William Shakespeare, Sonho de uma noite de verão,ATO I,Cena I
Atenas. O palácio de Teseu. Entram Teseu, Hipólita, Filóstrato e pessoas do séqüito.
TESEU - Depressa, bela Hipólita, aproxima-se a hora de nossas núpcias. Quatro dias felizes nos trarão
uma outra lua. Mas, para mim, como esta lua velha se extingue lentamente! Ela retarda meus anelos, tal
como o faz madrasta ou viúva que retém os bens do herdeiro.
HIPÓLITA - Mergulharão depressa quatro dias na negra noite; quatro noites, presto, farão escoar o
tempo como em sonhos. E então a lua que, como arco argênteo. no céu ora se encurva, verá a noite
solene do esposório.
TESEU - Vai, Filóstrato, concita os atenienses para a festa, desperta o alegre e buliçoso espírito da
alegria, despacha para os ritos fúnebres a tristeza, que essa pálida hóspede não vai bem em nossas
pompas.
(Sai Filóstrato.)
De espada em mão te fiz a corte, Hipólita; o coração te conquistei à custa de violência; mas quero
desposar-te com música de tom mais auspicioso, com pompas, com triunfos, com festejos.
(Entram Egeu, Hérmia, Lisandro e Demétrio.)
EGEU - Salve, Teseu, nosso famoso duque!
TESEU - Bom Egeu, obrigado. Que há de novo?
EGEU - Cheio de dor, venho fazer-te queixa de minha própria filha, Hérmia querida. Vem para cá,
Demétrio. Nobre lorde, tem este homem o meu consentimento para casar com ela. Agora avança.
Lisandro. E este, meu príncipe gracioso, o peito de Hérmia traz enfeitiçado. Sim, Lisandro, tu mesmo,
com tuas rimas! Prendas de amor com ela tu trocaste; sob a sua janela, à luz da lua, cantaste-lhe canções
com voz fingida, versos de amor fingido, e cativaste as impressões de sua fantasia com cachos de cabelo,
anéis, brinquedos, ramalhetes, docinhos, ninharias, mensageiros de efeito decisivo nas jovens ainda
brandas. Com astúcia, à minha filha o coração furtaste, mudaste-lhe a filial obediência em dura teimosia.
Por tudo isso, meu mui gracioso duque, se ela, agora. diante de Vossa Graça, com Demétrio não quiser se
casar, eu me reporto à antiga lei de Atenas que confere aos pais direito de dispor dos filhos. É minha
filha, posso dispor dela. Ou a entregarei para este cavalheiro, ou para a morte, o que, sem mais delongas,
segundo nossa lei, deve ser feito.
TESEU - Hérmia, que respondeis? Sede prudente, bela menina. Como a um deus devíeis ver sempre
vosso pai, um deus que vossa formosura plasmou, pois sois apenas a cera a que ele conferiu a forma,
restando-lhe o poder de conservá-la, ou de esfazer a imagem. É Demétrio cavalheiro mui digno.
HÉRMIA - E assim Lisandro.
TESEU - Sim, em si mesmo; mas uma vez que ele com vosso pai não conta, deveríeis o outro considerar
como o mais digno.
HÉRMIA - Ah, se meu pai o visse com meus olhos!
TESEU - Com o juízo dele é que razoável fora que vossos olhos vissem.
HÉRMIA - Vossa Graça me perdoe, mas não sei que força oculta me dá tanta ousadia, nem compreendo
como a minha modéstia me consente defender minha causa em tal presença. Suplico a Vossa Graça
declarar-me o que de pior me tocará por sorte, se eu me negar a desposar Demétrio.
TESEU - Ou morrer morte crua, ou, para sempre, sair da sociedade. Por tudo isso, formosa Hérmia, falai
com vossas próprias aspirações, pensai na mocidade, examinai a fundo vosso sangue e vede se é possível
suportardes um hábito de freira, para o caso de recusardes a paterna escolha, ficar encarcerada para
sempre num convento sombrio, como estéril irmã passar a vida, hinos dolentes cantar à lua infrutuosa e
fria. Abençoados três vezes os que podem, dessa maneira, dominar o sangue e a peregrinação fazer
virgínea. Mas muito mais feliz na terra é a rosa que destilar se deixa do que quantas no espinho virgem
crescem, vivem, morrem em sua solitária beatitude.
HÉRMIA - Assim crescer prefiro, meu bom lorde. viver e perecer, a ver os sacros privilégios de minha
mocidade em poder de um senhor, cujo aborrido jugo minha alma do íntimo repele.
TESEU - Refleti mais um pouco. Na outra lua quando tiver de ser selado o liame sempiterno entre mim e
a minha amada - nesse dia tereis de decidir-vos ou a morrer por desacato franco à vontade paterna, ou a
ser esposa de Demétrio, ou a fazer no altar de Diana juramento de eterna austeridade num viver virginal e
solitário.
DEMÉTRIO - Hérmia, concorda; e tu, Lisandro, deixa da pretensão de opor teus fracos títulos ao meu
direito certo e indiscutível.
LISANDRO - Do pai de Hérmia, Demétrio, o afeto tendes; casai com ele, então; seja ela minha.
EGEU - Lisandro zombador, é bem verdade que o meu amor é dele, e pois vai dar-lhe tudo quanto
possuo: Hérmia pertence-me; todo o direito que sobre ela tenho a Demétrio o transfiro.
LISANDRO - Eu sou, milorde. de família tão nobre quanto a dele; de patrimônio igual somos herdeiros;
maior é o meu amor. Quanto aos favores da fortuna, mimoso sou como ele, se não mais. Finalmente, o
que suplanta todas essas vanglórias: sou amado da irresistível Hérmia. Por que causa não me bater em
prol do meu direito? Demétrio - ao rosto lanço-lhe isto - a filha de Nedar namorou e a alma ganhou-lhe, e
ela, coitada, piamente o adora, adora até quase à loucura a este homem volúvel e culpado.
TESEU - Sim, já ouvira falar por alto nisso e pretendia conversar com Demétrio a esse respeito; mas por
excesso de negócios próprios não me lembrou fazê-lo. Mas, Demétrio, vinde comigo; e vós, também,
Egeu. Tenho de vos dizer duas palavras muito em particular. No que respeita vossa pessoa, irresistível
Hérmia, fazei esforço para que os caprichos deixeis de acordo com o querer paterno; se não, será forçoso
vos dobrardes às leis de Atenas que, de nenhum modo, podemos atenuar: ou morte crua, ou o juramento
de viver solteira. Minha Hipólita, vamos. Que se passa contigo. meu amor? Vinde conosco, Demétrio e
Egeu; necessidade tenho de ambos vós, não somente para a festa, como também para tratar convosco de
algo que aos dois de perto diz respeito.
EGEU - Alegres e obedientes vos seguimos.
(Saem Teseu, Hipólita, Egeu, Demétrio e séqüito.)
LISANDRO - Então, minha querida, por que as faces tão pálidas assim? Qual o motivo de murcharem
tão rápido essas rosas?
HÉRMIA - Talvez por falta da água que lhes viesse da tempestade dos meus próprios olhos.
LISANDRO - Oh Deus! Por tudo quanto tenho lido ou das lendas e histórias escutado, em tempo algum
teve um tranqüilo curso o verdadeiro amor. Ou era grande do sangue a diferença...
HÉRMIA - Oh sofrimento! Nascer no alto e aceitar o cativeiro!
LISANDRO - ... ou mui disparatadas as idades...
HÉRMIA - Oh dor! Unir-se a mocidade às cãs!
LISANDRO - ... ou tudo os pais, sozinhos, decidiam...
HÉRMIA - Não há maior inferno: estranhos olhos para escolher o amor!
LISANDRO - ... ou, quando havia simpatia na escolha, a guerra, as doenças, e a morte, conjuradas, o
assaltavam, qual simples som deixando-o, transitório, tão curto corno um sonho, movediço como uma
sombra instável, tão ligeiro como raio de noite tempestuosa que, de súbito, rasga o céu e a terra, mas que
antes de podermos dizer "Vede!" pelas fauces das trevas é tragado. Tudo o que brilha, assim, em ruína
acaba.
HÉRMIA - Se sempre contrariados foram todos os amantes sinceros, é que o próprio destino o determina
desse modo. Que nos ensine, pois, a ser pacientes a nossa provação, já que é desdita fatal dos namorados,
como os sonhos, pensamentos, suspiros, dores, lágrimas, do pobre amor são companheiros certos.
LISANDRO - Isso consola. Porém, Hérmia, escuta-me: a sete léguas, só, de Atenas mora minha tia, uma
viúva muito rica que, por filhos não ter, me considera seu herdeiro exclusivo. Em casa dela, minha
Hérmia encantadora, poderemos casar-nos, por ficarmos, então, fora das rigorosas leis dos atenienses. Se
me amas, foge da mansão paterna na noite de amanhã. No bosquezinho a uma légua distante da cidade
deverás encontrar-me, justamente onde uma vez te vi em companhia de Helena a realizar os sacros ritos
de uma manhã de maio.
HÉRMIA - Meu bondoso Lisandro, eu juro pelo mais potente arco do deus Cupido, por sua seta melhor
de penas de ouro, pelas meigas pombas de Vênus, pelo que une as almas e confere ao amor virentes
palmas, pelas chamas em que se abrasou Dido após abandoná-la o Teucro infido, pelas juras que a todos
os instantes violado têm os homens inconstantes, mais do que numerosas, infinitas, do que as que foram
por mulheres ditas: amanhã, sem faltar, no grato abrigo de que falamos, estarei contigo.
LISANDRO - Não faltes à palavra. Ai vem Helena.
(Entra Helena.)
HÉRMIA - Formosa Helena, por que tanta pressa?
HELENA - Eu, formosa? Desmente-te depressa. Ama Demétrio a tua formosura; nesses olhos encontra a
luz mais pura; acha ele em tua voz mais melodia do que o pastor na doce cotovia, quando o trigo nos
campos enverdece e o pilriteiro de botões se tece. Se, como as doenças, fosse contagiosa também a
formosura, eu, jubilosa, me fizera infectar, ó Hérmia bela! de teus encantos, sem maior cautela; com tua
voz ficara nos ouvidos; teu olhar, nestes olhos combalidos; tua fala de música esquisita consolidar viria a
minha dita. Se o mundo fosse meu, ficando fora Demétrio, de todo ele, sem demora, me desfizera, caso
conseguisse tua beleza obter, tua meiguice, porque sendo, como és, o meu contraste, seu coração bondoso conquistaste.
HÉRMIA - Faço-lhe cara feia, ele me adora.
HELENA - Tivesse eu risos feios desde agora!
HÉRMIA - Digo-lhe doestos, e ele amor me vota.
HELENA - Quem me dera na voz tão doce nota!
HÉRMIA - Vai de par seu ardor com o meu desdém.
HELENA - Com o seu desprezo o meu amor também.
HÉRMIA - De tal loucura a culpa não é minha.
HELENA - É de tua beleza. Fosse a minha!
HÉRMIA - Coragem! Por mais tempo ele não há de fazer juras com tal tenacidade, que eu e Lisandro, há
um momento, apenas, resolvemos fugir, sem mais, de Atenas. Para mim era Atenas o paraíso, quando
não me encantara o seu sorriso. Como é terrível este fogo interno para, assim, transformar o céu no
inferno!
LISANDRO - Não queremos, Helena, ocultar nada: amanhã, quando Febe a luz prateada nas águas
refletir, cobrindo a relva de pérolas e encanto dando à selva, hora mais que propícia para a fuga de quem,
como nós dois, o amor conjuga, eu e Hérmia combinamos da cidade deixar as portas, rumo à liberdade.
HÉRMIA - Naquele bosque em que, sobre canteiros de primavera, instantes tão fagueiros passamos
tantas vezes, atenuando com nossas confissões este ardor brando, eu e Lisandro, que minha alma adora,
nos reuniremos ao raiar da aurora. Se em Atenas não temos pouso amigo, alhures acharemos grato
abrigo. Reza por nós, minha querida Helena, e com Demétrio encontres vida amena. Cumpre, Lisandro,
agora o prometido por mais que te angustie o dolorido coração: do alimento dos amantes privaremos a
vista alguns instantes.
LISANDRO - O voto hei de cumprir, minha Hérmia bela.
(Sai Hérmia.)
Formosa Helena, adeus. Como eu a ela, possa Demétrio ser-te dedicado, transformando em ventura o teu
cuidado.
(Sai.)
HELENA - Como é possível que a felicidade possa reinar em tal desigualdade! Em toda Atenas sou
considerada tão formosa quanto Hérmia; mas a nada quer Demétrio atender. Ele, somente, ver não pode
o que enxerga toda a gente. Erra ele ao se deixar pender do lindo semblante de Hérmia, tal como eu,
caindo em igual erro, prendo o coração na sua compostura sem senão. As coisas baixas, sem valia
alguma, de crassas deixa o Amor leves qual pluma. O Amor não vê com os olhos, mas com a mente; por
isso é alado, e cego, e tão potente. Nunca deu provas de apurado gosto; cego e de asas: emblema de
desgosto. Eterna criança: eis como é apelidado, por ser sempre na escolha malogrado. Como os meninos
quebram juramentos, perjura o Amor a todos os momentos. Assim Demétrio, quando Hérmia não via, me
granizava juras noite e dia; mas ao calor do seu formoso riso dissolveu-se de súbito o granizo. Da
formosa Hérmia vou contar-lhe a fuga. É certeza: no bosque ele madruga, para segui-la. A mim essa
notícia vai ensejar de vê-lo a hora propícia. Se o vir na ida e na volta, de corrida, feliz me considero e
enriquecida.
(Sai.)
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ATO I,Cena I
William Shakespeare - Textos, Poesias e Frases:
amor,
helena,
lisandro,
olhos,
Sonho de uma noite de verão
ATO II,Cena I
MACBETH,William Shakespeare,ATO II,Cena I
Inverness
Pátio no interior do castelo
Entram Banquo e Fleance, precedidos de um criado com uma tocha.
BANQUO - Quanto da noite já será, menino?
FLEANCE - Não ouvi bater horas, mas a lua já se escondeu.
BANQUO - Ela se esconde às doze.
FLEANCE - Penso, senhor, que será mais do que isso.
BANQUO - Toma aqui minha espada; Há economia no céu; todas as luzes se apagaram; Fica também com isto; Em mim se exerce uma pressão pesada como chumbo; No entretanto, quisera não dormir.
Detende em mim, poderes criadores, os pensamentos maus que a natureza permite aos que repousam.
(Entra Macbeth, acompanhado de criado, com uma tocha.)
Quem vem lá?
MACBETH - Um amigo.
BANQUO - Como, senhor! Ainda estais de pé? O rei já foi deitar-se; revelava insólita alegria, tendo
enchido de grossos cabedais vossos celeiros; Saúda vossa esposa, oferecendo-lhe este diamante, como à
mais bondosa das hospedeiras foi-se para o quarto com um contentamento sem limites.
MACBETH - Tomada de surpresa, nossa boa vontade se mostrou serva da faltaSe não, teria inteira
liberdade.
BANQUO - Tudo vai bem; Sonhei na última noite com as três irmãs fatais; Muito verídicas com relação
a vós se revelaram.
MACBETH - Não penso nelas; no entretanto, quando tivermos alguma hora favorável dedicaremos a
isso umas palavras, se o tempo vos sobrar.
BANQUO - Com todo o gosto.
MACBETH - Se no tempo oportuno concordardes com meu modo de ver, ganhareis honra.
BANQUO - Se não vier a perdê-la no propósito de fazê-la aumentar, puro deixando-me o coração e
límpida a obediência, ouvir-vos-ei de grado.
MACBETH - Bom repouso até esse dia.
BANQUO - Muito agradecido, meu senhor; iguais votos vos dirijo.
(Saem Banquo e Fleance.)
MACBETH - Vai dizer à senhora que me faça sinal com o sino, quando estiver pronta minha bebida.
Depois disso, deita-te.
(Sai o criado.)
Será um punhal que vejo em minha frente com o cabo a oferecer-se-me? Peguemo-lo, não te apanhei ainda; no entretanto, vejo-te sempre, não serás sensível, visão funesta, ao tato como à vista? Ou de um punhal não passas, simplesmente, do pensamento, uma criação fictícia, procedente do cérebro escaldante? Percebo-te, no entanto, e tão palpável como este que ora empunho; Mostras-me a estrada que seguir eu devo e o instrumento que a usar serei forçado; Se meus olhos joguete não se mostram de meus
outros sentidos, sobrepujam todos eles, ainda te percebo, manchado o cabo e a lâmina de gotas de sangue que antes não estava neles não existe tal coisa; é o sanguinário projeto que a meus olhos toma forma em metade do mundo, neste instante, parece estar sem vida a natureza; os sonhos maus iludem sob as pálpebras o sono bem velado; feiticeiras o rito exercem singular da pálida Hécate; o esquálido assassino, posto de alerta pela sua sentinela, o lobo, cujo uivar lhe serve de horas, com passo de ladrão e o andar furtivo de Tarquínio, da meta se aproxima, tal qual fantasma; Ó terra forte e sólida, não ouças o barulho de meus passos, seja qual for a direção que tomem, porque as próprias pedrinhas não propalem
para onde eu vou e dissipar não façam o horror desta hora que tão bem lhe fica eu ameaço; ele vive; congelada pelo meu sopro a ação se torna em nada.
