Compartilhe

ANTONIO E CLEOPATRA, ATO IV, Cena XII

O mesmo. Outro quarto. Entram Antônio e Eros.

ANTÔNIO - Eros, ainda me vês?

EROS - Sim, nobre chefe.

ANTÔNIO - Às vezes contemplamos uma nuvem que parece dragão; às vezes forma toma o vapor de leão ou feroz urso, de cidade com torres, pedra ingente de promontório azul coroado de árvores, que oscila sobre o mundo, e nossa vista deixa atemorizada sem motivo. Sinais como esses já tens visto muitos; são fantasmas das tardes enubladas.

EROS - Sim, meu senhor, já vi.

ANTÔNIO - O que um ginete parecia transformar-se, no instante de refletires, e desaparece como água na própria água.

EROS - Justamente.

ANTÔNIO - Eros, bravo menino, um corpo desses agora é o teu senhor. Ainda Antônio sou neste instante, mas durar não pode muito tempo esta forma que aparece. Fiz as guerras do Egito. Mas Cleópatra, no entanto - cujo coração meu era, pois o meu era dela, e em todo o tempo que foi meu anexava muitos outros, um milhão mais... todos perdidos todos - ela, Eros, como disse, jogou cartas com César e roubou minha alta glória, para triunfar do imigo. Não, não chores, meu gentil Eros, pois nos resta ainda darmos fim a nós próprios. (Entra Mardian.)

Tua vil ama me roubou a espada!

MARDIAN - Não, Antônio; minha ama te adorava e a sorte dela entrelaçou com a tua.

ANTÔNIO - Fora daqui, eunuco imundo! Fora! Ela traiu-me e vai morrer por isso.

MARDIAN - Ninguém duas vezes paga à morte a dívida. A dela já está paga. O que querias fazer foi feito perto de ti mesmo Sua última palavra foi "Antônio! meu muito nobre Antônio!" um lacerante gemido em dois partiu de Antônio o nome, que ficou dividido entre seus lábios e o coração. Assim perdeu a vida, sepultando teu nome nela própria.

ANTÔNIO - Então, morreu?

MARDIAN - Morreu.

ANTÔNIO - Eros, desarma-me. A tarefa do dia está concluída, precisamos dormir. (A Mardian.) Parte com vida; paga-te isso o trabalho ricamente. (Sai Mardian.) Arranca-me tudo isto. Nem o escudo de Ajaz, de sete folhas, poderia conter os batimentos com que ao peito me ataca o coração. flancos, abri-vos! Coração, uma vez somente mostra-te mais poderoso do que teu invólucro, arrebentando tua frágil caixa. Depressa, Eros, depressa! O combatente já se extinguiu. Ide, pedaços soltos; fostes usados com alguma honra. Eros, deixa-me só por uns momentos. (Sai Eros.) Vou alcançar-te, Cleópatra, e, com lágrimas, obter o meu perdão. Tem de ser isso; qualquer tardança, agora, é sofrimento. Extinta a tocha, deita-te, deixando de andar por descaminhos. Todo esforço, de agora em diante estragaria a obra. Até o próprio vigor se embaraçara na resistência própria. Põe o selo, e tudo está acabado. Eros, atende-me! - Já vou, minha rainha! - Eros, escuta-me! Onde as almas repousam sobre flores, mão com mão nós iremos, e os espectros deixaremos atônitos com nossa postura apaixonada. Sem cortejo vai ficar Dido e seu querido Enéías, correndo todos para nós. Vem, Eros! (Volta Eros.)

EROS - Que deseja meu amo?

ANTÔNIO - Desde a morte de Cleópatra tão baixa é a minha vida que somente asco tem causado aos deuses. Eu que com a espada o mundo retalhava e construída cidades de navios no glauco dorso de Netuno, agora me maldigo por ver que sou mais fraco que uma mulher e por não ter o espírito nobre daquela que por sua morte ao nosso César disse: "De mim própria fui a conquistadora." Prometeste-me, Eros, que quando fosse necessário - o que acontece justamente agora - 102 e nas costas eu visse a inevitável perseguição do horror e da desgraça, a um sinal meu a vida me tiraras. Faze isso. Chegou a hora. Não me feres, assim fazendo; a César é que frustras. Põe um pouco de cor nessas bochechas. EROS - Os deuses que me amparem! Poderia fazer o que jamais as flechas partas, apesar de inimigas, conseguiram, falhando todas o alvo?

ANTÔNIO - Eros, querias de uma janela da grandiosa Roma ver teu amo de braços amarrados, o submisso pescoço assim dobrado, a fronte baixa ante a vergonha imensa, enquanto roda à frente dele o carro do venturoso César, mais relevo dando com isso à sua humilhação?

