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ANTONIO E CLEOPATRA, ATO V, Cena II

O mesmo. O túmulo. Entram, em cima, Cleópatra, Charmian e Iras.

CLEÓPATRA - O próprio desespero me inicia numa vida melhor. É pouca coisa ser tão-somente César. Ele julga-se a Fortuna, mas é o seu lacaio, subserviente a seus gestos. É grandioso realizar o que a tudo põe remate, no caso põe grilhões, tranca as mudanças, faz dormir, sem jamais provar da lama de que o mendigo e César se alimentam. (Entram, em baixa, Proculeio, Galo e soldados.)

PROCULELO - À rainha do Egito envia César muitos saudares e te pede veres que pedido razoável ele pode satisfazer-te agora.

CLEÓPATRA - Qual teu nome?

PROCULEIO - Chamo-me Proculeio.

CLEÓPATRA - Já me tinha de vós falado Antônio, aconselhando-me a ter confiança em vós. Mas não se

importa de poder ser burlada quem proveito nenhum tirar deseja da confiança. Se quer vosso amo que como mendiga lhe fale uma rainha, declarai-lhe que a majestade, para ser coerente, não pode menos de pedir-lhe um reino. Se ele quiser dar a meu filho o Egito conquistado, ter-me-á, assim, dado tanto do que é meu mesmo, que hei de, agradecida, ajoelhar-me a seus pés.

PROCULEIO - Ficai tranqüila. Nada temais; estais na mão de um príncipe. Ao meu senhor vos entregai confiante, pois sua graça é tanta que se estende a todos os que dela necessitam. Permiti que lhe conte o modo brando por que vos submeteis, e vereis que ele, qual vencedor, prefere a complacência, sempre que apelo é feito à sua graça.

CLEÓPATRA - Comunicai-lhe, por favor, que serva sou de sua fortuna, e que lhe envio a grandeza por ele conquistada. A cada hora que passa, aprendo as regras da obediência e, de grado, neste instante de frente o contemplara.

PROCULEIO - Excelsa dama, vou dizer-lhe isso mesmo. Ficai calma, pois sei que vossa condição comove quem foi seu causador.

GALO - Bem vedes como é fácil surpreendê-la. (Proculeio e dois guardas sobem para o monumento por uma escada, por trás de Cleópatra Outros guardas tiram as trancas dos portões, patenteando o compartimento inferior do monumento.) Guardai-a bem, até que César chegue. (Sai.)

IRAS - Real rainha!

CHARMIAN - Cleópatra, princesa, estás presa!

CLEÓPATRA - Depressa, mãos bondosas! (Saca de um punhal.)

PROCULEIO - Parai, parai, digna senhora! Calma! (Segura-a e desarma-a.) Não façais a vós própria essa injustiça. Amparada aqui fostes, não traída.

CLEÓPATRA - Até mesmo da morte que liberta da peste nossos cães?

PROCULEIO - Cleópatra, sede prudente, não deixando assim frustrada a generosidade de meu amo, com vos fazerdes ora essa violência. Possa o mundo admirar sua nobreza, que, com vosso trespasse, ficaria para sempre abafada.

CLEÓPATRA - Onde estás, morte? Vem aqui; vem depressa apoderar-te de uma rainha que, por certo, vale bem um monte de crianças e mendigos.

PROCULEIO - Moderação, senhora.

CLEÓPATRA - De ora em diante não comerei, senhor, nem beberei. E se preciso for falar à toa, não dormirei também. Em ruínas hei de deixar a mortal casa. Faça César o que puder. Ficai, senhor, sabendo que amarrada jamais hei de deixar-me mostrar na corte de vosso alto mestre, nem castigada pelo olhar tranqüilo daquela Otávia estúpida. Teria de ser içada e, assim, ficar exposta à gritante ralé da altiva Roma? Antes achar amena sepultura numa vala do Egito; antes na lama do Nilo me postai, de todo nua, para que em monstro as moscas me transformem; antes forca fazerem das pirâmides altas de minha terra, para delas ficar dependurada por cadeias.