(O sino soa.)
Já vou; está feito; O sino me convida; Duncan, não ouças; é um chamado eterno que para o céu te leva ou
para o inferno.
(Sai.)
Inverness
Pátio no interior do castelo
Entram Banquo e Fleance, precedidos de um criado com uma tocha.
BANQUO - Quanto da noite já será, menino?
FLEANCE - Não ouvi bater horas, mas a lua já se escondeu.
BANQUO - Ela se esconde às doze.
FLEANCE - Penso, senhor, que será mais do que isso.
BANQUO - Toma aqui minha espada; Há economia no céu; todas as luzes se apagaram; Fica também com isto; Em mim se exerce uma pressão pesada como chumbo; No entretanto, quisera não dormir.
Detende em mim, poderes criadores, os pensamentos maus que a natureza permite aos que repousam.
(Entra Macbeth, acompanhado de criado, com uma tocha.)
Quem vem lá?
MACBETH - Um amigo.
BANQUO - Como, senhor! Ainda estais de pé? O rei já foi deitar-se; revelava insólita alegria, tendo
enchido de grossos cabedais vossos celeiros; Saúda vossa esposa, oferecendo-lhe este diamante, como à
mais bondosa das hospedeiras foi-se para o quarto com um contentamento sem limites.
MACBETH - Tomada de surpresa, nossa boa vontade se mostrou serva da faltaSe não, teria inteira
liberdade.
BANQUO - Tudo vai bem; Sonhei na última noite com as três irmãs fatais; Muito verídicas com relação
a vós se revelaram.
MACBETH - Não penso nelas; no entretanto, quando tivermos alguma hora favorável dedicaremos a
isso umas palavras, se o tempo vos sobrar.
BANQUO - Com todo o gosto.
MACBETH - Se no tempo oportuno concordardes com meu modo de ver, ganhareis honra.
BANQUO - Se não vier a perdê-la no propósito de fazê-la aumentar, puro deixando-me o coração e
límpida a obediência, ouvir-vos-ei de grado.
MACBETH - Bom repouso até esse dia.
BANQUO - Muito agradecido, meu senhor; iguais votos vos dirijo.
(Saem Banquo e Fleance.)
MACBETH - Vai dizer à senhora que me faça sinal com o sino, quando estiver pronta minha bebida.
Depois disso, deita-te.
(Sai o criado.)
Será um punhal que vejo em minha frente com o cabo a oferecer-se-me? Peguemo-lo, não te apanhei ainda; no entretanto, vejo-te sempre, não serás sensível, visão funesta, ao tato como à vista? Ou de um punhal não passas, simplesmente, do pensamento, uma criação fictícia, procedente do cérebro escaldante? Percebo-te, no entanto, e tão palpável como este que ora empunho; Mostras-me a estrada que seguir eu devo e o instrumento que a usar serei forçado; Se meus olhos joguete não se mostram de meus
outros sentidos, sobrepujam todos eles, ainda te percebo, manchado o cabo e a lâmina de gotas de sangue que antes não estava neles não existe tal coisa; é o sanguinário projeto que a meus olhos toma forma em metade do mundo, neste instante, parece estar sem vida a natureza; os sonhos maus iludem sob as pálpebras o sono bem velado; feiticeiras o rito exercem singular da pálida Hécate; o esquálido assassino, posto de alerta pela sua sentinela, o lobo, cujo uivar lhe serve de horas, com passo de ladrão e o andar furtivo de Tarquínio, da meta se aproxima, tal qual fantasma; Ó terra forte e sólida, não ouças o barulho de meus passos, seja qual for a direção que tomem, porque as próprias pedrinhas não propalem
para onde eu vou e dissipar não façam o horror desta hora que tão bem lhe fica eu ameaço; ele vive; congelada pelo meu sopro a ação se torna em nada.
(O sino soa.)
Já vou; está feito; O sino me convida; Duncan, não ouças; é um chamado eterno que para o céu te leva ou
para o inferno.
(Sai.)
ROMEU E JULIETA, ATO II, Cena II
O mesmo. Jardim de Capuleto. Entra Romeu.
ROMEU - Só ri das cicatrizes quem ferida nunca sofreu no corpo.
(Julieta aparece na janela.)
Mas silêncio! Que luz se escoa agora da janela? Será Julieta o sol daquele oriente? Surge, formoso sol, e
mata a lua cheia de inveja, que se mostra pálida e doente de tristeza, por ter visto que, como serva, és
mais formosa que ela. Deixa, pois, de servi-la; ela é invejosa. Somente os tolos usam sua túnica de vestal,
verde e doente; joga-a fora. Eis minha dama. Oh, sim! é o meu amor. Se ela soubesse disso! Ela fala;
contudo, não diz nada. Que importa? Com o olhar está falando. Vou responder-lhe. Não; sou muito
ousado; não se dirige a mim: duas estrelas do céu, as mais formosas, tendo tido qualquer ocupação, aos
olhos dela pediram que brilhassem nas esferas, até que elas voltassem. Que se dera se ficassem lá no alto
os olhos dela, e na sua cabeça os dois luzeiros? Suas faces nitentes deixariam corridas as estrelas, como o
dia faz com a luz das candeias, e seus olhos tamanha luz no céu espalhariam, que os pássaros, despertos,
cantariam. Vede como ela apoia o rosto à mão. Ah! se eu fosse uma luva dessa mão, para poder tocar
naquela face!
JULIETA - Ai de mim!
ROMEU - Oh, falou! Fala de novo, anjo brilhante, porque és tão glorioso para esta noite, sobre a minha
fronte, como o emissário alado das alturas ser poderia para os olhos brancos e revirados dos mortais
atônitos, que, para vê-lo, se reviram, quando montado passa nas ociosas nuvens e veleja no seio do ar
sereno.
JULIETA - Romeu, Romeu! Ah! por que és tu Romeu? Renega o pai, despoja-te do nome; ou então, se
não quiseres, jura ao menos que amor me tens, porque uma Capuleto deixarei de ser logo.
ROMEU (à parte) - Continuo ouvindo-a mais um pouco, ou lhe respondo?
JULIETA - Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não
fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença
ao corpo. Sê outro nome. Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação
teria igual perfume. Assim Romeu, se não tivesse o nome de Romeu, conservara a tão preciosa perfeição
que dele é sem esse título. Romeu, risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo,
fica comigo inteira.
ROMEU - Sim, aceito tua palavra. Dá-me o nome apenas de amor, que ficarei rebatizado. De agora em
diante não serei Romeu.
JULIETA - Quem és tu que, encoberto pela noite, entras em meu segredo?
ROMEU - Por um nome não sei como dizer-te quem eu seja. Meu nome, cara santa, me é odioso, por ser
teu inimigo; se o tivesse diante de mim, escrito, o rasgaria.
JULIETA - Minhas orelhas ainda não beberam cem palavras sequer de tua boca, mas reconheço o tom.
Não és Romeu, um dos Montecchios?
ROMEU - Não, bela menina; nem um nem outro, se isso te desgosta.
JULIETA - Dize-me como entraste e porque vieste. Muito alto é o muro do jardim, difícil de escalar,
sendo o ponto a própria morte - se quem és atendermos - caso fosses encontrado por um dos meus
parentes.
ROMEU - Do amor as lestes asas me fizeram transvoar o muro, pois barreira alguma conseguirá deter do
amor o curso, tentando o amor tudo o que o amor realiza. Teus parentes, assim, não poderiam desviar-me
do propósito.
JULIETA - No caso de seres visto, poderão matar-te.
ROMEU - Ai! Em teus olhos há maior perigo do que em vinte punhais de teus parentes. Olha-me com
doçura, e é quanto basta para deixar-me à prova do ódio deles.
JULIETA - Por nada deste mundo desejara que fosses visto aqui.
ROMEU - A capa tenho da noite para deles ocultar-me. Basta que me ames, e eles que me vejam! Prefiro
ter cerceada logo a vida pelo ódio deles, a ter morte longa, faltando o teu amor.
JULIETA - Com quem tomaste informações para até aqui chegares?
ROMEU - Com o amor, que a inquirir me deu coragem;. deu-me conselhos e eu lhe emprestei olhos. Não
sou piloto; mas se te encontrasses tão longe quanto a praia mais extensa que o mar longínquo banha,
aventurara-me para obter tão preciosa mercancia.
JULIETA - Sabe-lo bem: a máscara da noite me cobre agora o rosto; do contrário, um rubor virginal me
pintaria, de pronto, as faces, pelo que me ouviste dizer neste momento. Desejara - oh! minto! -
retratar-me do que disse. Mas fora! fora com as formalidades! Amas-me? Sei que vais dizer-me "sim", e
creio no que dizes. Se o jurares, porém, talvez te mostres inconstante, pois dos perjúrios dos amantes,
dizem, Jove sorri. Ó meu gentil Romeu! Se amas, proclama-o com sinceridade; ou se pensas, acaso, que
foi fácil minha conquista, vou tornar-me ríspida, franzir o sobrecenho e dizer "não", porque me faças
novamente a corte. Se não, por nada, nada deste mundo. Belo Montecchio, é certo: estou perdida, louca
de amor; daí poder pensares que meu procedimento é assaz leviano; mas podeis crer-me, cavalheiro, que
hei de mais fiel mostrar-me do que quantas têm bastante astúcia para serem cautas. Poderia ter sido mais
prudente, preciso confessá-lo, se não fosse teres ouvido sem que eu percebesse, minha veraz paixão.
Assim, perdoa-me, não imputando à leviandade, nunca, meu abandono pronto, descoberto tão facilmente
pela noite escura.
ROMEU - Senhora, juro pela santa lua que acairela de prata as belas frondes de todas estas árvores
frutíferas...
JULIETA - Não jures pela lua, essa inconstante, que seu contorno circular altera todos os meses, porque
não pareça que teu amor, também, é assim mudável.
ROMEU - Por que devo jurar?
JULIETA - Não jures nada, ou jura, se o quiseres, por ti mesmo, por tua nobre pessoa, que é o objeto de
minha idolatria. Assim, te creio.
ROMEU - Se o amor sincero deste coração...
JULIETA - Pára! não jures; muito embora sejas toda minha alegria, não me alegra a aliança desta noite;
irrefletida foi por demais, precipitada, súbita, tal qual como o relâmpago que deixa de existir antes que
dizer possamos: Ei-lo! brilhou! Boa noite, meu querido. Que o hálito do estio amadureça este botão de
amor, porque ele possa numa flor transformar-se delicada, quando outra vez nos virmos. Até à vista; boa
noite. Possas ter a mesma calma que neste instante se me apossa da alma.
ROMEU - Vais deixar-me sair mal satisfeito?
JULIETA - Que alegria querias esta noite?
ROMEU - Trocar contigo o voto fiel de amor.
JULIETA - Antes que mo pedisses, já to dera; mas desejara ter de dá-lo ainda.
ROMEU - Desejas retirá-lo? Com que intuito, querido amor?
JULIETA - Porque, mais generosa, de novo to ofertasse. No entretanto, não quero nada, afora o que
possuo. Minha bondade é como o mar: sem fim, e tão funda quanto ele. Posso dar-te sem medida, que
muito mais me sobra: ambos são infinitos.
(A ama chama dentro.)
Ouço bulha dentro de casa. Adeus, amor! Adeus! - Ama, vou já! - Sê fiel, doce Montecchio. Espera um
momentinho; volto logo.
(Retira-se da janela.)
ROMEU - Oh! que noite abençoada! Tenho medo, de um sonho, lisonjeiro em demasia para ser
realidade.
(Julieta torna a aparecer em cima.)
JULIETA - Romeu querido, só três palavrinhas, e boa noite outra vez. Se esse amoroso pendor for sério e
honesto, amanhã cedo me envia uma palavra pelo próprio que eu te mandar: em que lugar e quando
pretendes realizar a cerimônia, que a teus pés deporei minha ventura, para seguir-te pelo mundo todo
como a senhor e esposo.
AMA (dentro) - Senhorita!
JULIETA - Já vou! Já vou! - Porém se não for puro teu pensamento, peço-te...
AMA (dentro) - Menina!
JULIETA - Já vou! Neste momento! - ... que não sigas com tuas insistências e me deixes entregue à
minha dor. Amanhã cedo te mandarei recado por um próprio.
ROMEU - Por minha alma...
JULIETA - Boa noite vezes mil.
(Retira-se.)
ROMEU - Não, má noite, sem tua luz gentil. O amor procura o amor como o estudante que para a escola
corre: num instante. Mas, ao se afastar dele, o amor parece que se transforma em colegial refece.
(Faz menção de retirar-se.)
(Julieta torna a aparecer em cima.)
JULIETA - Psiu! Romeu, psiu! Oh! quem me dera o grito do falcoeiro, porque chamar pudesse esse
nobre gavião! O cativeiro tem voz rouca; não pode falar alto, senão eu forçaria a gruta de Eco, deixando
ainda mais rouca do que a minha sua voz aérea, à força de cem vezes o nome repetir do meu Romeu.
ROMEU - Minha alma é que me chama pelo nome. Que doce som de prata faz a língua dos amantes à
noite, tal qual música langorosa que ouvido atento escuta?
JULIETA - Romeu!
ROMEU - Minha querida?
JULIETA - A que horas, cedo, devo mandar alguém para falar-te?
ROMEU - Às nove horas.
JULIETA - Sem falta. Só parece que até lá são vinte anos. Esqueci-me do que tinha a dizer.
ROMEU - Deixa que eu fique parado aqui, até que te recordes.
JULIETA - Esquecê-lo-ia, só para que sempre ficasses ai parado, recordando-me de como adoro tua
companhia.
ROMEU - E eu ficaria, para que esquecesses, deixando de lembrar-me de outra casa que não fosse esta
aqui.
JULIETA - É quase dia; desejara que já tivesses ido, não mais longe, porém, do que travessa menina
deixa o meigo passarinho, que das mãos ela solta - tal qual pobre prisioneiro na corda bem torcida - para
logo puxá-lo novamente pelo fio de seda, tão ciumenta e amorosa é de sua liberdade.
ROMEU - Quisera ser teu passarinho.
JULIETA - O mesmo, querido, eu desejara; mas de tanto te acariciar, podia, até, matar-te. Adeus;
calca-me a dor com tanto afã, que boa-noite eu diria até amanhã.
ROMEU - Que aos teus olhos o sono baixe e ao peito. Fosse eu o sono e dormisse desse jeito! Vou
procurar meu pai espiritual, para um conselho lhe pedir leal.
(Sai.)
ROMEU - Só ri das cicatrizes quem ferida nunca sofreu no corpo.
(Julieta aparece na janela.)
Mas silêncio! Que luz se escoa agora da janela? Será Julieta o sol daquele oriente? Surge, formoso sol, e
mata a lua cheia de inveja, que se mostra pálida e doente de tristeza, por ter visto que, como serva, és
mais formosa que ela. Deixa, pois, de servi-la; ela é invejosa. Somente os tolos usam sua túnica de vestal,
verde e doente; joga-a fora. Eis minha dama. Oh, sim! é o meu amor. Se ela soubesse disso! Ela fala;
contudo, não diz nada. Que importa? Com o olhar está falando. Vou responder-lhe. Não; sou muito
ousado; não se dirige a mim: duas estrelas do céu, as mais formosas, tendo tido qualquer ocupação, aos
olhos dela pediram que brilhassem nas esferas, até que elas voltassem. Que se dera se ficassem lá no alto
os olhos dela, e na sua cabeça os dois luzeiros? Suas faces nitentes deixariam corridas as estrelas, como o
dia faz com a luz das candeias, e seus olhos tamanha luz no céu espalhariam, que os pássaros, despertos,
cantariam. Vede como ela apoia o rosto à mão. Ah! se eu fosse uma luva dessa mão, para poder tocar
naquela face!
JULIETA - Ai de mim!
ROMEU - Oh, falou! Fala de novo, anjo brilhante, porque és tão glorioso para esta noite, sobre a minha
fronte, como o emissário alado das alturas ser poderia para os olhos brancos e revirados dos mortais
atônitos, que, para vê-lo, se reviram, quando montado passa nas ociosas nuvens e veleja no seio do ar
sereno.
JULIETA - Romeu, Romeu! Ah! por que és tu Romeu? Renega o pai, despoja-te do nome; ou então, se
não quiseres, jura ao menos que amor me tens, porque uma Capuleto deixarei de ser logo.
ROMEU (à parte) - Continuo ouvindo-a mais um pouco, ou lhe respondo?
JULIETA - Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não
fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença
ao corpo. Sê outro nome. Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação
teria igual perfume. Assim Romeu, se não tivesse o nome de Romeu, conservara a tão preciosa perfeição
que dele é sem esse título. Romeu, risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo,
fica comigo inteira.
ROMEU - Sim, aceito tua palavra. Dá-me o nome apenas de amor, que ficarei rebatizado. De agora em
diante não serei Romeu.
JULIETA - Quem és tu que, encoberto pela noite, entras em meu segredo?
ROMEU - Por um nome não sei como dizer-te quem eu seja. Meu nome, cara santa, me é odioso, por ser
teu inimigo; se o tivesse diante de mim, escrito, o rasgaria.
JULIETA - Minhas orelhas ainda não beberam cem palavras sequer de tua boca, mas reconheço o tom.
Não és Romeu, um dos Montecchios?