EROS - Não desejara vê-lo.

ANTÔNIO - Então vem logo; um golpe, só, me vai deixar curado. Saca essa honesta espada, que serviços tão valiosos já tem prestado à pátria.

EROS - Oh! poupai-me, senhor!

ANTÔNIO - Ao libertar-te, não me juraste que farias isso no instante em que o pedisse? Então sê pronto, para que teus serviços não pareçam frutos do acaso, apenas, sem propósito. Saca da espada e vem.

EROS - Bem; nesse caso virai para o outro lado o nobre aspecto, em que o respeito está do mundo todo.

ANTÔNIO (virando-se) - Vem logo, então.

EROS - Já estou de espada em punho.

ANTÔNIO - Usa-a depressa para o que a tiraste.

EROS - Meu caro mestre, capitão querido, meu caro imperador, deixai que eu diga, antes de dar esse sangüíneo golpe, deixai que eu diga adeus.

ANTÔNIO - Pois, não, amigo; adeus.

EROS - Adeus, meu chefe. Posso ferir agora?

ANTÔNIO - Podes, Eros.

EROS - Então, que seja. Assim fujo à tristeza de lastimar Antônio. (Mata-se.)

ANTÔNIO - Oh! três vezes mais nobre do que eu mesmo. Meu valente Eros, mostra-me o que eu próprio, não tu, fazer devia. O gesto altivo de Eros e da rainha me fizeram despertar a nobreza. Mas desejo ser o noivo da morte e dirigir-me para ela como para o leito amado. Que venha, então. E assim, Eros, teu amo deixará a vida como teu discípulo. A fazer isto me ensinaste. (Deixa-se cair sobre a espada.) Como! Não morri? Não morri? Olá! A guarda! Oh! Acabai de vez com minha vida. (Entram Dercetas e Guardas.)

PRIMEIRO GUARDA - Quem faz esse barulho?

ANTÔNIO - Ó meus amigos, fiz mal o meu trabalho. Dai remate a quanto principiei.

SEGUNDO GUARDA - Baixou a estrela.

PRIMEIRO GUARDA - E chega ao fim o tempo.

TODOS - Oh! que desgraça!

ANTÔNIO - Quem me amar, venha dar-me o mortal golpe.

PRIMEIRO GUARDA - Eu, não.

SEGUNDO GUARDA - Nem eu.

TERCEIRO GUARDA - Nenhum de nós, por certo. (Saem os guardas.)

DERCETAS - Tua morte e os desastres afugentam teus seguidores. Basta que esta espada leve eu a César e lhe dê a nova, para por ele ser bem recebido. (Entra Diomedes.)

DIOMEDES - Onde está Antônio?

DERCETAS - Aqui, aqui, Diomedes.

DIOMEDES - Está com vida? Não respondes, homem? (Sai Dercetas.)

ANTÔNIO - Estais aí, Diomedes? Tira a espada e vem ferir-me até chegar a morte.

DIOMEDES - Alto senhor, aqui mandou-me Cleópatra.

ANTÔNIO - Quando foi isso?

DIOMEDES - Agora, meu senhor.

ANTÔNIO - Onde ela está?

DIOMEDES - Fechou-se no sepulcro. Tomada viu-se de um pressentimento angustioso do que podia dar-se. Pois ao certificar-se - o que impossível será que se confirme - de que tínheis suspeita de ter ela combinado qualquer coisa com César - e incurável era vosso furor - mandou dizer-vos que se havia matado. Mas, receando as conseqüências da notícia, logo me enviou para dizer-vos a verdade. Mas temo ter chegado muito tarde.

ANTÔNIO - Sim, bondoso Diomedes, muito tarde. Por favor, chama a guarda.

DIOMEDES - Olá! a guarda do Imperador! A guarda! vinde logo; o senhor é que chama! (Entram quatro ou cinco homens, da guarda de Antônio.)

ANTÔNIO - Bons amigos, levai-me para onde está Cleópatra. É o último serviço que vos peço.

PRIMEIRO GUARDA - Que desgraça, senhor, não terdes vida para a nós todos até o fim dar ordens.

TODOS - Que dia carregado!

ANTÔNIO - Bons amigos, não deixeis que o destino amargo ria de vossas dores. Deve ser bem-vindo o que venha punir-vos; e punamo-lo, por nosso lado, recebendo-o alegres. Levantai-me. Já vos guiei bastante; agora me arrastai, caros amigos. Por tudo, agradecido. (Saem, levando Antônio.)