PROCULEIO - Expandis mais os pensamentos tétricos do que podeis razão achar em César. (Entra Dolabela.)

DOLABELA - César, teu amo, sabe, Proculeio, tudo quanto tens feito. Mandou ordem para que retornasses. Quanto à rainha, fica sob minha guarda.

PROCULEIO - Assim me agrada, Dolabela, com ela sê bondoso. (A Cleópatra.) Direi a César o que desejardes, se de mim vos servirdes.

CLEÓPATRÀ - Pois dizei-lhe que desejo morrer. (Saem Proculeio e os soldados.)

DOLABELA - Nobre rainha, certamente de mim falar já ouviste?

CLEÓPATRA - Não poderei dizer-te.

DOLABELA - Certamente me conheceis.

CLEÓPATRA - Ora, senhor, que importa quanto eu já tenha ouvido ou conhecido? Certamente achais graça quando as crianças ou as mulheres vos falam de seus sonhos. É essa vossa pilhéria?

DOLABELA - Não compreendo minha senhora.

CLEÓPATRA - Sim, sonhei que havia um rei por nome Antônio. Ah! se eu pudesse mais uma vez dormir para, de novo, ver um homem como ele!

DOLABELA - Se quiserdes...

CLEÓPATRA - Como o céu tinha o rosto; nele havia sol e lua, que o giro perfaziam e a terra iluminavam, este zero pequenino.

DOLABELA - Criatura soberana...

CLEÓPATRA - Abarcava com as pernas o oceano; seu braço, levantado, de cimeira servia para o mundo. A voz tinha ele como a harmonia das esferas, sempre que aos amigos falava; mas querendo fazer tremer o mundo ou amedrontá-lo, era um trovão atroante. Para sua munificência não havia inverno; era um constante outono, que aumentava a cada novo corte. Seus deleites eram como o golfinho: o dorso sempre deixavam ver por sobre as próprias ondas. Coroas e diademas apertavam-se em seu séquito, remos e ilhas eram quais moedas que do bolso lhe caíssem.

DOLABELA - Cleópatra...

CLEÓPATRA - Imaginais que pode haver um homem, que houve algum homem como o do meu sonho?

DOLABELA - Gentil senhora, não.

CLEÓPATRA - Mentis, por tudo quanto os deuses ouvem. Porém que tenha havido ou existir possa uma pessoa assim, é o que ultrapassa, de muito, qualquer sonho. À natureza falta matéria para concorrência fazer à fantasia. Mas o fato de um Antônio haver criado, é o maior golpe da natureza contra a fantasia, que o descrédito lança em seus produtos.

DOLABELA - Boa senhora, ouvi-me. Vossa perda, tal, como vós, é grande, sendo certo que acarretais com todo o peso dela. Que nunca realizado eu ver consiga nenhum anseio antigo; na ruína do vosso eu sinto uma tristeza imensa, que o coração me fere no mais íntimo.

CLEÓPATRA - Obrigada, senhor. Sabeis, acaso, o que César de mim fazer pretende?

DOLABELA - Desejaria que soubésseis quanto me repugna dizer-vos.

CLEÓPATRA - Por obséquio...

DOLABELA - Embora seja generoso...

CLEÓPATRA - Pensa em me levar no triunfo?

DOLABELA - Sim, senhora; tenho certeza disso. (Vozes, dentro: "Abri caminho! Abri caminho! César!") (Entram César, Galo, Proculeio, MECENAS, Seleuco e criados.)

CÉSAR - A rainha do Egito está presente?

DOLABELA - Senhora, é o imperador. (Cleópatra se ajoelha.) CÉSAR - Não; levantai-vos, levantai-vos, Egito, por obséquio.

CLEÓPATRA - Senhor, os deuses querem desse modo; submissa ao meu senhor sou totalmente.