ROMEU - Não, bela menina; nem um nem outro, se isso te desgosta.
JULIETA - Dize-me como entraste e porque vieste. Muito alto é o muro do jardim, difícil de escalar,
sendo o ponto a própria morte - se quem és atendermos - caso fosses encontrado por um dos meus
parentes.
ROMEU - Do amor as lestes asas me fizeram transvoar o muro, pois barreira alguma conseguirá deter do
amor o curso, tentando o amor tudo o que o amor realiza. Teus parentes, assim, não poderiam desviar-me
do propósito.
JULIETA - No caso de seres visto, poderão matar-te.
ROMEU - Ai! Em teus olhos há maior perigo do que em vinte punhais de teus parentes. Olha-me com
doçura, e é quanto basta para deixar-me à prova do ódio deles.
JULIETA - Por nada deste mundo desejara que fosses visto aqui.
ROMEU - A capa tenho da noite para deles ocultar-me. Basta que me ames, e eles que me vejam! Prefiro
ter cerceada logo a vida pelo ódio deles, a ter morte longa, faltando o teu amor.
JULIETA - Com quem tomaste informações para até aqui chegares?
ROMEU - Com o amor, que a inquirir me deu coragem;. deu-me conselhos e eu lhe emprestei olhos. Não
sou piloto; mas se te encontrasses tão longe quanto a praia mais extensa que o mar longínquo banha,
aventurara-me para obter tão preciosa mercancia.
JULIETA - Sabe-lo bem: a máscara da noite me cobre agora o rosto; do contrário, um rubor virginal me
pintaria, de pronto, as faces, pelo que me ouviste dizer neste momento. Desejara - oh! minto! -
retratar-me do que disse. Mas fora! fora com as formalidades! Amas-me? Sei que vais dizer-me "sim", e
creio no que dizes. Se o jurares, porém, talvez te mostres inconstante, pois dos perjúrios dos amantes,
dizem, Jove sorri. Ó meu gentil Romeu! Se amas, proclama-o com sinceridade; ou se pensas, acaso, que
foi fácil minha conquista, vou tornar-me ríspida, franzir o sobrecenho e dizer "não", porque me faças
novamente a corte. Se não, por nada, nada deste mundo. Belo Montecchio, é certo: estou perdida, louca
de amor; daí poder pensares que meu procedimento é assaz leviano; mas podeis crer-me, cavalheiro, que
hei de mais fiel mostrar-me do que quantas têm bastante astúcia para serem cautas. Poderia ter sido mais
prudente, preciso confessá-lo, se não fosse teres ouvido sem que eu percebesse, minha veraz paixão.
Assim, perdoa-me, não imputando à leviandade, nunca, meu abandono pronto, descoberto tão facilmente
pela noite escura.
ROMEU - Senhora, juro pela santa lua que acairela de prata as belas frondes de todas estas árvores
frutíferas...
JULIETA - Não jures pela lua, essa inconstante, que seu contorno circular altera todos os meses, porque
não pareça que teu amor, também, é assim mudável.
ROMEU - Por que devo jurar?
JULIETA - Não jures nada, ou jura, se o quiseres, por ti mesmo, por tua nobre pessoa, que é o objeto de
minha idolatria. Assim, te creio.
ROMEU - Se o amor sincero deste coração...
JULIETA - Pára! não jures; muito embora sejas toda minha alegria, não me alegra a aliança desta noite;
irrefletida foi por demais, precipitada, súbita, tal qual como o relâmpago que deixa de existir antes que
dizer possamos: Ei-lo! brilhou! Boa noite, meu querido. Que o hálito do estio amadureça este botão de
amor, porque ele possa numa flor transformar-se delicada, quando outra vez nos virmos. Até à vista; boa
noite. Possas ter a mesma calma que neste instante se me apossa da alma.
ROMEU - Vais deixar-me sair mal satisfeito?
JULIETA - Que alegria querias esta noite?
ROMEU - Trocar contigo o voto fiel de amor.
JULIETA - Antes que mo pedisses, já to dera; mas desejara ter de dá-lo ainda.
ROMEU - Desejas retirá-lo? Com que intuito, querido amor?
JULIETA - Porque, mais generosa, de novo to ofertasse. No entretanto, não quero nada, afora o que
possuo. Minha bondade é como o mar: sem fim, e tão funda quanto ele. Posso dar-te sem medida, que
muito mais me sobra: ambos são infinitos.
(A ama chama dentro.)
Ouço bulha dentro de casa. Adeus, amor! Adeus! - Ama, vou já! - Sê fiel, doce Montecchio. Espera um
momentinho; volto logo.
(Retira-se da janela.)
ROMEU - Oh! que noite abençoada! Tenho medo, de um sonho, lisonjeiro em demasia para ser
realidade.
(Julieta torna a aparecer em cima.)
JULIETA - Romeu querido, só três palavrinhas, e boa noite outra vez. Se esse amoroso pendor for sério e
honesto, amanhã cedo me envia uma palavra pelo próprio que eu te mandar: em que lugar e quando
pretendes realizar a cerimônia, que a teus pés deporei minha ventura, para seguir-te pelo mundo todo
como a senhor e esposo.
AMA (dentro) - Senhorita!
JULIETA - Já vou! Já vou! - Porém se não for puro teu pensamento, peço-te...
AMA (dentro) - Menina!
JULIETA - Já vou! Neste momento! - ... que não sigas com tuas insistências e me deixes entregue à
minha dor. Amanhã cedo te mandarei recado por um próprio.
ROMEU - Por minha alma...
JULIETA - Boa noite vezes mil.
(Retira-se.)
ROMEU - Não, má noite, sem tua luz gentil. O amor procura o amor como o estudante que para a escola
corre: num instante. Mas, ao se afastar dele, o amor parece que se transforma em colegial refece.
(Faz menção de retirar-se.)
(Julieta torna a aparecer em cima.)
JULIETA - Psiu! Romeu, psiu! Oh! quem me dera o grito do falcoeiro, porque chamar pudesse esse
nobre gavião! O cativeiro tem voz rouca; não pode falar alto, senão eu forçaria a gruta de Eco, deixando
ainda mais rouca do que a minha sua voz aérea, à força de cem vezes o nome repetir do meu Romeu.
ROMEU - Minha alma é que me chama pelo nome. Que doce som de prata faz a língua dos amantes à
noite, tal qual música langorosa que ouvido atento escuta?
JULIETA - Romeu!
ROMEU - Minha querida?
JULIETA - A que horas, cedo, devo mandar alguém para falar-te?
ROMEU - Às nove horas.
JULIETA - Sem falta. Só parece que até lá são vinte anos. Esqueci-me do que tinha a dizer.
ROMEU - Deixa que eu fique parado aqui, até que te recordes.
JULIETA - Esquecê-lo-ia, só para que sempre ficasses ai parado, recordando-me de como adoro tua
companhia.
ROMEU - E eu ficaria, para que esquecesses, deixando de lembrar-me de outra casa que não fosse esta
aqui.
JULIETA - É quase dia; desejara que já tivesses ido, não mais longe, porém, do que travessa menina
deixa o meigo passarinho, que das mãos ela solta - tal qual pobre prisioneiro na corda bem torcida - para
logo puxá-lo novamente pelo fio de seda, tão ciumenta e amorosa é de sua liberdade.
ROMEU - Quisera ser teu passarinho.
JULIETA - O mesmo, querido, eu desejara; mas de tanto te acariciar, podia, até, matar-te. Adeus;
calca-me a dor com tanto afã, que boa-noite eu diria até amanhã.
ROMEU - Que aos teus olhos o sono baixe e ao peito. Fosse eu o sono e dormisse desse jeito! Vou
procurar meu pai espiritual, para um conselho lhe pedir leal.
(Sai.)
ROMEU E JULIETA, ATO III, Cena I
Verona. Uma praça pública. Entram Mercúcio, Benvólio, pajem e criados.
BENVÓLIO - Peço-te, bom Mercúcio: retiremo-nos. Quente está o dia; os Capuletos andam pela cidade.
Caso os encontremos, não poderemos evitar contendas. O sangue ferve nestes dias quentes.
MERCÚCIO - Tu te assemelhas a esses tipos que, mal entram numa taberna, batem com a espada em
cima da mesa e gritam: "Queira Deus que eu não venha a ter necessidade de ti!" e que após o efeito do
segundo copo, sacam-na contra o taberneiro sem a menor necessidade.
BENVÓLIO - Serei, acaso, um tipo desse gênero?
MERCÚCIO - Vamos, vamos; és tão esquentado como quem mais o for em toda a Itália; muito
prontamente raivoso para ser arrebatado.
BENVÓLIO - E a propósito de quê?
MERCÚCIO - Se houvesse mais outro tipo como tu, dentro de pouco tempo não existiria nenhum,
porque vos mataríeis mutuamente. És capaz de brigar com um homem por que tem um fio a mais ou a
menos na barba do que tu; brigarás com quem estiver quebrando nozes, sem outro motivo além do de
teres os olhos cor de nozes. Que olhos, a não serem esses mesmos, seriam capazes de descobrir
semelhante briga? Tua cabeça é tão cheia de rixas como de alimento o ovo, se bem que, por causa de
brigas, tenha sido batida tantas vezes como clara de ovo. Já brigaste com um homem que tossiu na rua e
despertou o teu cão, que dormia ao sol. Pois não tiveste uma rixa com um alfaiate, só por ter ele vestido
um casaco novo, antes da Páscoa? E com outro, por ter amarrado os sapatos novos com cordões usados?
Sendo, pois, o que és, pretendes dar-me lições de prudência?
BENVÓLIO - Se eu fosse tão briguento como tu, ninguém compraria os bens alodiais de minha vida,
simplesmente por uma hora e um quarto.
MERCÚCIO - Simplesmente? Que simplicidade!
BENVÓLIO - Por minha cabeça, ai vem vindo um Capuleto.
MERCÚCIO - Por meu pé, a mim isso pouco importa.
(Entram Tebaldo e outros.)
TEBALDO - Ficai perto de mim, pois vou falar-lhe. Cavalheiros, bom dia; uma palavra com qualquer
um de vós.
MERCÚCIO - Só uma palavra com um de nós? Acrescentai mais alguma coisa; que seja uma palavra e
uma estocada.
TEBALDO - Haveis de encontrar-me disposto para isso, quando me fornecerdes oportunidade.
MERCÚCIO - Não achais oportunidade, sem que vo-la ofereçam?
TEBALDO - Mercúcio, tu estás concertado com Romeu...
MERCÚCIO - Concertado? Como! Tomas-nos por músicos? Se nos tomares por músicos, prepara-te
para ouvir só desarmonias. Aqui está o arco da minha rabeca, que vos fará dançar. A-la-fé! Concertado!
BENVÓLIO - Estamos conversando numa praça bastante freqüentada. Retiremo-nos para algum ponto à
parte ou ide embora, que sobre nós os olhos estão fixos.
MERCÚCIO - Para ver é que os olhos foram feitos. Que nos vejam. Daqui não dou um passo.
(Entra Romeu.)
TEBALDO - Ficai em paz, senhores; eis meu homem.
MERCÚCIO - Que me enforquem se ele usa vossa farda. Para o campo segui, que ele irá junto. Nesse
sentido, é certo: ele é vosso homem.
TEBALDO - O ódio, Romeu, que me despertas, sabe dizer-te apenas isto: és um vilão.
ROMEU - A razão de te amar, que eu tenho agora, Tebaldo, escusa à saciedade a raiva de uma tal
saudação. Não sou o que dizes. Adeus; bem vejo que não me conheces.
TEBALDO - Isso, rapaz, não basta como escusa para quantas injúrias me tens feito. Faze, pois,
meia-volta e arranca a espada.
ROMEU - Protesto que jamais te fiz injúria. Tenho-te mais amor do que imaginas, até que saibas o
motivo disso. Assim, bom Capuleto - oh nome caro! tão caro quanto o meu - fica contente.
MERCÚCIO - Oh calma submissão, vil e insultuosa! Alla stoccata! Decidamos logo.
(Saca da espada.)
Tebaldo, caçador de rato, queres dar voltazinhas?
TEBALDO - Que desejas?
MERCÚCIO - Nada mais, meu bom rei dos gatos, além de uma das vossas nove vidas, que tomarei a
liberdade de tirar, deixando as outras oito para malhar depois, conforme o tratamento que me derdes. Não
vos resolveis a puxar vossa espada pela orelha e tirá-la da bainha? Mas ponde pressa nisso, para que a
minha não vos atinja as orelhas antes de ficar de fora a vossa.
TEBALDO - (sacando da espada) - Estou ao vosso dispor.
ROMEU - Gentil Mercúcio, guarda a espada.
MERCÚCIO - Vamos, senhor; vosso passado.
(Batem-se.)
ROMEU - Benvólio, saca a espada; desarmemo-los. Cavalheiros, que opróbrio! Evitai isso. Oh
Mercúcio! Tebaldo! O príncipe proibiu expressamente essas brigas nas ruas de Verona. Tebaldo! Bom
Mercúcio!
(Sai Tebaldo com seus partidários.)
MERCÚCIO - Estou ferido. A peste caia em vossas casas. Morto! E ele não teve nada? Foi embora?
BENVÓLIO - Como! Foste ferido?
MERCÚCIO - Um arranhão, um arranhão somente; mas já chega. Que leve a breca! E o pajem, onde se
acha? Patife, vai buscar um cirurgião.
(Sai o pajem.)
ROMEU - Coragem, homem! O ferimento não deve ser profundo.
MERCÚCIO- Não; não é tão fundo quanto um poço, nem tão largo quanto porta de igreja. Mas é o
suficiente e quanto basta. Perguntai por mim amanhã, que haveis de encontrar-me bem quieto. Para este
mundo já estou salgado, posso afiançar-vos! Um cão, um rato, um camundongo, um pulha, um biltre, que
briga segundo as regras da aritmética! Por que diabo vos metestes entre nós? Fui ferido por baixo de
vosso braço.
ROMEU - Eu estava bem-intencionado.
MERCÚCIO - Conduze-me, Benvólio, a alguma casa; senão, desmaio. A peste em vossas casas! De mim
fizeram pasto para os vermes. Já tenho a minha parte. Vossas casas!
(Saem Mercúcio e Benvólio.)
ROMEU - Este fidalgo, próximo parente do príncipe, sincero amigo meu, por mim, tão-só, ferido foi de
morte. Minha reputação está manchada com o insulto de Tebaldo, esse Tebaldo que meu parente foi
durante uma hora. Doce Julieta! Tua formosura fez de mim um maricas; a coragem do aço se abranda e
verga no meu peito.
(Volta Benvólio.)
BENVÓLIO - Romeu, Romeu, o bom Mercúcio é morto! Foi para as nuvens esse bravo espírito que
desprezou tão cedo o pó terreno.
ROMEU - Hoje o fado somente dá o rebate para que o tempo as dores arremate.
(Volta Tebaldo.)
BENVÓLIO - O furioso Tebaldo está de volta.
ROMEU - Vivo! Em triunfo! E morto o bom Mercúcio? Vai para o céu, brandura respeitosa! Fúria de
olhar de fogo, sê meu guia! Tebaldo, ora recebe de retorno o "vilão" que me deste não faz muito, pois a
alma de Mercúcio ainda se encontra perto de nossas fontes, aguardando que a tua vá fazer-lhe
companhia. Um de nós dois terá, pois, de ir com ele.
TEBALDO - Pobre rapaz, que estavas de seu lado, és tu que vais partir.
ROMEU - Pois decidamos.
(Batem-se; Tebaldo cai.)
BENVÓLIO - Romeu, foge depressa! Os cidadãos se amotinaram. Morto está Tebaldo. Não fiques
aturdido, pois o príncipe vai condenar-te à morte, se encontrado fores aqui. Despacha-te depressa!
ROMEU - Sou o bobo da fortuna.
BENVÓLIO - Foge! Ora essa!
(Sai Romeu.)
PRIMEIRO CIDADÃO - Para onde foi o que matou Mercúcio? O assassino, Tebaldo, onde se encontra?
BENVÓLIO - Tebaldo? Aqui.
PRIMEIRO CIDADÃO - Em nome, então, do príncipe, vos intimo, senhor; vinde comigo.
(Entra o príncipe, com séqüito; Montecchio, Capuleto, suas esposas e outras pessoas.) PRÍNCIPE -
Quem desafiou, assim, o meu castigo?
BENVÓLIO - Dizer-te posso, ó príncipe, a maneira por que teve começo esta cegueira. Pelo jovem
Romeu ali se encontra morto o homem que matou o teu parente, nosso bravo Mercúcio.
SENHORA CAPULETO - Como! O primo Tebaldo? O filho do meu caro irmão? Primo, marido,
príncipe, no chão vejo o sangue correr de um meu parente. Se veraz fores, príncipe, realmente, sangue
desses Montecchios há de, agora, ser também derramado, sem demora. Oh primo! primo!
PRÍNCIPE - Quem deu começo à luta dolorida?
