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CONTO DE INVERNO, ATO III, Cena II

Sicília. Uma corte de justiça. Leontes, nobres e oficiais.

LEONTES - Esta sessão - com grande pesadume é que o dizemos - nos abala o peito. A ré é filha de um
monarca e nossa muito prezada esposa. A pecha tira-nos de tirania o fato de ser público todo o processo,
que há de seguir nisso seu curso natural, até à sentença condenatória ou à plena absolvição. Trazei a
prisioneira.

OFICIAL - Apraz a Sua Alteza que a rainha apareça em pessoa ante esta corte. Silêncio!
(Entram Hermíone, com guardas, Paulina e damas de companhia.)

LEONTES - Lede a acusação.

OFICIAL- "Hermíone, esposa do digno Leontes, Rei da Sicflia, és acusada e aqui citada por crime de
alta traição, por teres cometido adultério com Políxenes, Rei da Boêmia, e conspirado com Camilo para
tirar a vida do rei, nosso soberano senhor, teu real esposo. Tendo sido esse propósito descoberto em parte
pelas circunstâncias, tu, Hermíone, contrariamente à fidelidade e à obediência próprias de um leal súdito,
entraste em conchavo com eles e os ajudaste, para sua maior segurança, a fugir durante a noite?

HERMÍONE - Já que quanto eu pudesse ora dizer-vos consistiria apenas no protesto contra essa
acusação, não me amparando E nenhuma testemunha, afora eu própria, quase não me aproveita
declarar-me "Não culpada". Uma vez que está estimada minha virtude como hipocrisia, quanto eu viesse
a dizer, do mesmo modo será interpretado. Apenas isto: se os poderes divinos se interessam pelos atos
humanos, como o fazem, não duvido de que minha inocência fará corar a acusação indébita e tremer,
ante a calma, a tirania. Vós, meu senhor, sabeis perfeitamente - conquanto simuleis ora o contrário - que
toda minha vida foi tão pura, tão leal e casta, quanto desgraçada presentemente sou, mais do que todos os
exemplos da história, sem excluirmos os casos de invenção postos em cena, para abalar o público. Ora
vede-me: companheira de leito de um monarca, tendo direito a parte igual no trono, filha de um grande
rei e mãe de um príncipe esperançoso, compareço à barra de um tribunal, para falar acerca da honra e da
vida, ante qualquer pessoa que me deseje ouvir. A vida, estimo-a como dor, que de grado evitaria; quanto
à honra, é herança que transmito aos meus. Por isso, defendê-la me proponho. Senhor, apelo para vossa
própria consciência. Antes de haver a vossa corte Políxenes chegado, não me achava na vossa graça, e
digna não me tinha dela sempre mostrado? E, após sua vinda, por que conduta extraordinária, acaso, me
mostrei censurável, para, agora, ser citada a esta côrte? Se os limites da honra ultrapassei de um fio,
apenas; se por ações ou pensamentos a isso me sentisse inclinada, endurecido torne-se o coração dos que
me escutam, e que as pessoas que me são mais próximas a pelo sangue me insultem sobre o túmulo.

LEONTES - Jamais ouvi dizer que esses ousados vícios fossem dotados de impudência menor para negar
seus próprios atos, que para os praticar.

HERMÍONE - É muito certo; conquanto isso, senhor, não se me aplique.

LEONTES - Não quereis confessar.

HERMÍONE - Não me é possível reconhecer senão os meus defeitos inevitáveis. Quanto ao Rei
Políxenes, de quem me fazeis cúmplice, confesso que amor lhe dedicava tal como ele de mim, sem
quebra de honra, esperaria, uma espécie de amor que condissesse com minha posição, amor em nada
diferente do que vós próprio havíeis recomendado que lhe revelasse. Se então eu me tivesse conduzido
por outro modo, certo eu me mostrara desobediente em relação a vós e ingrata para o amigo, cujo afeto,
desde que falar pôde, desde a infância, se declarou por vosso, livremente. Quanto à conspiração, o gosto
ignoro-lhe, muito embora me fosse ela servida, porque dela provasse. Só o que posso dizer é que Camilo
é homem probo. Mas a razão de haver ele deixado vossa corte, se os deuses, sobre o assunto, souberem o
que eu sei, são ignorantes.

LEONTES - Sabíeis, sim, da parte dele, como também sabíeis quanto era preciso fazer em sua ausência.

HERMÍONE - Não compreendo, senhor, vossa linguagem. Minha vida se acha a tiro, tão-só, de vossos
sonhos; aqui vo-la deponho.