CÉSAR - Abandonai os pensamentos tristes. Muito embora o relato das ofensas que nos fizestes tenha sido escrito em nossa carne, delas nos lembramos como de fatos casuais, apenas.

CLEÓPATRA - Único árbitro do mundo, não consigo definir minha causa de maneira que vos pareça clara; mas confesso que sobre mim pesavam muitas faltas que sempre envergonharam nosso sexo.

CÉSAR - Sabei Cleópatra: sempre preferimos aliviar a agravar. Se vos mostrardes sensata em relação a nossos planos - que a respeito de vós são generosos - benefício achareis nessa mudança; porém se o peso sobre mim lançardes de uma crueldade, entrando pela via seguida por Antônio, dos benéficos efeitos vos privais de meus projetos e expondes vossos filhos à ruína de que pretendo resguardá-los, caso me reveleis confiança. Aqui despeço-me.

CLEÓPATRA - Podeis atravessar o mundo todo. Pertence-vos. E nós, vossos escudos e troféus da vitória, ficaremos pregados onde quer que vos agrade. Aqui, nobre senhor...

CÉSAR - Em tudo havemos de vos ouvir no que respeita a Cleópatra.

CLEÓPATRA - (entregando-lhe um papel) - Aqui se encontra a relação das jóias, do dinheiro e a baixela que eu possuo, em seu valor exato, sem incluirmos coisinhas sem valor. Onde se encontra Seleuco?

SELEUCO - Aqui, senhora.

CLEÓPATRA - É o tesoureiro. Consenti, meu senhor, que ele vos diga, nisso empenhando a própria vida, como nada me reservei. Fala a verdade, Seleuco.

SELEUCO - Senhora, antes selada ter a boca do que sob, penhor da própria vida, dizer uma inverdade.

CLEÓPATRA - Alguma coisa foi desviada por mim?

SELEUCO - O suficiente para comprar o que ora declarastes.

CÉSAR - Cleópatra, não coreis; aprovo nisso vossa sabedoria.

CLEÓPATRA - Vede, César, oh! vede como a pompa atrai os homens! Todos os meus, agora vos pertencem; mas se trocássemos as sortes, todos os vossos meus seriam. Dementada me deixa a ingratidão desse Seleuco. Ó escravo, em que se pode confiar tanto como no amor comprado! Como? foges? Fazes bem em fugir, posso afiançar-te. Mas hei de os olhos arrancar-te, embora sejam dotados de asas. Vil escravo, vilão sem alma, cão, canalha raro!

CÉSAR - Acalmai-vos, bondosa soberana.

CLEÓPATRA - Ó César, como dói tamanho opróbrio! Na hora em que concordais em visitar-me, a mim, tão pequenina: vir meu próprio servidor aumentar minha desgraça com a parcela da inveja muito sua. Digamos, meu bom César, que de lado tivesse eu posto algumas ninharias de que as mulheres gostam, coisas simples e sem valor nenhum, desses objetos que costumamos dar aos conhecidos, ou digamos, também, que eu apartasse qualquer lembrança um tanto mais valiosa destinada por mim a Lívia e Otávia, para que a meu favor intercedessem: poderia ter sido denunciada por quem houvesse de meu pão comido? Deuses! isso me faz cair mais baixo do que já me encontrava. (A Seleuco.) Vai-te embora; caso contrário, sentirás as brasas do meu furor por entre a cinza fria do meu próprio destino. Caso fosses homem, de mim terias te apiedado. CÉSAR - Vai-te embora, Seleuco. (Sai Seleuco.)

CLEÓPATRA - É sabido que nós, os grandes, somos responsáveis por quanto os outros fazem, e que, quando caímos, nosso nome serve para cobrir o alheio mérito. Por isso somos dignos de piedade.