BENVÓLIO - Tebaldo, que Romeu deixou sem vida; Romeu, que lhe falou com termos brandos, com ele
instando para que pensasse na ausência de motivo da querela, tendo invocado, até, vosso desgosto, tudo
isso com voz doce, olhar tranqüilo e ademanes corteses, sem que tréguas conseguisse alcançar da grande
cólera do furioso Tebaldo, que com aço pontiagudo visava uma e mais vezes o peito de Mercúcio
valoroso. Este, só chamas, ponta opõe a ponta; com desprezo marcial, a fria morte faz afastar com uma
das mãos, ao tempo em que com a outra a devolvia célere ao peito de Tebaldo que, habilmente, de
retorno lha enviava. Em altas vozes Romeu gritava: "Amigos, separai-vos !" E mais rápido, ainda, que
sua língua, seu ágil braço desviava as pontas, entre ambos se interpondo. Mas por baixo do braço dele
um golpe malfadado de Tebaldo a existência atinge em cheio do valente Mercúcio. Então Tebaldo se põe
em fuga, mas retorna logo para Romeu, que, nesse instante, havia concebido a vingança. Mais velozes
que o raio se engalfinham e, assim, antes de eu poder separá-los, cai sem vida o valente Tebaldo, a cuja
vista Romeu fugiu. Se nisto houver maldade, vivo Benvólio prosseguir não há de.
SENHORA CAPULETO - Parente é dos Montecchios; bom serviço presta aos seus com mentir-vos em
tudo isso. Foi de vinte, no mínimo, a sortida, para tirar apenas uma vida. Justiça, príncipe! e que seja
breve: Romeu matou Tebaldo; morrer deve.
PRÍNCIPE - Matou quem a Mercúcio antes matara. Quem paga o preço dessa vida cara?
MONTECCHIO - Príncipe, não Romeu; ele era amigo de Mercúcio; só fez dar o castigo que a própria lei
impunha: incontinenti dando a morte a Tebaldo imprevidente.
PRINCIPE - Por essa transgressão de nosso edito ficará de Verona já proscrito. Vosso ódio atinge a mim,
também, de perto; sangra-me o coração por ele aberto. Mas hei de vos impor a. pena dura que minha dor
desde hoje vos augura. Surdo serei a escusas e pedidos; nem lágrimas nem preces os ouvidos poderão
abalar-me. Assim, com pressa fazei Romeu partir; ordem é expressa. Porque se acaso nisso houver
demora, ouvido ele terá sua última hora. Levai o corpo. O excesso de demência causa mortes também,
por imprudência.
(Saem.)
BENVÓLIO - Peço-te, bom Mercúcio: retiremo-nos. Quente está o dia; os Capuletos andam pela cidade.
Caso os encontremos, não poderemos evitar contendas. O sangue ferve nestes dias quentes.
MERCÚCIO - Tu te assemelhas a esses tipos que, mal entram numa taberna, batem com a espada em
cima da mesa e gritam: "Queira Deus que eu não venha a ter necessidade de ti!" e que após o efeito do
segundo copo, sacam-na contra o taberneiro sem a menor necessidade.
BENVÓLIO - Serei, acaso, um tipo desse gênero?
MERCÚCIO - Vamos, vamos; és tão esquentado como quem mais o for em toda a Itália; muito
prontamente raivoso para ser arrebatado.
BENVÓLIO - E a propósito de quê?
MERCÚCIO - Se houvesse mais outro tipo como tu, dentro de pouco tempo não existiria nenhum,
porque vos mataríeis mutuamente. És capaz de brigar com um homem por que tem um fio a mais ou a
menos na barba do que tu; brigarás com quem estiver quebrando nozes, sem outro motivo além do de
teres os olhos cor de nozes. Que olhos, a não serem esses mesmos, seriam capazes de descobrir
semelhante briga? Tua cabeça é tão cheia de rixas como de alimento o ovo, se bem que, por causa de
brigas, tenha sido batida tantas vezes como clara de ovo. Já brigaste com um homem que tossiu na rua e
despertou o teu cão, que dormia ao sol. Pois não tiveste uma rixa com um alfaiate, só por ter ele vestido
um casaco novo, antes da Páscoa? E com outro, por ter amarrado os sapatos novos com cordões usados?
Sendo, pois, o que és, pretendes dar-me lições de prudência?
BENVÓLIO - Se eu fosse tão briguento como tu, ninguém compraria os bens alodiais de minha vida,
simplesmente por uma hora e um quarto.
MERCÚCIO - Simplesmente? Que simplicidade!
BENVÓLIO - Por minha cabeça, ai vem vindo um Capuleto.
MERCÚCIO - Por meu pé, a mim isso pouco importa.
(Entram Tebaldo e outros.)
TEBALDO - Ficai perto de mim, pois vou falar-lhe. Cavalheiros, bom dia; uma palavra com qualquer
um de vós.
MERCÚCIO - Só uma palavra com um de nós? Acrescentai mais alguma coisa; que seja uma palavra e
uma estocada.
TEBALDO - Haveis de encontrar-me disposto para isso, quando me fornecerdes oportunidade.
MERCÚCIO - Não achais oportunidade, sem que vo-la ofereçam?
TEBALDO - Mercúcio, tu estás concertado com Romeu...
MERCÚCIO - Concertado? Como! Tomas-nos por músicos? Se nos tomares por músicos, prepara-te
para ouvir só desarmonias. Aqui está o arco da minha rabeca, que vos fará dançar. A-la-fé! Concertado!
BENVÓLIO - Estamos conversando numa praça bastante freqüentada. Retiremo-nos para algum ponto à
parte ou ide embora, que sobre nós os olhos estão fixos.
MERCÚCIO - Para ver é que os olhos foram feitos. Que nos vejam. Daqui não dou um passo.
(Entra Romeu.)
TEBALDO - Ficai em paz, senhores; eis meu homem.
MERCÚCIO - Que me enforquem se ele usa vossa farda. Para o campo segui, que ele irá junto. Nesse
sentido, é certo: ele é vosso homem.
TEBALDO - O ódio, Romeu, que me despertas, sabe dizer-te apenas isto: és um vilão.
ROMEU - A razão de te amar, que eu tenho agora, Tebaldo, escusa à saciedade a raiva de uma tal
saudação. Não sou o que dizes. Adeus; bem vejo que não me conheces.
TEBALDO - Isso, rapaz, não basta como escusa para quantas injúrias me tens feito. Faze, pois,
meia-volta e arranca a espada.
ROMEU - Protesto que jamais te fiz injúria. Tenho-te mais amor do que imaginas, até que saibas o
motivo disso. Assim, bom Capuleto - oh nome caro! tão caro quanto o meu - fica contente.
MERCÚCIO - Oh calma submissão, vil e insultuosa! Alla stoccata! Decidamos logo.
(Saca da espada.)
Tebaldo, caçador de rato, queres dar voltazinhas?
TEBALDO - Que desejas?
MERCÚCIO - Nada mais, meu bom rei dos gatos, além de uma das vossas nove vidas, que tomarei a
liberdade de tirar, deixando as outras oito para malhar depois, conforme o tratamento que me derdes. Não
vos resolveis a puxar vossa espada pela orelha e tirá-la da bainha? Mas ponde pressa nisso, para que a
minha não vos atinja as orelhas antes de ficar de fora a vossa.
TEBALDO - (sacando da espada) - Estou ao vosso dispor.
ROMEU - Gentil Mercúcio, guarda a espada.
MERCÚCIO - Vamos, senhor; vosso passado.
(Batem-se.)
ROMEU - Benvólio, saca a espada; desarmemo-los. Cavalheiros, que opróbrio! Evitai isso. Oh
Mercúcio! Tebaldo! O príncipe proibiu expressamente essas brigas nas ruas de Verona. Tebaldo! Bom
Mercúcio!
(Sai Tebaldo com seus partidários.)
MERCÚCIO - Estou ferido. A peste caia em vossas casas. Morto! E ele não teve nada? Foi embora?
BENVÓLIO - Como! Foste ferido?
MERCÚCIO - Um arranhão, um arranhão somente; mas já chega. Que leve a breca! E o pajem, onde se
acha? Patife, vai buscar um cirurgião.
(Sai o pajem.)
ROMEU - Coragem, homem! O ferimento não deve ser profundo.
MERCÚCIO- Não; não é tão fundo quanto um poço, nem tão largo quanto porta de igreja. Mas é o
suficiente e quanto basta. Perguntai por mim amanhã, que haveis de encontrar-me bem quieto. Para este
mundo já estou salgado, posso afiançar-vos! Um cão, um rato, um camundongo, um pulha, um biltre, que
briga segundo as regras da aritmética! Por que diabo vos metestes entre nós? Fui ferido por baixo de
vosso braço.
ROMEU - Eu estava bem-intencionado.
MERCÚCIO - Conduze-me, Benvólio, a alguma casa; senão, desmaio. A peste em vossas casas! De mim
fizeram pasto para os vermes. Já tenho a minha parte. Vossas casas!
(Saem Mercúcio e Benvólio.)
ROMEU - Este fidalgo, próximo parente do príncipe, sincero amigo meu, por mim, tão-só, ferido foi de
morte. Minha reputação está manchada com o insulto de Tebaldo, esse Tebaldo que meu parente foi
durante uma hora. Doce Julieta! Tua formosura fez de mim um maricas; a coragem do aço se abranda e
verga no meu peito.
(Volta Benvólio.)
BENVÓLIO - Romeu, Romeu, o bom Mercúcio é morto! Foi para as nuvens esse bravo espírito que
desprezou tão cedo o pó terreno.
ROMEU - Hoje o fado somente dá o rebate para que o tempo as dores arremate.
(Volta Tebaldo.)
BENVÓLIO - O furioso Tebaldo está de volta.
ROMEU - Vivo! Em triunfo! E morto o bom Mercúcio? Vai para o céu, brandura respeitosa! Fúria de
olhar de fogo, sê meu guia! Tebaldo, ora recebe de retorno o "vilão" que me deste não faz muito, pois a
alma de Mercúcio ainda se encontra perto de nossas fontes, aguardando que a tua vá fazer-lhe
companhia. Um de nós dois terá, pois, de ir com ele.
TEBALDO - Pobre rapaz, que estavas de seu lado, és tu que vais partir.
ROMEU - Pois decidamos.
(Batem-se; Tebaldo cai.)
BENVÓLIO - Romeu, foge depressa! Os cidadãos se amotinaram. Morto está Tebaldo. Não fiques
aturdido, pois o príncipe vai condenar-te à morte, se encontrado fores aqui. Despacha-te depressa!
ROMEU - Sou o bobo da fortuna.
BENVÓLIO - Foge! Ora essa!
(Sai Romeu.)
PRIMEIRO CIDADÃO - Para onde foi o que matou Mercúcio? O assassino, Tebaldo, onde se encontra?
BENVÓLIO - Tebaldo? Aqui.
PRIMEIRO CIDADÃO - Em nome, então, do príncipe, vos intimo, senhor; vinde comigo.
(Entra o príncipe, com séqüito; Montecchio, Capuleto, suas esposas e outras pessoas.) PRÍNCIPE -
Quem desafiou, assim, o meu castigo?
BENVÓLIO - Dizer-te posso, ó príncipe, a maneira por que teve começo esta cegueira. Pelo jovem
Romeu ali se encontra morto o homem que matou o teu parente, nosso bravo Mercúcio.
SENHORA CAPULETO - Como! O primo Tebaldo? O filho do meu caro irmão? Primo, marido,
príncipe, no chão vejo o sangue correr de um meu parente. Se veraz fores, príncipe, realmente, sangue
desses Montecchios há de, agora, ser também derramado, sem demora. Oh primo! primo!
PRÍNCIPE - Quem deu começo à luta dolorida?
BENVÓLIO - Tebaldo, que Romeu deixou sem vida; Romeu, que lhe falou com termos brandos, com ele
instando para que pensasse na ausência de motivo da querela, tendo invocado, até, vosso desgosto, tudo
isso com voz doce, olhar tranqüilo e ademanes corteses, sem que tréguas conseguisse alcançar da grande
cólera do furioso Tebaldo, que com aço pontiagudo visava uma e mais vezes o peito de Mercúcio
valoroso. Este, só chamas, ponta opõe a ponta; com desprezo marcial, a fria morte faz afastar com uma
das mãos, ao tempo em que com a outra a devolvia célere ao peito de Tebaldo que, habilmente, de
retorno lha enviava. Em altas vozes Romeu gritava: "Amigos, separai-vos !" E mais rápido, ainda, que
sua língua, seu ágil braço desviava as pontas, entre ambos se interpondo. Mas por baixo do braço dele
um golpe malfadado de Tebaldo a existência atinge em cheio do valente Mercúcio. Então Tebaldo se põe
em fuga, mas retorna logo para Romeu, que, nesse instante, havia concebido a vingança. Mais velozes
que o raio se engalfinham e, assim, antes de eu poder separá-los, cai sem vida o valente Tebaldo, a cuja
vista Romeu fugiu. Se nisto houver maldade, vivo Benvólio prosseguir não há de.
SENHORA CAPULETO - Parente é dos Montecchios; bom serviço presta aos seus com mentir-vos em
tudo isso. Foi de vinte, no mínimo, a sortida, para tirar apenas uma vida. Justiça, príncipe! e que seja
breve: Romeu matou Tebaldo; morrer deve.
PRÍNCIPE - Matou quem a Mercúcio antes matara. Quem paga o preço dessa vida cara?
MONTECCHIO - Príncipe, não Romeu; ele era amigo de Mercúcio; só fez dar o castigo que a própria lei
impunha: incontinenti dando a morte a Tebaldo imprevidente.
PRINCIPE - Por essa transgressão de nosso edito ficará de Verona já proscrito. Vosso ódio atinge a mim,
também, de perto; sangra-me o coração por ele aberto. Mas hei de vos impor a. pena dura que minha dor
desde hoje vos augura. Surdo serei a escusas e pedidos; nem lágrimas nem preces os ouvidos poderão
abalar-me. Assim, com pressa fazei Romeu partir; ordem é expressa. Porque se acaso nisso houver
demora, ouvido ele terá sua última hora. Levai o corpo. O excesso de demência causa mortes também,
por imprudência.
(Saem.)
REI LEAR, ATO III, Cena VII
Um quarto no castelo de Gloster. Entram Cornualha, Regane, Goneril, Edmundo e criados.
CORNUALHA - Parti com toda pressa para onde está milorde vosso marido e mostrai-lhe esta carta. O
exército da França desembarcou. - Procurai o traidor Gloster.
REGANE - Enforcai-o imediatamente.
GONERIL - Arrancai-lhe os olhos.
CORNUALHA - Deixai-o aos cuidados do meu desprazer. Edmundo, fazei companhia a nossa irmã; as
vinganças que vamos ser forçados a tomar de vosso pai traidor não são adequadas para vossa vista.
Avisai o duque, para a casa de quem vos dirigis, que se prepare com a maior urgência possível, porque
faremos o mesmo. Nossos correios não se pouparão, para manter entre nós o entendimento preciso.
Adeus, querida irmã; adeus, milorde de Gloster.
(Entra Osvaldo.)
Então! Onde está o rei?
OSVALDO - Levou-o para longe lorde Gloster. Cerca de trinta e cinco ou trinta e seis de seus homens,
sequiosos de encontrá-lo, o esperaram à porta, e em companhia de outros homens do lorde se fizeram no
caminho de Dover, onde todos se jactam de possuir sócios armados.
CORNUALHA - Prepara a condução para a senhora.
GONERIL - Adeus, doce senhor; adeus, irmã.
CORNUALHA - Adeus, Edmundo.
(Saem Goneril, Edmundo e Osvaldo.)
Ide e trazei-me Gloster, esse traidor; os braços algemai-lhe como a um ladrão e em nossa frente o ponde.
(Saem outros criados.)
Embora não possamos pronunciar-nos, sem as formas legais, contra sua vida, poderá nossa força cortesia
fazer a nossa cólera, o que os homens talvez censurem, mas obstar não podem. Quem vem lá! Ó traidor?
(Voltam os criados, com Gloster.)
REGANE - Raposa ingrata! É ele mesmo.
CORNUALHA - Amarrai-lhe os braços leves.
GLOSTER - Que intendem Vossas Graças? Bons amigos, considerai que sois aqui meus hóspedes. Não
me trateis, amigos, com desprezo.
CORNUALHA - Amarrai-o, já disse!
(Os criados amarram Gloster.)
REGANE - Com mais força! Traidor infecto!
GLOSTER - Dama sem piedade, não sou o que dizeis.
CORNUALHA - Nesta cadeira; amarrai-o! Vilão, vais ver agora...
(Regane puxa a barba de Gloster.)
GLOSTER - Pelos deuses bondosos, é ignomínia puxar-me pela barba.
REGANE - Tão branco e tão traidor!
GLOSTER - Perversa dama, os fios que do queixo ora me arrancas, hão de ficar de pé para acusar-te.
Meus hóspedes sois todos; não devíeis com mãos rapaces machucar-me os traços de dono desta casa.
Que quereis?
CORNUALHA - Vamos, senhor; dizei-me: que notícias recebestes de França?
REGANE - Sede breve no que disserdes, pois sabemos tudo.
CORNUALHA - E que pacto firmastes com os traidores que saltaram há pouco em nosso reino?
REGANE - A que mãos entregastes o rei louco? Falai!
GLOSTER - Às mãos me veio uma missiva baseada em conjeturas de pessoa neutra e imparcial, não de
qualquer imigo.
CORNUALHA - Astuciosa.
REGANE - Traidora.
CORNUALHA - E o rei, para onde o enviaste?
GLOSTER - Para Dover.
REGANE - Por que Dover? Avisado não foras, sob o risco...
CORNUALHA - Por que Dover? Primeiro responde a isso.
