em prática. Amava de coração o vinho, os dados, com a máxima
ternura; e com relação às mulheres, metia na massa o próprio turco; coração falso, ouvídos levianos,
mãos sanguinárias. Porco, na preguiça; raposa, na astúcia; lobo, na voracidade; cão, na raiva; leão, na
pilhagem. Não deixes que o ranger dos sapatos e o ruído das sedas entregues às mulheres teu pobre
coração. Mantém os pés fora dos bordéis, as mãos fora do colete, as pernas longe do livro do onzeneiro e
desafia o maligno. O vento frio ainda sopra através do espinheiro, gritando zum, mum, ha hô, no ni! ...
Delfim, meu filho, meu filho! Cessa! Deixa-o trotar!
(A tempestade continua.)
LEAR - Estarias melhor na sepultura do que enfrentando com o corpo descoberto estes extremos da
estação. Não é o homem mais do que isto? Considerai-o bem. Ao verme não deves a seda, ao animal o
abrigo, ao carneiro a lã e ao gato de algalia o perfume. Ah! Dos presentes, três somos adulterados; tu és a
coisa em si. O homem sem atavios não passa de um pobre animal, nu e fendido como tu. Fora, fora com
todos estes empréstimos! Vamos! Desabotoai-me aqui.
(Rasga as vestes.)
BOBO - Tio, por obséquio, fica quieto; a noite está muito ruim para nadarmos. Neste momento, um
pequeno fogo em campo grande faria o efeito do coração de um velho libertino: uma faiscazinha de nada,
e o resto do corpo, que nem gelo. Vê, aí vem vindo um fogo ambulante.
(Entra Gloster com uma tocha.)
EDGAR - É o demônio impuro Flibbertigibbet; chega com o toque de apagar fogo e ronda até ao
primeiro canto do galo; produz belidas e catarata, olho vesgo e beiço-de-lebre; faz embolorar o trigo
branco e atormenta a pobre criatura terrestre. Três vezes São Vital percorre os trilhos, e achando a
mula-sem-cabeça e os filhos, mandou que ali parasse e preito lhe prestasse. Sai logo, bruxa! Deixa limpa
a estrada!
KENT - Como passa Vossa Graça?
LEAR - Quem é?
KENT - Quem está aí? A quem procurais?
GLOSTER - Quem Sois? Como vos chamais?
EDGAR - O pobre Tom que se alimenta de rãs nadadoras, sapos, girinos, lagartixas e água; que na fúria
de seu coração, quando o inimigo imundo esbraveja, devora estrume de vaca como se fosse salada;
engole ratos velhos e cachorro pirento; bebe o manto verde do charco estagnado; que é chibateado de
paróquia em paróquia, posto no cepo ou na prisão; que já teve três mudas para o dorso, seis camisas para
o corpo, cavalo para montar e espada para carregar. Há sete anos que Tom só se conserva com ratazanas,
ratos e caterva. Tomai cuidado com o meu perseguidor. Fica quieto, Smulkin! Fica quieto, demônio!
GLOSTER - Como! Não tem Vossa Graça melhor companhia?
EDGAR - O príncipe das trevas é um gentil-homem; chama-se Modo e Mahu. GLOSTER - A tal ponto,
senhor, degenerados temos o sangue e a carne, que a odiar chegam a quem vida lhes deu.
EDGAR - O pobre Tom está com frio.
GLOSTER - Senhor, vinde comigo. Não se dobra meu dever às sentenças implacáveis de vossas filhas.
Muito embora tenham dado ordem para que eu fechasse a porta, a esta noite terrível entregando-vos,
ousei vir procurar-vos, porque possa levar-vos onde há fogo e mesa pronta.
LEAR - Primeiro permiti que a este filósofo dirija umas perguntas. Qual é a causa do trovão?
KENT - Aceitai, senhor, o invite que ele vos faz; à casa recolhei-vos.
LEAR - Uma palavra a este tebano sábio: em que vos aplicais?
EDGAR - Em fugir do demônio e matar piolho.
LEAR - Desejo vos pedir algo em segredo.
KENT - Insisti outra vez, senhor, com ele, para abrigar-se. Já revela indícios de que não tem bastante
firme o espírito.
(A tempestade continua.)
GLOSTER - Poderás censurá-lo? Suas filhas querem a morte dele. Ah! o bom Kent! Disse que tudo a dar
viria nisto. Pobre exilado! Asseveraste há pouco que o rei está ficando louco. Digo-te, que eu também
estou quase nesse ponto. Tive um filho, que se acha desde pouco banido do meu sangue. Contra a minha
vida tentou - agora mesmo, agora! - Amava-o como pai tão ternamente jamais ao filho amou. Para ser
franco contigo, a dor me perturbou o espírito.
(A tempestade continua.)
Que noite! Peço, instante, a Vossa Graça...
LEAR - Peço perdão, senhor. Nobre filósofo, fazei-nos companhia.
EDGAR - Tom está com frio.
GLOSTER - Amigo, vem para a cabana; aquece-te.
LEAR - Entremos todos.
KENT - Por aqui, milorde.
LEAR - Junto com ele; quero ficar sempre perto do meu filósofo.
KENT - Fazei-lhe nisso a vontade, bom senhor, deixando-o levar esse homem.
GLOSTER - Bem; cuidai vós dele.
KENT - Vamos, amigo; vem também conosco.
LEAR - Vamos, bom ateniense.
GLOSTER - Quietos! Vamos!
EDGAR - O cavaleiro Rolão chegou perto do bastião dizendo fim, fu e fão! Sinto cheiro de bretão.
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