CÉSAR - No rol não incluiremos da conquista, Cleópatra, quanto houvésseis apartado, nem mesmo nada do que declarastes. Tudo é vosso; disponde disso como melhor vos aprouver. E podeis crer-me: César não é um comerciante, vindo para convosco regatear o preço do que é vendido pelos comerciantes. Ficai, portanto, alegre, não fazendo vossa prisão dos próprios pensamentos. Cara rainha, não; pois pretendemos convosco proceder sempre de acordo com vossa orientação. Alimentai-vos; ide dormir. Tanto cuidado temos, e piedade, de vós, que continuamos amigo sendo vosso. E agora, adeus.

CLEÓPATRA - Meu mestre e meu senhor!

CÉSAR - Não, não! Adeus. (Fanfarra. Sai César com seu séquito.)

CLEÓPATRA - Ele fala comigo, caras, fala somente para que eu não continue nobre comigo mesma. Mas escuta, Charmian. (Fala-lhe ao ouvido.)

IRAS - Concluí, minha senhora; o dia radioso terminou; agora estamos em plena escuridão.

CLEÓPATRA - Vai lá de novo; já falei nisso; está providenciado. Vai logo; apressa-te.

CHARMIAN - Pois não, senhora. (Volta Dolabela.)

DOLABELA - Onde está a rainha?

CHARMIAN - Ali, senhor. (Sai.)

CLEÓPATRA - Dolabela!

DOLABELA - Senhora, preso à jura que de mim exigistes, que meu zelo transforma num dever, digo-vos isto: César pretende atravessar a Síria, sendo sua intenção, nestes três dias na frente vos mandar com vossos filhos. Como puderdes, fazei uso disto. Como o queríeis, fiz o prometido.

CLEÓPATRA - Sou vossa devedora, Dolabela.

DOLABELA - E eu, vosso servo. Adeus, boa rainha. Preciso esperar César.

CLEÓPATRA - Vai; adeus. De novo, agradecida. (Sai Dolabela.) Iras, que dizes disso tudo? És uma boneca egípcia e, como eu, vais em Roma ser mostrada. Escravos artesãos, de avental sujo, réguas e malhos, hão de levantar-nos para melhor nos verem. Envolvidas vamos ser por seus hálitos pesados que a alimentos grosseiros, só, tresandam, e que a aspirar forçadas nos veremos.

IRAS - Os deuses nos amparem!

CLEÓPATRA - Não; é certo, Iras; é mais que certo. Descarados lictores, como a prostitutas, hão de vir apalpar-nos, e versistas pífios nos cantarão fora de metro e rima. Histriões habilidosos, no tablado nos improvisarão, representando nossas festas joviais de Alexandria. Antônio, bêbedo, há de entrar no palco, tendo eu de ver algum menino-Cleópatra de voz fina imitar minha grandeza com gestos de rameira.

IRAS - Oh grandes deuses!

CLEÓPATRA - Podes acreditar-me.

IRAS - Nunca hei de ver tal coisa; tenho as unhas - estou certa - mais duras do que os olhos.

CLEÓPATRA - Bravo! É o caminho de lograr seus planos e destruir-lhes o intento mais que absurdo. (Volta Charmian.) Agora, Charmian minhas companheiras, vinde arranjar-me como a uma rainha. Trazei o meu vestido mais custoso. De novo terei de ir ao Cidno, para ver-me com Marco Antônio. Iras, vai logo. Agora estamos prontas, nobre Charmian. E quando houveres feito esse serviço, liberdade te dou para brincares até o dia do juízo derradeiro. Traze a coroa e tudo o mais. (Sai Iras. Ouve-se barulho.) Que é isso? (Volta um dos guardas.)

GUARDA - Aí fora está um rústico que insiste em ver Vossa Grandeza. Traz-vos figos.

CLEÓPATRA - Manda-o entrar.

(Sai o guarda.) Como uma ação grandiosa pode ser feita por um meio humilde! Trouxe-me a liberdade. Continuo na mesma decisão, sem coisa alguma de mulher ter em mim. Tal como o mármore, sou da cabeça aos pés: inabalável. A lua incerta não é o meu planeta. (Volta o guarda com o bobo, que traz uma cesta.)