GLOSTER - Estou atado ao poste; é-me impossível fugir destes assaltos.
REGANE - Por que Dover?
GLOSTER - Porque essas unhas cruéis não lhe arrancassem os pobres olhos, velhos e cansados, nem tua
irmã selvagem lhe enterasse no corpo ungido as presas de javardo. O mar em tempestade como a que ele
suportou na cabeça descoberta nesta noite infernal, se empolaria para apagar o fogo das estrelas. E o
pobre coração, tão velho, a chuva do céu fez aumentar! Se os próprios lobos, com um tempo destes,
ululado houvessem diante de tuas portas, certamente terias dito: "Bom porteiro, vira depressa a chave!"
Todas as crueldades ficariam riscadas. Mas ainda hei de ver a vingança de asas fortes cair sobre tais
filhos.
CORNUALHA - Veres? Nunca! Segurai a cadeira com firmeza. Vou pôr os pés em cima de teus olhos.
GLOSTER - Quem espera viver até à velhice, venha ajudar-me agora. Oh monstro! Oh deuses!
(É arrancado um dos olhos de Gloster.)
REGANE - O outro também, para não rir daquele.
CORNUALHA - Se virdes a vingança...
PRIMEIRO CRIADO - Suspendei, milorde, a mão. Servi-vos desde criança; mas nunca vos prestei tão
bom serviço, como ao pedir agora que parásseis.
REGANE - Como, cachorro?
PRIMEIRO CRIADO - Se trouxésseis barba no queixo eu a arrancara nesta briga. Que pretendeis?
CORNUALHA - Um dos meus criados? Como!
(Saca da espada.)
PRIMEIRO CRIADO - Avançai, pois, e vos medi com a cólera.
(Desembainha a espada; lutam.)
(Cornualha é ferido.)
REGANE - Empresta-me tua espada. Rebelar-se um rústico a este ponto!
(Toma da espada e fere o criado pelas costas.)
PRIMEIRO CRIADO - Oh! Estou morto! Ainda vos resta um olho, milorde, para vê-lo desgraçado.
(Morre.)
CORNUALHA - Porque não posso ver, façamos isto: fora, geléia vil! Qual é teu brilho neste momento?
GLOSTER - Escuro em toda parte, desolação total. Onde se encontra meu filho Edmundo? Edmundo,
acende as chispas da natureza e vinga este ato horrível!
REGANE - Vilão traidor, invocas quem te odeia. Foi ele próprio quem nos deu notícia de tua falsidade,
ele em pessoa. E bom demais para de ti ter pena.
GLOSTER - Oh! Que tolo que fui! Então Edgar foi caluniado! Deuses bons, perdoai-me, e que ele possa
prosperar.
REGANE - Jogai-o fora da porta e que procure a estrada de Dover pelo cheiro.
(Sai um criado conduzindo Gloster.)
Então, milorde, como estais?
CORNUALHA - Recebi uma ferida. Senhora, acompanhai-me. Jogai fora esse vilão sem olhos; no
monturo atirai esse escravo. Estou sangrando demais, Regane; veio-me este golpe muito fora de tempo.
Dai-me o braço.
(Sai Cornualha apoiado em Regane.)
SEGUNDO CRIADO - Não quero ter preocupação alguma com qualquer vilania, se este tipo vier ainda a
acabar bem.
TERCEIRO CRIADO - Se vida longa ela tiver e, ao fim, achar o curso comum da morte, todas as
mulheres virarão monstros.
SEGUNDO CRIADO - Vamos à procura do velho conde, para que levado seja pelo maníaco para onde
ele o determinar. Suas manias de vagante se prestam para tudo.
TERCEIRO CRIADO - Vai; enquanto isso, arranjarei um pouco de linho e clara de ovo, para pôr-lhe no
rosto ensanguentado. O céu que o ajude!
(Saem por lados diferentes.)
CORNUALHA - Parti com toda pressa para onde está milorde vosso marido e mostrai-lhe esta carta. O
exército da França desembarcou. - Procurai o traidor Gloster.
REGANE - Enforcai-o imediatamente.
GONERIL - Arrancai-lhe os olhos.
CORNUALHA - Deixai-o aos cuidados do meu desprazer. Edmundo, fazei companhia a nossa irmã; as
vinganças que vamos ser forçados a tomar de vosso pai traidor não são adequadas para vossa vista.
Avisai o duque, para a casa de quem vos dirigis, que se prepare com a maior urgência possível, porque
faremos o mesmo. Nossos correios não se pouparão, para manter entre nós o entendimento preciso.
Adeus, querida irmã; adeus, milorde de Gloster.
(Entra Osvaldo.)
Então! Onde está o rei?
OSVALDO - Levou-o para longe lorde Gloster. Cerca de trinta e cinco ou trinta e seis de seus homens,
sequiosos de encontrá-lo, o esperaram à porta, e em companhia de outros homens do lorde se fizeram no
caminho de Dover, onde todos se jactam de possuir sócios armados.
CORNUALHA - Prepara a condução para a senhora.
GONERIL - Adeus, doce senhor; adeus, irmã.
CORNUALHA - Adeus, Edmundo.
(Saem Goneril, Edmundo e Osvaldo.)
Ide e trazei-me Gloster, esse traidor; os braços algemai-lhe como a um ladrão e em nossa frente o ponde.
(Saem outros criados.)
Embora não possamos pronunciar-nos, sem as formas legais, contra sua vida, poderá nossa força cortesia
fazer a nossa cólera, o que os homens talvez censurem, mas obstar não podem. Quem vem lá! Ó traidor?
(Voltam os criados, com Gloster.)
REGANE - Raposa ingrata! É ele mesmo.
CORNUALHA - Amarrai-lhe os braços leves.
GLOSTER - Que intendem Vossas Graças? Bons amigos, considerai que sois aqui meus hóspedes. Não
me trateis, amigos, com desprezo.
CORNUALHA - Amarrai-o, já disse!
(Os criados amarram Gloster.)
REGANE - Com mais força! Traidor infecto!
GLOSTER - Dama sem piedade, não sou o que dizeis.
CORNUALHA - Nesta cadeira; amarrai-o! Vilão, vais ver agora...
(Regane puxa a barba de Gloster.)
GLOSTER - Pelos deuses bondosos, é ignomínia puxar-me pela barba.
REGANE - Tão branco e tão traidor!
GLOSTER - Perversa dama, os fios que do queixo ora me arrancas, hão de ficar de pé para acusar-te.
Meus hóspedes sois todos; não devíeis com mãos rapaces machucar-me os traços de dono desta casa.
Que quereis?
CORNUALHA - Vamos, senhor; dizei-me: que notícias recebestes de França?
REGANE - Sede breve no que disserdes, pois sabemos tudo.
CORNUALHA - E que pacto firmastes com os traidores que saltaram há pouco em nosso reino?
REGANE - A que mãos entregastes o rei louco? Falai!
GLOSTER - Às mãos me veio uma missiva baseada em conjeturas de pessoa neutra e imparcial, não de
qualquer imigo.
CORNUALHA - Astuciosa.
REGANE - Traidora.
CORNUALHA - E o rei, para onde o enviaste?
GLOSTER - Para Dover.
REGANE - Por que Dover? Avisado não foras, sob o risco...
CORNUALHA - Por que Dover? Primeiro responde a isso.
GLOSTER - Estou atado ao poste; é-me impossível fugir destes assaltos.
REGANE - Por que Dover?
GLOSTER - Porque essas unhas cruéis não lhe arrancassem os pobres olhos, velhos e cansados, nem tua
irmã selvagem lhe enterasse no corpo ungido as presas de javardo. O mar em tempestade como a que ele
suportou na cabeça descoberta nesta noite infernal, se empolaria para apagar o fogo das estrelas. E o
pobre coração, tão velho, a chuva do céu fez aumentar! Se os próprios lobos, com um tempo destes,
ululado houvessem diante de tuas portas, certamente terias dito: "Bom porteiro, vira depressa a chave!"
Todas as crueldades ficariam riscadas. Mas ainda hei de ver a vingança de asas fortes cair sobre tais
filhos.
CORNUALHA - Veres? Nunca! Segurai a cadeira com firmeza. Vou pôr os pés em cima de teus olhos.
GLOSTER - Quem espera viver até à velhice, venha ajudar-me agora. Oh monstro! Oh deuses!
(É arrancado um dos olhos de Gloster.)
REGANE - O outro também, para não rir daquele.
CORNUALHA - Se virdes a vingança...
PRIMEIRO CRIADO - Suspendei, milorde, a mão. Servi-vos desde criança; mas nunca vos prestei tão
bom serviço, como ao pedir agora que parásseis.
REGANE - Como, cachorro?
PRIMEIRO CRIADO - Se trouxésseis barba no queixo eu a arrancara nesta briga. Que pretendeis?
CORNUALHA - Um dos meus criados? Como!
(Saca da espada.)
PRIMEIRO CRIADO - Avançai, pois, e vos medi com a cólera.
(Desembainha a espada; lutam.)
(Cornualha é ferido.)
REGANE - Empresta-me tua espada. Rebelar-se um rústico a este ponto!
(Toma da espada e fere o criado pelas costas.)
PRIMEIRO CRIADO - Oh! Estou morto! Ainda vos resta um olho, milorde, para vê-lo desgraçado.
(Morre.)
CORNUALHA - Porque não posso ver, façamos isto: fora, geléia vil! Qual é teu brilho neste momento?
GLOSTER - Escuro em toda parte, desolação total. Onde se encontra meu filho Edmundo? Edmundo,
acende as chispas da natureza e vinga este ato horrível!
REGANE - Vilão traidor, invocas quem te odeia. Foi ele próprio quem nos deu notícia de tua falsidade,
ele em pessoa. E bom demais para de ti ter pena.
GLOSTER - Oh! Que tolo que fui! Então Edgar foi caluniado! Deuses bons, perdoai-me, e que ele possa
prosperar.
REGANE - Jogai-o fora da porta e que procure a estrada de Dover pelo cheiro.
(Sai um criado conduzindo Gloster.)
Então, milorde, como estais?
CORNUALHA - Recebi uma ferida. Senhora, acompanhai-me. Jogai fora esse vilão sem olhos; no
monturo atirai esse escravo. Estou sangrando demais, Regane; veio-me este golpe muito fora de tempo.
Dai-me o braço.
(Sai Cornualha apoiado em Regane.)
SEGUNDO CRIADO - Não quero ter preocupação alguma com qualquer vilania, se este tipo vier ainda a
acabar bem.
TERCEIRO CRIADO - Se vida longa ela tiver e, ao fim, achar o curso comum da morte, todas as
mulheres virarão monstros.
SEGUNDO CRIADO - Vamos à procura do velho conde, para que levado seja pelo maníaco para onde
ele o determinar. Suas manias de vagante se prestam para tudo.
TERCEIRO CRIADO - Vai; enquanto isso, arranjarei um pouco de linho e clara de ovo, para pôr-lhe no
rosto ensanguentado. O céu que o ajude!
(Saem por lados diferentes.)
REI LEAR, ATO IV, Cena II
Diante do palácio do Duque de Albânia. Entram Goneril e Edmundo.
GONERIL - Sois bem-vindo, senhor. Estranho muito que o nosso brando esposo não nos tenha saído a
receber.
(Entra Osvaldo.)
Que é de vosso amo?
OSVALDO - Senhora, está lá dentro; porém nunca homem nenhum mudou, como ele, tanto. Contei-lhe
que desembarcaram forças. Sorriu à nova. Disse-lhe que vínheis para cá; respondeu: "Tanto pior". Ao lhe
falar da alta traição de Gloster e da lealdade de seu filho Edmundo, chamou-me de papalvo,
declarando-me que eu havia tomado o pior partido. Tudo quanto ele detestar devia, lhe ensejava prazer.
GONERIL (a Edmundo) - Não é preciso, portanto, irdes mais longe. E seu espírito covarde e aterrorado
que não ousa decidir-se por nada. Não deseja sentir o ultraje que à resposta o force. Os votos que fizemos
em caminho talvez se efetuarão. Voltai, Edmundo, para o mano; reuni seus homens logo e o comando
assumi de seu exército. Terei de me aprestar com nossas armas e pôr na mão de meu marido a roca. Este
fiel servidor irá servir-nos de intermediário. Dentro de pouquinho - se algo arriscardes para vosso ganho -
ordens recebereis de vossa dama. Usai isto.
(Dá-lhe uma prenda.)
Poupai qualquer discurso. Abaixai a cabeça. Ora, este beijo se a falar se atrevesse, exalçaria teu espírito
às nuvens. Vai; compreende e passa bem.
EDMUNDO - Confesso-me por vosso nas fileiras da morte.
GONERIL - Meu caríssimo Gloster!
(Sai Edmundo.)
Oh! Que distância vai de um homem para outro! Bem mereces os serviços de uma mulher. Meu bobo é
que me usurpa presentemente o leito.
OSVALDO - Aí vem meu amo.
(Sai.)
(Entra Albânia.)
GONERIL - Antes eu merecia um assobio.
ALBÂNIA - Ó Goneril, digna não sois da poeira que vos atira ao rosto o vento rude. Inspira-me pavor
vosso caráter. Quando renega um ser a própria origem, em si mesmo contido não prossegue. Quem se
arranca a si próprio e se desgalha da seiva substancial, é inevitável que a secar venha e pela morte caia.
GONERIL - Basta; o texto é cretino.
ALBÂNIA - Para o baixo o saber e a bondade são mesquinhos. Só a si mesma aprecia a sujidade. Que
perpetrastes? Tigres, sim, não filhas: que fizestes? Um pai, um velho afável, cuja figura régia até mesmo
um urso preso à corda afagara, por vós duas - degeneradas! bárbaras! - lançado foi à loucura. Como se
compreende que meu bondoso irmão o permitisse, um nobre, um homem que por ele próprio fora
beneficiado a mãos repletas? Se o céu não enviar logo seus espíritos visíveis para que aqui em baixo
venham reprimir essas vis atrocidades, será fatal: vão devorar-se os homens uns aos outros, como os
monstros do abismo. GONERIL - O sujeito de fígado de leite, com rosto para receber pancada e fronte
para insultos! Não tens olhos que possam distinguir a honra do insulto. Desconheces que são somente os
tolos que mostram compaixão do celerado, quando a pena recebe, antes de tempo ter de fazer o mal.
Onde se encontra teu tambor? Já desfralda os estandartes a França em nossa terra silenciosa. Teu
matador, com elmo empenachado, te ameaça, e tu, meu tolo moralista, permaneces sentado e
choramingas: "Ah! Por que fez ele isso?"
ALBÂNIA - Olha em ti própria, demônia! A original deformidade não é tão repelente nos demônios,
como numa mulher.
GONERIL - Oh tolo tímido!
ALBÂNIA - Cria vergonha, criatura falsa, que de ti própria retiraste a máscara, e cessa de animalizar os
traços! Se me ficasse bem deixar que ao sangue as mãos obedecessem, mui capazes seriam de quebrar-te
os ossos todos e lacerar-te as carnes. Mas embora sejas o próprio diabo, ora te ampara a forma de mulher.
GONERIL - Como valente se tornou num instante!
(Entra um mensageiro.)
ALBÂNIA - Que há de novo?
MENSAGEIRO - Senhor, morreu o duque de Cornualha. Matou-o um criado, quando pretendia arrancar
o segundo olho de Gloster.
ALBÂNIA - Como! Os olhos de Gloster?
MENSAGEIRO - Um dos próprios servidores, por ele mesmo criado, se opôs ao ato, a espada então
sacando contra seu grande mestre, o qual, colérico contra ele se lançou e o prostrou morto, não, porém,
sem aquele fatal golpe que depois o matou.
ALBÂNIA - Isso demonstra que morais aí em cima, ó Justiceiros! para punirdes com tamanha pressa os
crimes cá de baixo. Mas é certo que perdeu o outro olho o pobre Gloster?
MENSAGEIRO - Ambos, senhor. Resposta urgente exige, senhora, esta missiva. Vem da parte de vossa
irmã.
GONERIL (à parte) - Agrada-me isso a meias. Mas estando viúva e ao lado dela meu Gloster se
encontrando, é bem possível que os castelos de minha fantasia esmagar venham minha vida odiosa.
Porém por outro lado essa notícia não me parece má.
(Ao mensageiro.)
Vou lê-la e logo responderei.
(Sai.)
ALBÂNIA - E onde se achava o filho, no momento em que os olhos lhe arrancaram?
MENSAGEIRO - Para cá tinha vindo com a senhora.
ALBÂNIA - Mas aqui não se encontra.
MENSAGEIRO - Não, milorde; encontrei-o de volta novamente.
ALBÂNIA - Soube ele dessa infâmia?
MENSAGEIRO - Sim, bondoso senhor; o delator foi ele próprio, tendo saído para que o castigo tivesse
livre curso.
ALBÂNIA - Gloster, vivo para te dar os agradecimentos pelo amor que mostraste ao rei e para vingar
teus olhos. Vem aqui, amigo; conta o mais que souberes.`
(Saem.)
GONERIL - Sois bem-vindo, senhor. Estranho muito que o nosso brando esposo não nos tenha saído a
receber.
(Entra Osvaldo.)
Que é de vosso amo?