LEONTES - Vossos atos são meus sonhos; sonhei que de Políxenes tivestes um bastardo. Distanciada
vos achais da vergonha - que as mulheres dessa laia o estão sempre - como longe da verdade dos fatos.
Contestá-los vos compete, sem que isso, agora, possa vos ser de algum proveito, pois tal como jogado
fora foi o teu produto - destino justo - por ser carecente de um pai que o reclamasse - maior culpa te cabe
neste ponto do que a ele - agora vais sentir nossa justiça, que em seu curso mais brando, nada menos do
que pena de morte te comia.

HERMÍONE - Poupai vossas ameaças; o espantalho com que me amedrontais, eu o procuro. Já não
posso ter gosto nesta vida; sua coroa e máxima ventura - vossa confiança - dou como perdida, pois sinto
que se foi, embora ignore como isso aconteceu. Minha segunda alegria, primícias deste corpo, me foi
tirada, como se terrível infecção eu tivesse. Meu terceiro consolo, malfadada pelos astros, dos seios me
arrancaram - leite puro na boquinha tão pura! - para à morte ser arrastada. Eu própria, proclamada pelos
postes como uma prostituta; um ódio cego me negou o direito de parto, concedido às mães de todas as
posições. Por fim, fui arrastada para aqui, em pleno ar, antes de as forças haver recuperado. Ora
dizei-me, meu soberano, que felicidades esperar posso, ainda, desta vida, para temer a morte? Por tudo
isso, prossegui; mas ouvi-me estas palavras; minha vida, avalio-a como palha. Quanto à minha honra,
desejara vê-la sem mancha alguma. Sendo eu condenada por suspeitas, apenas, dormitando todas as
provas favoráveis, menos as que vosso ciúme ora desperta, digo que isso é crueldade, não justiça. A vós
nobres, declaro que confio plenamente no oráculo. Há de Apolo ser meu juiz.

PRIMEIRO NOBRE - É justo esse desejo. Em nome, pois, de Apolo, que se tornem conhecidas de vez
suas palavras.
(Saem alguns oficiais.)

HERMÍONE - O Imperador da Rússia foi meu pai. Oh! Se vivo estivesse e, agora, visse sua filha ante os
juízes! Contemplara minha total miséria; mas com olhos brandos de compaixão, não de vingança.
(Voltam os oficiais, com Cleômenes e Dion.)

OFICIAL - Agora ides jurar sobre esta espada da justiça, Cleômenes e Dion, que estivestes em Delfo e
que trouxestes de lá, realmente, este selado oráculo, recebido das mãos do sacerdote do grande Apolo, e

que de então até hoje não tivestes o ousio de violá-lo, quebrando o sacro selo, para o texto secreto
conhecerdes.

CLEÔMENES E DION - Sim, juramos.

OFICIAL - "Hermífone é casta; Políxenes, sem mancha; Camilo, um súdito leal; Leontes, um tirano
ciumento; seu inocente filho, legitimamente concebido; e o rei viverá sem herdeiro, se não for achado o
que foi perdido."

NOBRES - Bendito seja o grande Apolo!

HERMÍONE - Seja louvado eternamente.

LEONTES - Leste certo?

OFICIAL - Sim, milorde; tal como se acha escrito.

LEONTES - Não há verdade alguma nesse oráculo. Continue a sessão. É só mentira.
(Entra um criado.)

CRIADO - Senhor! O rei! O rei!

LEONTES - Que acontece?

CRIADO - Ó senhor, vou tornar-me odiado, apenas por vos dar a notícia; mas o príncipe, vosso filho, de
medo e de tristeza pela sorte da rainha, acabou indo.

LEONTES - Acabou indo, como?

CRIADO - Sim, morreu.

LEONTES - Apolo está zangado; o próprio céu me castiga a injustiça.
(Hermíone desmaia.)

Então? Levai-a!

PAULINA - A nova foi fatal para a rainha. Vede o que a morte está fazendo nela. LEONTES - Retirai-a
daqui. Muito oprimido tem ela o coração. Vai refazer-se. Dei crédito excessivo às minhas próprias
suspeitas. Por obséquio, ministrai-lhe drogas que a façam retornar à vida.
(Saem Paulina e as damas, sustentando Hermíone.)>br> Perdoa, Apolo, a minha irreverência com
relação ao teu sagrado oráculo. Hei de reconciliar-me com Políxenes, reconquistar a esposa, o bom
Camilo chamar de novo, proclamando-o súdito verdadeiro e bondoso, pois, levado por pensamento
sanguinário à idéia de vingança escolhi Camilo para dar veneno ao meu quase irmão Políxenes, o que
teria sido executado, se Camilo, de espírito bondoso, não houvesse atrasado minhas ordens precipitadas,
ainda que com prêmios e ameaças rigorosas eu tivesse querido intimidá-lo e encorajá-lo Nada fazendo,
tudo fez; Camilo, com muita humanidade e a honra escutando, contou todo o meu plano ao meu real
hóspede, abandonou seus bens, que eram vultosos, como o sabeis, e se confiou de todo ao jogo certo da
fortuna instável, sem mais riqueza que a honra. Como a minha ferrugem lhe ressalta o brilho próprio!
Como a sua piedade torna as minhas ações mais pretas ainda!>br> (Volta Paulina.)