GUARDA - Eis aqui o homem.

CLEÓPATRA - Vai-te embora e deixa-o. Então, trouxeste o bonitinho verme do Nilo que, sem dor, põe termo à vida?

BOBO - Trouxe-o, com certeza; mas não serei eu que vos aconselhe a tocar nele, porque sua picada é mortal. Os que morrem em conseqüência disso, raramente, ou nunca, se restabelecem.

CLEÓPATRA - Sabes de alguém que assim morrido houvesse?

BOBO - Oh! em quantidade! Homens e mulheres também. Ainda anteontem ouvi falar de um caso: uma mulher de grande honestidade, mas um tanto amiga de mentir - o que a mulher nunca deve fazer, senão por maneira muito honesta - como veio a morrer da picada e que dores sentiu. Realmente, ela deu uma ótima informação do verme; mas quem der crédito a tudo o que as mulheres dizem, não se salvará com a metade do que elas próprias fazem. Mas isso é muito falível, o verme é um verme muito caprichoso.

CLEÓPATRA - Bem, até logo; podes retirar-te.

BOBO - Desejo que tenhais muito prazer com o verme. (Depõe a cesta no chão.)

CLEÓPATRA - Adeus.

BOBO - Não deveis esquecer, vede bem, que o verme tem suas manhas.

CLEÓPATRA - Pois não; pois não. Adeus.

BOBO - Vede bem! Não se pode confiar no verme, a não ser sob a guarda de gente muito experta, porque, de fato, não há nele sombra de bondade.

CLEÓPATRA - Não te preocupes, que eu saberei tratar dele.

BOBO - Perfeitamente Não lhe dês nada a comer, que ele não vale o que come.

CLEÓPATRA - Será que ele comeria?

BOBO - Não haveis de pensar que eu seja tão simplório para não saber que o próprio diabo não come uma mulher. Sei muito bem que a mulher é prato para os deuses, quando não é o diabo que o prepara. Mas em verdade, esses malditos diabos causam muito mal aos deuses com as mulheres, porque de cada dez que estes aprontam, os diabos estragam cinco.

CLEÓPATRA - Bem, podes ir embora. Adeus.

BOBO - Sim, por minha fé! Desejo-vos muita alegria com o verme. (Sai.) (Volta Iras com o manto, a coroa, etc.)

CLEÓPATRA - Dá-me o manto; coloca-me a coroa. Anseios imortais em mim se agitam. Nunca jamais há de molhar-me os lábios o líquido de nossa vinha egípcia. Vamos, Iras; depressa! Só parece que ouço Antônio chamar-me; levantar-se vejo-o e elogiar meu ato valoroso. Ouço como ele zomba da ventura de César, que aos mortais os deuses cedem para depois justificar sua cólera. Caro esposo, eis-me aqui! Minha coragem irá provar que faço jus ao título. Sou ar e fogo; os outros elementos cedo à vida inferior. Já concluíste? Então vem e recebe de meus lábios o calor derradeiro. Adeus, querida Charmian; Iras querida, um longo adeus. (Beija-as; Iras cai e morre.) Tenho, acaso, nos lábios a serpente? Como! Caíste! Se te separaste da natureza assim tão gentilmente, é que o golpe da morte é como aperto de namorado, que machuca um pouco mas sempre é desejado. Estás tranqüila? Se assim te foste, é porque ao mundo contas que digno ele não é de despedida.

CHARMIAN - Nuvem, espalha o teu negrume e chove, para que eu dizer possa que até os deuses estão chorando.

CLEÓPATRA - Isto só prova a minha pusilanimidade. Se primeiro do que eu ela encontrar o meu Antônio de cabelos cacheados, ele o beijo nela dará que para mim é o céu. Vem, coisinha fatal; (Aplica a serpente ao seio.) com o dente agudo o nó complexo vem soltar da vida. Fica zangado, tolo venenoso; termina de uma vez. Oh! se falasses, chamarias o grande César de asno sem nenhuma visão.