OSVALDO - Senhora, está lá dentro; porém nunca homem nenhum mudou, como ele, tanto. Contei-lhe
que desembarcaram forças. Sorriu à nova. Disse-lhe que vínheis para cá; respondeu: "Tanto pior". Ao lhe
falar da alta traição de Gloster e da lealdade de seu filho Edmundo, chamou-me de papalvo,
declarando-me que eu havia tomado o pior partido. Tudo quanto ele detestar devia, lhe ensejava prazer.
GONERIL (a Edmundo) - Não é preciso, portanto, irdes mais longe. E seu espírito covarde e aterrorado
que não ousa decidir-se por nada. Não deseja sentir o ultraje que à resposta o force. Os votos que fizemos
em caminho talvez se efetuarão. Voltai, Edmundo, para o mano; reuni seus homens logo e o comando
assumi de seu exército. Terei de me aprestar com nossas armas e pôr na mão de meu marido a roca. Este
fiel servidor irá servir-nos de intermediário. Dentro de pouquinho - se algo arriscardes para vosso ganho -
ordens recebereis de vossa dama. Usai isto.
(Dá-lhe uma prenda.)
Poupai qualquer discurso. Abaixai a cabeça. Ora, este beijo se a falar se atrevesse, exalçaria teu espírito
às nuvens. Vai; compreende e passa bem.
EDMUNDO - Confesso-me por vosso nas fileiras da morte.
GONERIL - Meu caríssimo Gloster!
(Sai Edmundo.)
Oh! Que distância vai de um homem para outro! Bem mereces os serviços de uma mulher. Meu bobo é
que me usurpa presentemente o leito.
OSVALDO - Aí vem meu amo.
(Sai.)
(Entra Albânia.)
GONERIL - Antes eu merecia um assobio.
ALBÂNIA - Ó Goneril, digna não sois da poeira que vos atira ao rosto o vento rude. Inspira-me pavor
vosso caráter. Quando renega um ser a própria origem, em si mesmo contido não prossegue. Quem se
arranca a si próprio e se desgalha da seiva substancial, é inevitável que a secar venha e pela morte caia.
GONERIL - Basta; o texto é cretino.
ALBÂNIA - Para o baixo o saber e a bondade são mesquinhos. Só a si mesma aprecia a sujidade. Que
perpetrastes? Tigres, sim, não filhas: que fizestes? Um pai, um velho afável, cuja figura régia até mesmo
um urso preso à corda afagara, por vós duas - degeneradas! bárbaras! - lançado foi à loucura. Como se
compreende que meu bondoso irmão o permitisse, um nobre, um homem que por ele próprio fora
beneficiado a mãos repletas? Se o céu não enviar logo seus espíritos visíveis para que aqui em baixo
venham reprimir essas vis atrocidades, será fatal: vão devorar-se os homens uns aos outros, como os
monstros do abismo. GONERIL - O sujeito de fígado de leite, com rosto para receber pancada e fronte
para insultos! Não tens olhos que possam distinguir a honra do insulto. Desconheces que são somente os
tolos que mostram compaixão do celerado, quando a pena recebe, antes de tempo ter de fazer o mal.
Onde se encontra teu tambor? Já desfralda os estandartes a França em nossa terra silenciosa. Teu
matador, com elmo empenachado, te ameaça, e tu, meu tolo moralista, permaneces sentado e
choramingas: "Ah! Por que fez ele isso?"
ALBÂNIA - Olha em ti própria, demônia! A original deformidade não é tão repelente nos demônios,
como numa mulher.
GONERIL - Oh tolo tímido!
ALBÂNIA - Cria vergonha, criatura falsa, que de ti própria retiraste a máscara, e cessa de animalizar os
traços! Se me ficasse bem deixar que ao sangue as mãos obedecessem, mui capazes seriam de quebrar-te
os ossos todos e lacerar-te as carnes. Mas embora sejas o próprio diabo, ora te ampara a forma de mulher.
GONERIL - Como valente se tornou num instante!
(Entra um mensageiro.)
ALBÂNIA - Que há de novo?
MENSAGEIRO - Senhor, morreu o duque de Cornualha. Matou-o um criado, quando pretendia arrancar
o segundo olho de Gloster.
ALBÂNIA - Como! Os olhos de Gloster?
MENSAGEIRO - Um dos próprios servidores, por ele mesmo criado, se opôs ao ato, a espada então
sacando contra seu grande mestre, o qual, colérico contra ele se lançou e o prostrou morto, não, porém,
sem aquele fatal golpe que depois o matou.
ALBÂNIA - Isso demonstra que morais aí em cima, ó Justiceiros! para punirdes com tamanha pressa os
crimes cá de baixo. Mas é certo que perdeu o outro olho o pobre Gloster?
MENSAGEIRO - Ambos, senhor. Resposta urgente exige, senhora, esta missiva. Vem da parte de vossa
irmã.
GONERIL (à parte) - Agrada-me isso a meias. Mas estando viúva e ao lado dela meu Gloster se
encontrando, é bem possível que os castelos de minha fantasia esmagar venham minha vida odiosa.
Porém por outro lado essa notícia não me parece má.
(Ao mensageiro.)
Vou lê-la e logo responderei.
(Sai.)
ALBÂNIA - E onde se achava o filho, no momento em que os olhos lhe arrancaram?
MENSAGEIRO - Para cá tinha vindo com a senhora.
ALBÂNIA - Mas aqui não se encontra.
MENSAGEIRO - Não, milorde; encontrei-o de volta novamente.
ALBÂNIA - Soube ele dessa infâmia?
MENSAGEIRO - Sim, bondoso senhor; o delator foi ele próprio, tendo saído para que o castigo tivesse
livre curso.
ALBÂNIA - Gloster, vivo para te dar os agradecimentos pelo amor que mostraste ao rei e para vingar
teus olhos. Vem aqui, amigo; conta o mais que souberes.`
(Saem.)
REI LEAR, ATO IV, Cena VI
Região perto de Dover. Entram Gloster e Edgar vestido como camponês.
GLOSTER - Quando estarei no cimo da colina?
EDGAR - Já estais subindo. Vede nosso esforço.
GLOSTER - Tenho a impressão de que o terreno é plano.
EDGAR - Horrivelmente abrupto. Não ouvis o barulho do mar?
GLOSTER - Não, em verdade.
EDGAR - E que os outros sentidos tendes fracos pelo que os olhos sofrem.
GLOSTER - É possível. Parece-me que tens a voz mudada e que com mais sentido agora falas e melhor
expressão.
EDGAR - É puro engano de vossa parte; em nada estou mudado, se não for nestas vestes.
GLOSTER - Não; parece-me que te exprimes melhor.
EDGAR - Vamos, senhor; eis o lugar. Chegamos. Ficai quieto. Como é terrível! É de dar vertigens olhar
nesta distância para baixo. Como os corvos e as gralhas que transvoam o ar intermédio ficam pequeninos
como besouros! Vê-se à meia altura, suspenso, um homem que procura funcho. Profissão arriscada! A
impressão tenho de que ele é do tamanho da cabeça. Os pescadores que andam pela praia parecem-se
com ratos; a barcaça ali ancorada, tão pequena se acha como o próprio escaler, e este se encontra
reduzido a uma bóia, pequenina demais para ser vista. As marulhosas vagas que batem nos inumeráveis e
preguiçosos seixos não se fazem ouvir de tanta altura. É-me impossível olhar mais tempo assim, pois
tenho medo de vir a ter vertigens, atirando-me a vista de cabeça para baixo.
GLOSTER - Coloca-me no ponto em que te encontras.
EDGAR - Dai-me a mão; só um passo vos separa da borda extrema. Por quanto há debaixo da lua, eu não
saltara dessa altura.
GLOSTER - Solta-me a mão; recebe esta outra bolsa; dentro dela há uma jóia que merece ficar com
algum pobre. Os deuses todos e as fadas te protejam. Vai-te embora; dize adeus, pois desejo ouvir teus
passos.
EDGAR - Passai bem, bom senhor.
GLOSTER - Agradecido de todo coração.
EDGAR (à parte) - A brincadeira que faço com a desgraça dele, visa, tão-somente, curá-lo.
GLOSTER - Ó deuses grandes, renuncio a este mundo e, em vossa vista, paciente, me despojo do meu
grande sofrimento! Pudesse eu suportá-lo por mais tempo, sem luta abrir com vossa vontade irresistível,
este abjeto morrão da natureza se deixara consumir até ao fim. Se ainda com vida estiver meu Edgar, oh!
abençoai-o! E agora, amigo, adeus.
(Cai para a frente.)
EDGAR - Adeus, senhor; já fui embora. (À parte.) Conceber não posso como a imaginação roubar
consegue da vida a rara jóia, quando a própria vida se presta ao roubo. Se se achasse onde pensava estar,
neste momento pensar já não pudera. Vivo ou morto? (A Gloster.) Então, senhor! Amigo! Estais me
ouvindo? Poderia morrer... Mas não; revive. Que sois, senhor? Dizei-me. GLOSTER - Vai-te embora e
deixa-me morrer.
EDGAR - Se algo mais fosses do que ar, teia de aranha, leve pluma, caindo assim de tantas braças do
alto, partido já estarias como um ovo. Mas respiras, possuis pesado corpo, não perdes sangue, estás
inteiro, filas. Dez mastros superpostos não bastaram para medir a altura de onde caíste
perpendicularmente. Verdadeiro milagre é tua vida. Vamos, fala!
GLOSTER - Mas eu caí ou não?
EDGAR - Sim, lá do pico desta penha calcária. Olha para o alto; ver e ouvir não se pode a cotovia de
garganta estridente. Olha para o alto!
GLOSTER - Ai de mim! Não tenho olhos! É negada à desgraça o benefício de pôr termo com a morte á
própria angústia. Era consolo para o sofrimento poder lograr a raiva do tirano e frustrar seus intentos
orgulhosos.
EDGAR - Dai-me o braço. De pé! Então, e agora? Sentis as pernas? Eis-vos levantado.
GLOSTER - Bem; muito bem.
EDGAR - Tudo isso é muito estranho. Que era que estava no alto do penhasco e se apartou de vós?
GLOSTER - Um miserável. Um mendigo infeliz.
EDGAR - Daqui debaixo onde me achava, pareciam duas luas os olhos dele. Dotado era de mil narizes,
cornos retorcidos e ondeados como os sulcos do mar bravo. Decerto era um demônio. Por tudo isso,
lembra-te, feliz pai, que os deuses claros que da importância dos mortais constroem toda sua glória, a
vida te salvaram.
GLOSTER - Agora penso nisso; de hoje em diante pretendo suportar o sofrimento até que por si mesmo
ele me grite: "Basta! Basta!" e pereça. Por um homem tomei a coisa a que vos referistes. Dizia muitas
vezes: "O demônio!" Foi ele que me pôs naquela ponta.
EDGAR - Possas agora ter só pensamentos tranqüilos e confiantes. Mas, que vejo! Quem vem aí
(Entra Lear, fantasticamente enfeitado com flores.)
Jamais a sã razão vestirá seu senhor dessa maneira.
LEAR - Não; não poderão pegar-me por cunhar moedas; sou o rei.
EDGAR - Oh espetáculo de transpassar o coração!
LEAR - Nisto a natureza sobrepuja a arte. Eis vosso soldo. Aquele sujeito maneja o arco como se fosse
um espantalho... Cortai-me uma jarda de pano. Vede! Um rato! Paz! Paz! Este pedaço de queijo frio
resolverá o assunto. Eis minha luva; medir-me-ei com um gigante. Trazei as alabardas escuras. Oh!
Bonito vôo, passarinho! No alvo! No alvo, hu! A senha, vamos!
EDGAR - Doce mangerona.
LEAR - Passai.
GLOSTER - Conheço essa voz.
LEAR - Ah! Goneril de barba branca! Adularam-me como um cão e me disseram que os pêlos brancos
de minha barba nasceram antes dos pretos. Responder "sim" e "não" a tudo o que eu dizia! "Sim" e "não"
ao mesmo tempo não era boa teologia. No dia em que a chuva veio para molhar-me e o vento para me
fazer bater o queixo, e em que o trovão se recusava a obedecer-me, foi quando as encontrei; foi quando
lhes percebi o cheiro. Ide embora; não têm palavra. Disseram-me que eu era tudo. É mentira! Não estou à
prova de febre.
GLOSTER - Lembro-me dessa voz perfeitamente. Não é o rei?
LEAR - Rei da cabeça aos pés. Vede os vassalos como tremem, quando fito neles os olhos. Ora apraz-me
perdoar a este homem. Qual o crime dele? Adultério? Não morrerás! Morrer por adultério? Não; isso faz
o pintassilgo, e à minha vista a mosca dourada é libertina. Porque o filho bastardo do bom Gloster foi
melhor para o pai que minhas filhas lealmente geradas. A vontade, luxúria, em toda parte! Preciso de
soldados. Vede aquela senhora sorridente, cujo rosto anuncia pura neve na união das coxas. Só virtude
mostra, sacudindo a cabeça sempre que ouve o nome do prazer. O furão e o corcel arrebatado não
revelam mais lúbrico apetite. Abaixo da cintura são centauros, muito embora mulheres para cima. Até à
cintura os deuses é que mandam; para baixo, os demônios. Ali é o inferno, escuridão, abismo sulfuroso,
calor, fervura, cheiro de podridão... Xi! Xi! Pá! Ó bondoso boticário, dá-me uma onça de almíscar, para
eu temperar a imaginação. Aqui tens dinheiro. GLOSTER -- Deixai-me beijar essa mão.
LEAR -- Primeiro deixai que a limpe; cheira a mortalidade.
GLOSTER -- Ó arruinada peça da natura! O imenso mundo há de gastar-se todo, reduzindo-se a nada.
Reconheces-me?
LEAR -- Lembro-me perfeitamente de teus olhos. Estás piscando para mim? Não, Cupido cego; por
mais que faças, não chegarei a amar-te. Lê este desafio; observa bem o traço das letras.
GLOSTER -- Se outros tantos sóis fossem, não as vira.
EDGAR(à parte) -- Se mo dissessem, não o acreditara. No entanto é certo e o coração me parte.
LEAR -- Lê!
GLOSTER -- Como! Com as órbitas apenas?
LEAR -- Oh! oh! Alcançastes-me nesse ponto? Nem olhos na cabeça, nem dinheiro na bolsa? Tendes os
olhos pesados e a bolsa leve; no entanto, podeis ver como vai o mundo.
GLOSTER -- Vejo-o porque o sinto.
LEAR -- Como! Estais louco! A gente pode ver sem olhos como vai o mundo. Olha com as orelhas; vê
como aquele juiz invectiva contra um simples ladrão. Escuta aqui, só uma palavrinha ao ouvido. Muda
de lugar... Um, dois, três! E ago ra: qual é o ladrão? Qual é o juiz? Já viste um cachorro de fazendeiro
ladrar para um mendigo?
GLOSTER -- Já, sim senhor.
LEAR -- E a criatura fugir do mastim? Nisso poderás contemplar a grande imagem da autoridade: um
cachorro no desempenho de suas funções é obedecido. Oficial de justiça desonesto, suspende a mão
sangrenta! Por que açoitas essa pobre rameira? Vira contra ti próprio essa chibata. Estás ardendo de
desejos de com ela realizares o ato por que a castigas. O onzeneiro põe na forca o ladrão. As faltazinhas
se deixam ver nos furos dos andrajos; mas as togas e as peles tudo encobrem. Forra de ouro o pecado, e a
forte lança da Justiça se quebra sem feri-lo;
cobre-o de trapos, e uma simples palha vibrada por pigmeu vai transpassá-lo. Ninguém comete falta, é o
que te afirmo; ninguém. A todos sirvo de fiador. Podes acreditar-me, amigo; fala-te quem força tem para
fechar a boca da acusação. Arranja umas lunetas e, como vil político, imagina ver coisas que não vês.
Bum, bum, bum, bum! Tirai-me as botas. Força! Força!... Assim...
EDGAR (à parte) - Que mistura de senso e de incoerência! A razão na loucura.
LEAR - Toma meus olhos, se chorar desejas minha infelicidade. Sei de sobra quem és. Teu nome é
Gloster. Pois bem sabes: ao respirarmos pela vez primeira, choramos e gememos. Vou fazer-te sobre isso
um bom sermão; sê, pois, atento.
GLOSTER - Oh dia triste!
LEAR - Mas nascemos, choramos por nos vermos neste grande tablado de dementes. Que bela forma de
chapéu! Seria idéia mui sutil pôr ferraduras de feltro nos cavalos de uma tropa. Vou tentá-lo; e, uma vez
caindo em cima de meus genros: matar, matar, matar!
(Entra um gentil-homem, com criados.)
GENTIL-HOMEM - Oh, ei-lo aqui! Com jeito segurai-o. Meu senhor, vossa filha muito amada...
LEAR - Não há socorro! Como! Prisioneiro? Sou realmente joguete da fortuna. Tratei-me bem;
pagar-vos-ei resgate. Trazei-me um cirurgião, pois tenho o cérebro muito ofendido.
GENTIL-HOMEM - Haveis de ter de tudo.
LEAR - Ninguém vem ajudar-me? Estou sozinho? Isso em homem de sal mudara um homem, para fazer
de irrigador os olhos, sim, e a poeira do outono deixar úmida.
GENTIL-HOMEM - Meu bom senhor...
LEAR - Morrerei como bravo, como noivo... Como! Jovial hei de mostrar-me. Vamos! Sou rei, meus
mestres; ignorais tal coisa?