PAULINA - Que desgraça! Vinde desapertar-me o laço, para que, fazendo-o romper, não se me estale de
todo o coração.

PRIMEIRO NOBRE - Que houve, senhora?

PAULINA - Tirano, que tormentos inventaste para minha tortura? Que fogueiras, rodas, tratos, flagelos,
que fervuras, em óleo ou chumbo, para mim se aprestam? Que martírios, antigos ou recentes, me
esperam, se cada uma das palavras que eu disser, em resposta, só merece quanto de pior tiveres
inventado? A tua tirania, trabalhando com teu ciúme de comum acordo - fantasias mui fracas para
crianças, tolas e ociosas para raparigas de nove anos - Oh! vê o que fizeram e, depois, enlouquece
inteiramente! - pois as tuas tolices anteriores condimento, tão-só, foram desta última. O teres sido falso
para o amigo - Políxenes - foi nada; pois, com isso, te revelaste, apenas, inconstante, infernalmente
ingrato e mentecapto. Outrossim, não foi muito desejares envenenar a honra de Camilo, querendo que ele
a um rei a morte desse - pecado à-toa, logo ultrapassado por outros mais monstruosos, como teres jogado
aos corvos tua própria filha - pouco ou nada, realmente, embora um diabo primeiro ao fogo arrancaria
lágrimas, antes de fazer isso. Não te culpo, também, diretamente, pela morte do príncipe gentil, cuja
noção de honra - noção muito alta para a idade - partiu-lhe o coração, ao pensamento de que um pai tão
grosseiro quanto louco sua mãe graciosa houvesse difamado. Não, também disso não te faço carga. Mas
o último - Ó senhores! deveis todos gritar "Desgraça!" ao dizer eu qual seja - a rainha, a rainha, a mais
querida e inefável criatura, já não vive... E a vingança ainda não caiu sobre ele!

PRIMEIRO NOBRE - Que os poderes de cima o não consintam!

PAULINA - Já disse que morreu, e agora o juro. Mas se nem juras, nem palavras, podem convencer-vos,
vós mesmos ides vê-la. Se conseguirdes dar-lhe cor aos lábios, ou brilho aos olhos, o calor externo, por
dentro o hálito vivo, hei de servir-vos como o faria a deuses. Mas não tenhas remorsos, ó tirano, por tudo
isso! São fatos por demais pesados, para que com tua dor consigas abalá-los. Entrega-te somente ao
desespero. Mil joelhos, dez mii anos sem parada, inteiramente nu, jejuns terríveis numa montanha
desolada, inverno perpétuo, tempestade irreprimível, não poderiam demover os deuses a olhar para o
lugar em que estiveres.

LEONTES - Vai-te, vai-te; jamais dirás bastante. Mereço quanto de pior disserem todas, todas as línguas.

PRIMEIRO NOBRE - Ficai quieta! Por mais que tenha acontecido, falta mui grave cometeste, com
tamanho despejo de linguagem.

PAULINA - Dá-me pena; quando cometo alguma falta, logo que venho a conhecê-la, me arrependo. Que
desgraça! Mostrei como as mulheres são, no comum, demais precipitadas O nobre coração mostra
abalado. O que passou e já não tem remédio, lastimar não devemos. Dor alguma deveis mostrar, senhor,
ante o que eu disse. Pelo contrário, peço-vos punir-me por vos haver lembrado o que devíeis deixar no
esquecimento. Meu bondoso soberano, senhor, meu real senhor, perdoai a uma estouvada; mas o afeto
que a vossa esposa... Oh! novamente louca! Maior estouvamento! Não desejo falar dela outra vez, nem
dos meninos, vossos filhos; não hei de recordar-vos, também, de meu senhor, que está perdido, do
mesmo modo. Sede, pois, paciente, que não direi mais nada.

LEONTES - Não, falaste somente o que se deu. Prefiro todas essas verdades a que me lastimes. Por
obséquio, levai-me para a sala onde está o corpo dela e o do menino. Terão um só sepulcro; sobre a
lápide gravada vai ficar a verdadeira causa da morte de ambos, para nossa vergonha sempiterna.
Diariamente, hei de a capela visitar em que eles se acharem repousando. Meu consolo vai consistir nas
lágrimas vertidas sobre essa laje. E enquanto a natureza me permitir fazer esse exercício, prometo
repeti-lo diariamente. Conduzi-me a essas dores.

(Saem.)