CHARMIAN - Estrela do nascente!

CLEÓPATRA - Oh, não! Silêncio! Não vês que ao seio tenho o meu menino, na ama, a dormir, mamando?

CHARMIAN - Parai! Parai!

CLEÓPATRA - Tão doce como bálsamo, brando como o ar, gentil... Oh meu Antônio!... Sim, tu também terás o meu carinho. (Aplica no braço outra serpente.) Por que haveria de ficar mais tempo... (Morre.)

CHARMIAN - ... neste mundo tão vil? Assim, adeus. Agora, morte, podes vangloriar-te de que uma rapariga incomparável em teus braços sustentas. Ó janelas emplumadas, fechai-vos! Ó radioso Febo jamais será de novo visto por uns olhos tão reais. Vossa coroa ficou pendida; vou endireitá-la e, após, representar a minha parte. (Entra um guarda, precipitadamente.)

PRIMEIRO GUARDA - Onde está a rainha?

CHARMIAN -Falai baixo, para não despertá-la.

PRIMEIRO GUARDA - César mandou...

CHARMIAN - ... um mensageiro lerdo. (Aplica em si própria uma serpente.) Vem depressa. Termina. Mal te sinto.

PRIMEIRO GUARDA - Aproximai-vos, ah! Algo se passa. César foi enganado. SEGUNDO GUARDA - Dolabela veio da parte dele, ide chamá-lo.

PRIMEIRO GUARDA - Que é que houve por aqui? Ó Charmian! Charmian! Achas que foi bem feito?

CHARMIAN - Foi bem feito, digno de uma princesa que descende de tantos reais monarcas. Ah! soldado... (Morre.) (Volta Dolabela.)

DOLABELA - Que aconteceu aqui?

SEGUNDO GUARDA - Morreram todas.

DOLABELA - César, teus pensamentos se confirmam neste particular. Tu próprio chegas para ver realizado o horrível ato que evitar procuraste tanto e tanto! (Dentro: "Daí passagem a César. Dai passagem!") (Volta César, com todo o seu séquito.)

DOLABELA - Ó senhor! sois um áugur de confiança; o que receáveis, deu-se.

CÉSAR - Corajosa foi até o fim. Por ter desconfiado de nossas intenções, como legítima soberana, tomou o caminho próprio. Como morreram? Não percebo sangue.

DOLABELA - Quem por último esteve junto delas?

PRIMEIRO GUARDA - Um vil campônio, que lhe trouxe figos dentro desta cestinha.

CÉSAR - Então, estavam envenenados. PRIMEIRO GUARDA - César, esta Charmian até há pouco vivia. Estava pálida e falou. Encontrei-a endireitando o diadema da morta. Ela tremia e caiu de repente.

CÉSAR - Oh muito nobre fraqueza! Se elas ingerido houvessem algum veneno, logo o conhecêramos pelo inchaço exterior. Mas aparência tem ela de quem dorme, de quem fosse prender um Outro Antônio nas cadeias fortes de seus encantos.

DOLABELA - Sobre o seio tem um ponto de sangue, um pouco inchado, tal como aqui no braço.

PRIMEIRO GUARDA - É a marcazinha de uma áspide; estas folhas de figueira deixam ver lodo, tal como se encontra nas cavernas do Nilo em que há serpentes.

CÉSAR - É bem provável que ela assim morresse. Seu médico me disse que ela tinha feito infinitas experiências sobre os meios de morrer mais facilmente. O leito carregai; do monumento o corpo retirai também das criadas. Sepultada vai ser junto do corpo do Marco Antônio dela. Nenhum túmulo jamais encerrará em toda a terra um tão famoso par. Altos eventos como este aqui comovem até mesmo seus próprios causadores. Sua história tão digna foi causa de chorados serem. Com solene aparato, nosso exército o enterro seguirá. Depois, a Roma. A maior pompa. Dolabela, é que há de determinar esta solenidade. (Saem.)