GENTIL-HOMEM - É rei notável, a quem muito amamos.
LEAR - Então ainda há vida. Se a alcançardes, há de ser na carreira. Sá, sá, sá!...
(Sai; os criados o acompanham.)
GENTIL-HOMEM - Lastimoso já fora este espetáculo no mais ínfimo ser e desgraçado. Num rei, não
cabe no discurso humano. Uma filha ainda tens que a natureza limpa da maldição geral que as outras
fizeram vir sobre ela.
EDGAR - Salve, senhor.
GENTIL-HOMEM - Senhor, o céu vos guarde. Que desejais?
EDGAR - Ouvistes, porventura, falar de uma batalha a ser travada?
GENTIL-HOMEM - É certo e mui sabido. Todo o mundo que sons distingue, ouviu falar sobre isso.
EDGAR - Mas, por obséquio: a que distância se acha o outro exército?
GENTIL-HOMEM- Perto, e vem com pressa. A vista surgirá dentro de uma hora; é o que se espera.
EDGAR - Agradecido. É tudo.
GENTIL-HOMEM - Muito embora a rainha aqui se encontre por um motivo especial, o exército dela
avançou.
EDGAR - Bem; muito agradecido.
(Sai o gentil-homem.)
GLOSTER - Ó deuses sempre bons! tirai-me a vida, não permitindo que meu mau espírito tentar me
venha novamente, para que à vossa revelia eu peça a morte.
EDGAR - Pai, rezais muito bem.
GLOSTER - Quem sois, amigo?
EDGAR - Indivíduo mui pobre, que os reveses da fortuna amansou e que pela arte das desgraças alheias
e das próprias à compaixão se revelou sensível.
GLOSTER - Do imo peito agradeço. Que a bondade do céu e sua bênção te acompanhem sempre e
sempre.
(Entra Osvaldo.)
OSVALDO - Oh! Cabeça posta a prêmio! Encontro mui feliz! Essa cabeça sem olhos só criou carne
porque a minha fortuna prosperasse. Miserável traidor, concentra-te depressa, a espada que vai tirar-te a
vida está sacada.
GLOSTER - Então põe força em tua mão amiga.
(Edgar se interpõe.)
OSVALDO - Por que te atreves, rústico atrevido, a amparar um traidor, publicamente como tal
proclamado? Vai-te embora; do contrário, a infecção da sorte dele passará para ti. Larga-lhe o braço!
EDGAR - Não largo ele, seu moço; não há percisão disso.
OSVALDO - Solta-o, escravo! Do contrário, morrerás.
EDGAR - Ide embora, seu moço; ide embora e deixai os pobre viver. Se as ameaças pudessem tirar-me a
vida, esta teria sido encurtada de uma quinzena. Não vos aproximeis do velho; ficai de longe, é o que eu
digo, ou então vamos tirar a prova para ver o que é mais duro, se vosso coco ou este meu cacete. Gosto
de franqueza.
OSVALDO - Sai da frente, monturo!
EDGAR - Vou curar vossos dentes, seu moço. Vinde. Vossos botes não me metem medo.
(Batem-se; Edgar o abate.)
OSVALDO - Oh! matas-te-me, escravo! Coisa à-toa, fica com minha bolsa. Se desejas prosperar,
sepultura dá a meu corpo e entrega as cartas que aqui trago a Edmundo, conde de Gloster. Morte
intempestiva!
(Morre.)
EDGAR - Sei quem és, um velhaco diligente; tão dedicado aos vícios da patroa quanto a maldade desejar
pudera.
GLOSTER - Como! Morreu?
EDGAR - Pai, repousai; Sentai-vos. Revistemos-lhe os bolsos. Essas cartas de que falou serão talvez
amigas. Morreu; só me aborrece não ter ele tido um outro carrasco. Mas vejamos. Permiti mole cera; e
vós, costumes, não nos culpeis; porque saber possamos as idéias de nossos inimigos os próprios corações
lhes abriríamos. Abrir cartas, assim é mais legítimo. "Lembrai-vos de nossos juramentos recíprocos.
Tendes muitas oportunidades de suprimi-lo; se vontade não vos faltar, oportunidade e lugar haveis de ter
de sobra. Nada se terá feito se ele voltar como vencedor, porque ficarei como sua prisioneira e o leito
dele como minha prisão. Libertai-me, portanto, desse calor odioso, e, pelo vosso trabalho, ficai com o
lugar dele. Vossa - esposa é o que eu desejara chamar-me - serva afetuosa Goneril. " Oh insondável
campo da perfídia feminina! Uma conjura contra a vida de um marido tão virtuoso, para ser por meu
mano substituído! Vou enterrar-te aqui na areia mesmo, sacrilego correio de assassinos luxuriosos, a fim
de em tempo certo ferir a vista do ameaçado duque com este papel fatal. E está com sorte por eu poder
contar-lhe de tua morte.
GLOSTER - O rei ficou insano; quão teimoso meu vil juízo se mostra, permitindo-me ficar de pé e
intacto me deixando o sentido de minha dor imensa. Fora melhor ficar de todo louco. Assim se
apartariam das tristezas os pensamentos, que as desgraças perdem a autoconsciência, quando sob o
império de errôneas fantasias.
(Ruído de tambor ao longe.)
EDGAR - Dai-me a mão. Ouço ao longe um tambor, se não me engano. Vamos, pai; vou confiar-vos a
um amigo.
(Saem.)
Cena VII
Uma tenda no acampamento francês. Entram Cordélia, Kent, um médico e um gentil-homem.
CORDÉLIA - Ó meu bondoso Kent, de que maneira posso viver e agir, para que a tua bondade
recompense? Minha vida será curta demais, sem que eu disponha de medida adequada.
KENT - Já me sobram, senhora, os vossos agradecimentos Vai de par meu relato com a mais simples
verdade, sem acréscimos nem falhas.
CORDÉLIA - Veste roupa melhor; essa roupagem faz lembrados momentos muito tristes. Por favor,
troca-a.
KENT - Não, cara senhora; perdoai-me; mas prejudicara muito meus planos dar-me a conhecer agora.
Como graça vos peço continuardes sem me reconhecer, até que o tempo e eu concordemos nisso.
CORDÉLIA - Pois que seja, meu bondoso senhor. (Ao médico.) Que faz o rei?
O MÉDICO - Ainda dorme, senhora.
CORDÉLIA - Ó divindades piedosas, deixai boa a grande brecha de sua natureza maltratada! Afinai os
sentidos em desordem e dissonantes deste pai que em criança voltou a transformar-se.
O MEDICO - Vossa Alteza permitirá que o rei nós despertemos? Já dormiu muito.
CORDÉLIA - Segui nisso apenas vossos conhecimentos, procedendo como melhor julgardes. Já o
vestiram?
(Entra Lear numa cadeira, carregado por criados.)
GENTIL-HOMEM - Já sim, senhora, pois no mais pesado do sono lhe trocamos toda a roupa.
O MÉDICO - Ficai junto, senhora, no momento de o despertarmos, pois não tenho dúvidas quanto a suas
melhoras.
CORDÉLIA - Muito bem.
(Música.)
O MÉDICO - Aproximai-vos, por favor. A música, aí, mais alto!
CORDÉLIA - Ó meu querido pai! Em meus lábios suspende teus remédios, convalescença, e deixa que
este beijo repare a imensa dor que minhas manas produziram em tua reverência.
KENT - Minha boa princesa e mui querida!
CORDÉLIA - Mesmo que pai não fosse delas duas. estes cabelos brancos lhes teriam forçado à
compaixão. Uma cabeça como esta poderia ser exposta à fúria das rajadas? defrontar-se com o trovão
pavoroso e o mais terrível ziguezaguear de temerosos raios? Ficar de guarda - pobre sentinela! - com este
elmo tão fino? O próprio cão do meu imigro, embora me tivesse mordido, houvera, numa noite dessas,
permanecido junto do meu fogo. E tu, meu pobre pai, foste forçado a abrigar-te com porcos e mendigos
numa pouca de palha embolorada! Ai, que dor. Maravilha é não haveres a um só tempo perdido a vida e
o espírito. Vai acordar; falai-lhe.
O MÉDICO - Vós, senhora; será melhor.
CORDÉLIA - Como se sente agora meu real senhor? E Vossa Majestade como passa?
LEAR - Foi mal de vossa parte retirar-me do túmulo. És uma alma da bem-aventurança; eu, porém, me
acho a uma roda de fogo sempre atado, que minhas próprias lágrimas escaldam como chumbo fundido.
CORDÉLIA - Conheceis-me, senhor?
LEAR - És um espírito; conheço-te. Desde quando morreste?
CORDÉLIA - Divagando sempre por muito longe.
O MÉDICO - Concedei-lhe mais algum tempo; despertou há pouco.
LEAR - Onde estive? Onde estou? É dia claro? Oh! Procederam muito mal comigo; morrer de
compaixão eu poderia, se visse alguém tratado desse modo. Não sei o que dizer; jurar não quero que
estas mãos sejam minhas. Mas vejamos: sinto esta alfinetada. Quem me dera saber quem sou, realmente.
CORDÉLIA - Senhor, olhai para o meu lado, e as mãos estendei sobre mim, para abençoar-me. Não,
meu senhor! Não vos ponhais de joelhos!
LEAR - Ah! Não zombeis de mim, é o que vos peço. Sou um velho imprestável e caduco, para cima de
oitenta, nem uma hora mais nem menos. E, para ser sincero, receio ter o espírito avariado. Creio vos
conhecer e, assim, a este homem; mas em dúvida me acho, pois ignoro de todo onde me encontro, sem
que possa lembrar-me destas vestes. De igual modo não sei onde passei a última noite. Oh! não riais de
mim! Porque tão certo como eu ser homem, quer afigurar-me que esta dama é Cordélia, minha filha.
CORDÉLIA - Sou ela mesma, meu senhor; sou ela.
LEAR - Tendes lágrimas úmidas? Realmente. Não choreis, é o que peço. Se tiverdes veneno para
dar-me, hei de bebê-lo. Sei que amor não me tendes. Vossas manas - tanto quanto me lembro -
procederam comigo muito mal. Mas tendes causa; ao passo que nenhuma delas tinha.
CORDÉLIA - Nenhuma causa! Não; nenhuma causa!
LEAR - Estou na França?
KENT - Em vosso próprio reino, senhor.
LEAR - Não me enganeis.
O MÉDICO - Ficai tranqüila, boa senhora. Já está morta nele, como estais vendo, a grande fúria. Agora
perigoso é fazê-lo novamente subir ao longo do perdido tempo. Levai-o para dentro, sem cansá-lo com
perguntas, até que se refaça.
CORDÉLIA - Quererá Vossa Alteza andar um pouco?
LEAR - Precisareis comigo ter paciência. Esquecei e perdoai-me, por obséquio. Estou velho e caduco.
(Saem Lear, Cordélia, o médico e os criados.)
GENTIL-HOMEM - Confirmou-se a notícia, senhor, de que o duque de Cornualha foi morto?
KENT - Perfeitamente, senhor.
GENTIL-HOMEM - Quem está à testa de seus homens?
KENT - Ao que dizem, o filho bastardo de Gloster.
GENTIL-HOMEM - Dizem que Edgar, seu filho exilado, está na Alemanha com o conde de Kent.
KENT - Os boatos variam. É tempo de abrirmos os olhos; as forças do reino se aproximam com presteza.
GENTIL-HOMEM - A decisão promete ser sangrenta. Passai bem, senhor.
(Sai.)
KENT - Ou boa ou má, a minha conclusão os golpes de hoje à luz sair farão.
(Sai.)
GLOSTER - Quando estarei no cimo da colina?
EDGAR - Já estais subindo. Vede nosso esforço.
GLOSTER - Tenho a impressão de que o terreno é plano.
EDGAR - Horrivelmente abrupto. Não ouvis o barulho do mar?
GLOSTER - Não, em verdade.
EDGAR - E que os outros sentidos tendes fracos pelo que os olhos sofrem.
GLOSTER - É possível. Parece-me que tens a voz mudada e que com mais sentido agora falas e melhor
expressão.
EDGAR - É puro engano de vossa parte; em nada estou mudado, se não for nestas vestes.
GLOSTER - Não; parece-me que te exprimes melhor.
EDGAR - Vamos, senhor; eis o lugar. Chegamos. Ficai quieto. Como é terrível! É de dar vertigens olhar
nesta distância para baixo. Como os corvos e as gralhas que transvoam o ar intermédio ficam pequeninos
como besouros! Vê-se à meia altura, suspenso, um homem que procura funcho. Profissão arriscada! A
impressão tenho de que ele é do tamanho da cabeça. Os pescadores que andam pela praia parecem-se
com ratos; a barcaça ali ancorada, tão pequena se acha como o próprio escaler, e este se encontra
reduzido a uma bóia, pequenina demais para ser vista. As marulhosas vagas que batem nos inumeráveis e
preguiçosos seixos não se fazem ouvir de tanta altura. É-me impossível olhar mais tempo assim, pois
tenho medo de vir a ter vertigens, atirando-me a vista de cabeça para baixo.
GLOSTER - Coloca-me no ponto em que te encontras.
EDGAR - Dai-me a mão; só um passo vos separa da borda extrema. Por quanto há debaixo da lua, eu não
saltara dessa altura.
GLOSTER - Solta-me a mão; recebe esta outra bolsa; dentro dela há uma jóia que merece ficar com
algum pobre. Os deuses todos e as fadas te protejam. Vai-te embora; dize adeus, pois desejo ouvir teus
passos.
EDGAR - Passai bem, bom senhor.
GLOSTER - Agradecido de todo coração.
EDGAR (à parte) - A brincadeira que faço com a desgraça dele, visa, tão-somente, curá-lo.
GLOSTER - Ó deuses grandes, renuncio a este mundo e, em vossa vista, paciente, me despojo do meu
grande sofrimento! Pudesse eu suportá-lo por mais tempo, sem luta abrir com vossa vontade irresistível,
este abjeto morrão da natureza se deixara consumir até ao fim. Se ainda com vida estiver meu Edgar, oh!
abençoai-o! E agora, amigo, adeus.
(Cai para a frente.)
EDGAR - Adeus, senhor; já fui embora. (À parte.) Conceber não posso como a imaginação roubar
consegue da vida a rara jóia, quando a própria vida se presta ao roubo. Se se achasse onde pensava estar,
neste momento pensar já não pudera. Vivo ou morto? (A Gloster.) Então, senhor! Amigo! Estais me
ouvindo? Poderia morrer... Mas não; revive. Que sois, senhor? Dizei-me. GLOSTER - Vai-te embora e
deixa-me morrer.
EDGAR - Se algo mais fosses do que ar, teia de aranha, leve pluma, caindo assim de tantas braças do
alto, partido já estarias como um ovo. Mas respiras, possuis pesado corpo, não perdes sangue, estás
inteiro, filas. Dez mastros superpostos não bastaram para medir a altura de onde caíste
perpendicularmente. Verdadeiro milagre é tua vida. Vamos, fala!
GLOSTER - Mas eu caí ou não?
EDGAR - Sim, lá do pico desta penha calcária. Olha para o alto; ver e ouvir não se pode a cotovia de
garganta estridente. Olha para o alto!
GLOSTER - Ai de mim! Não tenho olhos! É negada à desgraça o benefício de pôr termo com a morte á
própria angústia. Era consolo para o sofrimento poder lograr a raiva do tirano e frustrar seus intentos
orgulhosos.
EDGAR - Dai-me o braço. De pé! Então, e agora? Sentis as pernas? Eis-vos levantado.
GLOSTER - Bem; muito bem.
EDGAR - Tudo isso é muito estranho. Que era que estava no alto do penhasco e se apartou de vós?
GLOSTER - Um miserável. Um mendigo infeliz.
EDGAR - Daqui debaixo onde me achava, pareciam duas luas os olhos dele. Dotado era de mil narizes,
cornos retorcidos e ondeados como os sulcos do mar bravo. Decerto era um demônio. Por tudo isso,
lembra-te, feliz pai, que os deuses claros que da importância dos mortais constroem toda sua glória, a
vida te salvaram.
GLOSTER - Agora penso nisso; de hoje em diante pretendo suportar o sofrimento até que por si mesmo
ele me grite: "Basta! Basta!" e pereça. Por um homem tomei a coisa a que vos referistes. Dizia muitas
vezes: "O demônio!" Foi ele que me pôs naquela ponta.
EDGAR - Possas agora ter só pensamentos tranqüilos e confiantes. Mas, que vejo! Quem vem aí
(Entra Lear, fantasticamente enfeitado com flores.)
Jamais a sã razão vestirá seu senhor dessa maneira.
LEAR - Não; não poderão pegar-me por cunhar moedas; sou o rei.
EDGAR - Oh espetáculo de transpassar o coração!
LEAR - Nisto a natureza sobrepuja a arte. Eis vosso soldo. Aquele sujeito maneja o arco como se fosse
um espantalho... Cortai-me uma jarda de pano. Vede! Um rato! Paz! Paz! Este pedaço de queijo frio
resolverá o assunto. Eis minha luva; medir-me-ei com um gigante. Trazei as alabardas escuras. Oh!
Bonito vôo, passarinho! No alvo! No alvo, hu! A senha, vamos!
EDGAR - Doce mangerona.
LEAR - Passai.
GLOSTER - Conheço essa voz.
LEAR - Ah! Goneril de barba branca! Adularam-me como um cão e me disseram que os pêlos brancos
de minha barba nasceram antes dos pretos. Responder "sim" e "não" a tudo o que eu dizia! "Sim" e "não"
ao mesmo tempo não era boa teologia. No dia em que a chuva veio para molhar-me e o vento para me
fazer bater o queixo, e em que o trovão se recusava a obedecer-me, foi quando as encontrei; foi quando
lhes percebi o cheiro. Ide embora; não têm palavra. Disseram-me que eu era tudo. É mentira! Não estou à
prova de febre.
GLOSTER - Lembro-me dessa voz perfeitamente. Não é o rei?
LEAR - Rei da cabeça aos pés. Vede os vassalos como tremem, quando fito neles os olhos. Ora apraz-me
perdoar a este homem. Qual o crime dele? Adultério? Não morrerás! Morrer por adultério? Não; isso faz
o pintassilgo, e à minha vista a mosca dourada é libertina. Porque o filho bastardo do bom Gloster foi
melhor para o pai que minhas filhas lealmente geradas. A vontade, luxúria, em toda parte! Preciso de
soldados. Vede aquela senhora sorridente, cujo rosto anuncia pura neve na união das coxas. Só virtude
mostra, sacudindo a cabeça sempre que ouve o nome do prazer. O furão e o corcel arrebatado não
revelam mais lúbrico apetite. Abaixo da cintura são centauros, muito embora mulheres para cima. Até à
cintura os deuses é que mandam; para baixo, os demônios. Ali é o inferno, escuridão, abismo sulfuroso,
calor, fervura, cheiro de podridão... Xi! Xi! Pá! Ó bondoso boticário, dá-me uma onça de almíscar, para
eu temperar a imaginação. Aqui tens dinheiro. GLOSTER -- Deixai-me beijar essa mão.
LEAR -- Primeiro deixai que a limpe; cheira a mortalidade.
GLOSTER -- Ó arruinada peça da natura! O imenso mundo há de gastar-se todo, reduzindo-se a nada.
Reconheces-me?
LEAR -- Lembro-me perfeitamente de teus olhos. Estás piscando para mim? Não, Cupido cego; por
mais que faças, não chegarei a amar-te. Lê este desafio; observa bem o traço das letras.
GLOSTER -- Se outros tantos sóis fossem, não as vira.
EDGAR(à parte) -- Se mo dissessem, não o acreditara. No entanto é certo e o coração me parte.
LEAR -- Lê!
GLOSTER -- Como! Com as órbitas apenas?
LEAR -- Oh! oh! Alcançastes-me nesse ponto? Nem olhos na cabeça, nem dinheiro na bolsa? Tendes os
olhos pesados e a bolsa leve; no entanto, podeis ver como vai o mundo.
GLOSTER -- Vejo-o porque o sinto.
LEAR -- Como! Estais louco! A gente pode ver sem olhos como vai o mundo. Olha com as orelhas; vê
como aquele juiz invectiva contra um simples ladrão. Escuta aqui, só uma palavrinha ao ouvido. Muda
de lugar... Um, dois, três! E ago ra: qual é o ladrão? Qual é o juiz? Já viste um cachorro de fazendeiro
ladrar para um mendigo?
GLOSTER -- Já, sim senhor.
LEAR -- E a criatura fugir do mastim? Nisso poderás contemplar a grande imagem da autoridade: um
cachorro no desempenho de suas funções é obedecido. Oficial de justiça desonesto, suspende a mão
sangrenta! Por que açoitas essa pobre rameira? Vira contra ti próprio essa chibata. Estás ardendo de
desejos de com ela realizares o ato por que a castigas. O onzeneiro põe na forca o ladrão. As faltazinhas
se deixam ver nos furos dos andrajos; mas as togas e as peles tudo encobrem. Forra de ouro o pecado, e a
forte lança da Justiça se quebra sem feri-lo;
cobre-o de trapos, e uma simples palha vibrada por pigmeu vai transpassá-lo. Ninguém comete falta, é o
que te afirmo; ninguém. A todos sirvo de fiador. Podes acreditar-me, amigo; fala-te quem força tem para
fechar a boca da acusação. Arranja umas lunetas e, como vil político, imagina ver coisas que não vês.
Bum, bum, bum, bum! Tirai-me as botas. Força! Força!... Assim...
EDGAR (à parte) - Que mistura de senso e de incoerência! A razão na loucura.
LEAR - Toma meus olhos, se chorar desejas minha infelicidade. Sei de sobra quem és. Teu nome é
Gloster. Pois bem sabes: ao respirarmos pela vez primeira, choramos e gememos. Vou fazer-te sobre isso
um bom sermão; sê, pois, atento.
GLOSTER - Oh dia triste!
LEAR - Mas nascemos, choramos por nos vermos neste grande tablado de dementes. Que bela forma de
chapéu! Seria idéia mui sutil pôr ferraduras de feltro nos cavalos de uma tropa. Vou tentá-lo; e, uma vez
caindo em cima de meus genros: matar, matar, matar!
(Entra um gentil-homem, com criados.)
GENTIL-HOMEM - Oh, ei-lo aqui! Com jeito segurai-o. Meu senhor, vossa filha muito amada...
LEAR - Não há socorro! Como! Prisioneiro? Sou realmente joguete da fortuna. Tratei-me bem;
pagar-vos-ei resgate. Trazei-me um cirurgião, pois tenho o cérebro muito ofendido.
GENTIL-HOMEM - Haveis de ter de tudo.
LEAR - Ninguém vem ajudar-me? Estou sozinho? Isso em homem de sal mudara um homem, para fazer
de irrigador os olhos, sim, e a poeira do outono deixar úmida.
GENTIL-HOMEM - Meu bom senhor...
LEAR - Morrerei como bravo, como noivo... Como! Jovial hei de mostrar-me. Vamos! Sou rei, meus
mestres; ignorais tal coisa?
GENTIL-HOMEM - É rei notável, a quem muito amamos.
LEAR - Então ainda há vida. Se a alcançardes, há de ser na carreira. Sá, sá, sá!...
(Sai; os criados o acompanham.)
GENTIL-HOMEM - Lastimoso já fora este espetáculo no mais ínfimo ser e desgraçado. Num rei, não
cabe no discurso humano. Uma filha ainda tens que a natureza limpa da maldição geral que as outras
fizeram vir sobre ela.
EDGAR - Salve, senhor.
GENTIL-HOMEM - Senhor, o céu vos guarde. Que desejais?
EDGAR - Ouvistes, porventura, falar de uma batalha a ser travada?
GENTIL-HOMEM - É certo e mui sabido. Todo o mundo que sons distingue, ouviu falar sobre isso.
EDGAR - Mas, por obséquio: a que distância se acha o outro exército?
GENTIL-HOMEM- Perto, e vem com pressa. A vista surgirá dentro de uma hora; é o que se espera.
EDGAR - Agradecido. É tudo.
GENTIL-HOMEM - Muito embora a rainha aqui se encontre por um motivo especial, o exército dela
avançou.
EDGAR - Bem; muito agradecido.
(Sai o gentil-homem.)
GLOSTER - Ó deuses sempre bons! tirai-me a vida, não permitindo que meu mau espírito tentar me
venha novamente, para que à vossa revelia eu peça a morte.
EDGAR - Pai, rezais muito bem.
GLOSTER - Quem sois, amigo?
EDGAR - Indivíduo mui pobre, que os reveses da fortuna amansou e que pela arte das desgraças alheias
e das próprias à compaixão se revelou sensível.
GLOSTER - Do imo peito agradeço. Que a bondade do céu e sua bênção te acompanhem sempre e
sempre.
(Entra Osvaldo.)
OSVALDO - Oh! Cabeça posta a prêmio! Encontro mui feliz! Essa cabeça sem olhos só criou carne
porque a minha fortuna prosperasse. Miserável traidor, concentra-te depressa, a espada que vai tirar-te a
vida está sacada.
GLOSTER - Então põe força em tua mão amiga.
(Edgar se interpõe.)
OSVALDO - Por que te atreves, rústico atrevido, a amparar um traidor, publicamente como tal
proclamado? Vai-te embora; do contrário, a infecção da sorte dele passará para ti. Larga-lhe o braço!
EDGAR - Não largo ele, seu moço; não há percisão disso.
OSVALDO - Solta-o, escravo! Do contrário, morrerás.
EDGAR - Ide embora, seu moço; ide embora e deixai os pobre viver. Se as ameaças pudessem tirar-me a
vida, esta teria sido encurtada de uma quinzena. Não vos aproximeis do velho; ficai de longe, é o que eu
digo, ou então vamos tirar a prova para ver o que é mais duro, se vosso coco ou este meu cacete. Gosto
de franqueza.
OSVALDO - Sai da frente, monturo!
EDGAR - Vou curar vossos dentes, seu moço. Vinde. Vossos botes não me metem medo.
(Batem-se; Edgar o abate.)
OSVALDO - Oh! matas-te-me, escravo! Coisa à-toa, fica com minha bolsa. Se desejas prosperar,
sepultura dá a meu corpo e entrega as cartas que aqui trago a Edmundo, conde de Gloster. Morte
intempestiva!
(Morre.)
EDGAR - Sei quem és, um velhaco diligente; tão dedicado aos vícios da patroa quanto a maldade desejar
pudera.
GLOSTER - Como! Morreu?
EDGAR - Pai, repousai; Sentai-vos. Revistemos-lhe os bolsos. Essas cartas de que falou serão talvez
amigas. Morreu; só me aborrece não ter ele tido um outro carrasco. Mas vejamos. Permiti mole cera; e
vós, costumes, não nos culpeis; porque saber possamos as idéias de nossos inimigos os próprios corações
lhes abriríamos. Abrir cartas, assim é mais legítimo. "Lembrai-vos de nossos juramentos recíprocos.
Tendes muitas oportunidades de suprimi-lo; se vontade não vos faltar, oportunidade e lugar haveis de ter
de sobra. Nada se terá feito se ele voltar como vencedor, porque ficarei como sua prisioneira e o leito
dele como minha prisão. Libertai-me, portanto, desse calor odioso, e, pelo vosso trabalho, ficai com o
lugar dele. Vossa - esposa é o que eu desejara chamar-me - serva afetuosa Goneril. " Oh insondável
campo da perfídia feminina! Uma conjura contra a vida de um marido tão virtuoso, para ser por meu
mano substituído! Vou enterrar-te aqui na areia mesmo, sacrilego correio de assassinos luxuriosos, a fim
de em tempo certo ferir a vista do ameaçado duque com este papel fatal. E está com sorte por eu poder
contar-lhe de tua morte.
GLOSTER - O rei ficou insano; quão teimoso meu vil juízo se mostra, permitindo-me ficar de pé e
intacto me deixando o sentido de minha dor imensa. Fora melhor ficar de todo louco. Assim se
apartariam das tristezas os pensamentos, que as desgraças perdem a autoconsciência, quando sob o
império de errôneas fantasias.
(Ruído de tambor ao longe.)
EDGAR - Dai-me a mão. Ouço ao longe um tambor, se não me engano. Vamos, pai; vou confiar-vos a
um amigo.
(Saem.)
Cena VII
Uma tenda no acampamento francês. Entram Cordélia, Kent, um médico e um gentil-homem.
CORDÉLIA - Ó meu bondoso Kent, de que maneira posso viver e agir, para que a tua bondade
recompense? Minha vida será curta demais, sem que eu disponha de medida adequada.
KENT - Já me sobram, senhora, os vossos agradecimentos Vai de par meu relato com a mais simples
verdade, sem acréscimos nem falhas.
CORDÉLIA - Veste roupa melhor; essa roupagem faz lembrados momentos muito tristes. Por favor,
troca-a.
KENT - Não, cara senhora; perdoai-me; mas prejudicara muito meus planos dar-me a conhecer agora.
Como graça vos peço continuardes sem me reconhecer, até que o tempo e eu concordemos nisso.
CORDÉLIA - Pois que seja, meu bondoso senhor. (Ao médico.) Que faz o rei?
O MÉDICO - Ainda dorme, senhora.
CORDÉLIA - Ó divindades piedosas, deixai boa a grande brecha de sua natureza maltratada! Afinai os
sentidos em desordem e dissonantes deste pai que em criança voltou a transformar-se.
O MEDICO - Vossa Alteza permitirá que o rei nós despertemos? Já dormiu muito.
CORDÉLIA - Segui nisso apenas vossos conhecimentos, procedendo como melhor julgardes. Já o
vestiram?
(Entra Lear numa cadeira, carregado por criados.)
GENTIL-HOMEM - Já sim, senhora, pois no mais pesado do sono lhe trocamos toda a roupa.
O MÉDICO - Ficai junto, senhora, no momento de o despertarmos, pois não tenho dúvidas quanto a suas
melhoras.
CORDÉLIA - Muito bem.
(Música.)
O MÉDICO - Aproximai-vos, por favor. A música, aí, mais alto!
CORDÉLIA - Ó meu querido pai! Em meus lábios suspende teus remédios, convalescença, e deixa que
este beijo repare a imensa dor que minhas manas produziram em tua reverência.
KENT - Minha boa princesa e mui querida!
CORDÉLIA - Mesmo que pai não fosse delas duas. estes cabelos brancos lhes teriam forçado à
compaixão. Uma cabeça como esta poderia ser exposta à fúria das rajadas? defrontar-se com o trovão
pavoroso e o mais terrível ziguezaguear de temerosos raios? Ficar de guarda - pobre sentinela! - com este
elmo tão fino? O próprio cão do meu imigro, embora me tivesse mordido, houvera, numa noite dessas,
permanecido junto do meu fogo. E tu, meu pobre pai, foste forçado a abrigar-te com porcos e mendigos
numa pouca de palha embolorada! Ai, que dor. Maravilha é não haveres a um só tempo perdido a vida e
o espírito. Vai acordar; falai-lhe.
O MÉDICO - Vós, senhora; será melhor.
CORDÉLIA - Como se sente agora meu real senhor? E Vossa Majestade como passa?
LEAR - Foi mal de vossa parte retirar-me do túmulo. És uma alma da bem-aventurança; eu, porém, me
acho a uma roda de fogo sempre atado, que minhas próprias lágrimas escaldam como chumbo fundido.
CORDÉLIA - Conheceis-me, senhor?
LEAR - És um espírito; conheço-te. Desde quando morreste?
CORDÉLIA - Divagando sempre por muito longe.
O MÉDICO - Concedei-lhe mais algum tempo; despertou há pouco.
LEAR - Onde estive? Onde estou? É dia claro? Oh! Procederam muito mal comigo; morrer de
compaixão eu poderia, se visse alguém tratado desse modo. Não sei o que dizer; jurar não quero que
estas mãos sejam minhas. Mas vejamos: sinto esta alfinetada. Quem me dera saber quem sou, realmente.
CORDÉLIA - Senhor, olhai para o meu lado, e as mãos estendei sobre mim, para abençoar-me. Não,
meu senhor! Não vos ponhais de joelhos!
LEAR - Ah! Não zombeis de mim, é o que vos peço. Sou um velho imprestável e caduco, para cima de
oitenta, nem uma hora mais nem menos. E, para ser sincero, receio ter o espírito avariado. Creio vos
conhecer e, assim, a este homem; mas em dúvida me acho, pois ignoro de todo onde me encontro, sem
que possa lembrar-me destas vestes. De igual modo não sei onde passei a última noite. Oh! não riais de
mim! Porque tão certo como eu ser homem, quer afigurar-me que esta dama é Cordélia, minha filha.
CORDÉLIA - Sou ela mesma, meu senhor; sou ela.
LEAR - Tendes lágrimas úmidas? Realmente. Não choreis, é o que peço. Se tiverdes veneno para
dar-me, hei de bebê-lo. Sei que amor não me tendes. Vossas manas - tanto quanto me lembro -
procederam comigo muito mal. Mas tendes causa; ao passo que nenhuma delas tinha.
CORDÉLIA - Nenhuma causa! Não; nenhuma causa!
LEAR - Estou na França?
KENT - Em vosso próprio reino, senhor.
LEAR - Não me enganeis.
O MÉDICO - Ficai tranqüila, boa senhora. Já está morta nele, como estais vendo, a grande fúria. Agora
perigoso é fazê-lo novamente subir ao longo do perdido tempo. Levai-o para dentro, sem cansá-lo com
perguntas, até que se refaça.
CORDÉLIA - Quererá Vossa Alteza andar um pouco?
LEAR - Precisareis comigo ter paciência. Esquecei e perdoai-me, por obséquio. Estou velho e caduco.
(Saem Lear, Cordélia, o médico e os criados.)
GENTIL-HOMEM - Confirmou-se a notícia, senhor, de que o duque de Cornualha foi morto?
KENT - Perfeitamente, senhor.
GENTIL-HOMEM - Quem está à testa de seus homens?
KENT - Ao que dizem, o filho bastardo de Gloster.
GENTIL-HOMEM - Dizem que Edgar, seu filho exilado, está na Alemanha com o conde de Kent.
KENT - Os boatos variam. É tempo de abrirmos os olhos; as forças do reino se aproximam com presteza.
GENTIL-HOMEM - A decisão promete ser sangrenta. Passai bem, senhor.
(Sai.)
KENT - Ou boa ou má, a minha conclusão os golpes de hoje à luz sair farão.
(Sai.)
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