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HENRIQUE VIII, ATO II, CENA III

Uma antecâmara dos aposentos da rainha. Entram Ana Bolena e uma velha dama da corte.

ANA ­ Por isso também não. Nisso é que o espinho nos provoca mais dor. Tendo Sua Alteza vivido
ao lado dela tanto tempo, e sendo ela senhora tão bondosa, que jamais língua alguma dizer pode nada
contra sua honra... Sim, de fato: nunca a ninguém fez mal... E agora, tendo ficado sobre o trono tantos
cursos do sol, em plena pompa e majestade, que deixar é mil vezes mais amargo do que é doce alcançar,
ser repelida depois de ter vivido desse modo, comover poderia qualquer monstro.
A VELHA DAMA ­ Os corações da têmpera mais dura se fundem em lamentações por ela.
ANA ­ O céu assim o quis. Bem melhor fora não ter a pompa conhecido nunca. Conquanto temporal,
quando a Fortuna rixenta nos obriga a abandoná-la, produz-se um sofrimento tão pungente como o de
separar-se do corpo a alma.
A VELHA DAMA ­ Volta a ser estrangeira! Pobre dama!
ANA ­ Mais um motivo para que a piedade se derrame sobre ela. Pois vos juro que é preferível vir de
um berço obscuro e contente viver com gente humilde, a pavonear-se numa dor brilhante e carregar uma
tristeza de ouro.
A VELHA DAMA ­ O que de melhor temos é a alegria.
ANA ­ Por minha fé e minha virgindade, não desejara ser rainha nunca.
A VELHA DAMA ­ Pois eu quisera sê-lo, por minha alma, e a própria virgindade arriscaria, bem
como vós, com todo esse tempero de falsidade. Sendo possuidora, como o sois, dos encantos femininos,
também tereis um coração de acordo, que sempre ambicionou a preeminência, soberania, bens, que são
legítimas bênçãos, para ser franca, sendo certo que, a despeito de todos esses dengues, vossa consciência
branda como pele de cabrito decerto aceitaria, bastando que para isso a distendêsseis.
ANA ­ Não, não, por minha fé.
A VELHA DAMA ­ Qual fé, qual nada! É certo: não quiséreis ser rainha?
ANA ­ Não, por quanto ouro sob o céu se encontra.
A VELHA DAMA ­ interessante! Pois qualquer moedinha me compraria ­ velha como me acho ­
para subir ao trono. Mas dizei-me, por favor, que pensais de uma duquesa? Tendes força bastante para o
peso suportar desse título?
ANA ­ Nenhuma.
A VELHA DAMA ­ É que nascestes fraca. Diminuamos a carga um pouco. Não quisera ver-me em
vossa estrada, como um conde jovem, para deixar-vos mais do que corada. Se vosso dorso não suporta o
fardo, é que para uma criança é muito fraco.
ANA ­ Como falais! Pois juro novamente que nem por todo o mundo eu desejara chegar a ser rainha.
A VELHA DAMA ­ É muito certo: pela Inglaterrazinha arriscaríeis empunhar firme o cetro. Eu, do
meu lado, fá-lo-ia pelo Carnavon, embora não mais do que isso pertencesse ao trono. Mas quem vem
vindo aí?
(Entra o Lorde Camareiro.)
CAMAREIRO ­ Muito bom dia, minhas senhoras. Quanto me pedíreis para me revelardes o segredo
sobre que conversáveis?
ANA ­ Não compensa vossa pergunta, meu bondoso lorde. A falar nos achávamos da sorte de nossa
soberana.
CAMAREIRO ­ Mui louvável tema, decerto, e em tudo condizente com o sentimento de pessoas
boas. Mas há esperança de que tudo ainda venha a terminar bem.
ANA ­ É só o que a Deus peço. Que assim seja.
CAMAREIRO ­ Tendes mui nobre coração. As bênçãos celestes caem sempre nas pessoas
semelhantes a vós. E, bela dama, para mostrar-vos quão sincero eu falo e a que ponto têm sido apreciadas
vossas altas virtudes, a grandeza do rei vos testemunha seu apreço, determinando honrar-vos de maneira
não menos florescente do que o título de Marquesa de Pembroke vos dando, ao qual Sua Graça uma
pensão ajunta de mil libras anuais.
ANA ­ Saber não posso de que maneira demonstrar-lhe todo meu reconhecimento. Tudo quanto sou
é menos que nada; minhas preces não são santificadas, não passando meus votos de palavras sem
substância. Ainda assim, só posso oferecer-lhe meus votos e orações. Suplico a Vossa Senhoria que
exprima toda a minha gratidão e obediência a Sua Alteza, como de jovem que enrubesce e reza pela
saúde dele e seu governo.
CAMAREIRO ­ De reforçar não deixarei, senhora, a opinião favorável que o monarca tem a vosso
respeito. (A parte.) Examinei-a muito bem. A beleza e a dignidade de tal maneira nela se misturam, que o
rei deixaram preso. Quem nos diz que (lesta dama não sairá uma jóia capaz de iluminar toda nossa ilha?
(Alto.) Vou ver o rei; direi que nos falamos.
ANA ­ Muito estimado lorde!
(Sai o Lorde Camareiro.)
A VELHA DAMA ­ Como as coisas se passam! Vede! Vede! Dezesseis anos mendiguei na corte, e
ainda sou mendiga, sem que nunca entre o cedo demais e o muito tarde pudesse achar o meio certo para
meus pedidos de libras. E, oh destino! vós, um peixinho novo ­ fora! fora! com a sorte tão forçada! ­
encheis a boca antes mesmo de abri-la.
ANA ­ Estou perplexa.
A VELHA DAMA ­ Que gosto tem? É amargo? Não, aposto quarenta pences em como é bem
gostoso. Era uma vez uma senhora ­ antigo conto assim começava ­ que por nada deste mundo quisera
ser rainha; em absoluto, nem por toda a lama do Egito. Conhecei-lo?
ANA ­ Estais brincando.
A VELHA DAMA Com vosso tema aos céus eu remontara. Marquesa de Pembroke! Com uma renda
de mil libras, por pura reverência, sem outra obrigação! Por minha vida, isso promete mais alguns
milheiros. A cauda da grandeza é mais comprida que a frente do vestido. Agora vejo que podeis carregar
uma duquesa. Não é certo que agora estais mais forte?
ANA ­ Minha boa senhora, distraí-vos com vossa fantasia, mas deixai-me fora desse brinquedo.
Morrer quero, se isso é capaz de alvoroçar-me o sangue. Desfalecer me sinto à só idéia do que virá
depois. A rainha se encontra inconsolável e nós nos esquecemos dela, ausentes assim por tanto tempo.
Por obséquio, nada deveis dizer-lhe do que ouvistes.
A VELHA DAMA ­ Decerto! Que pensais a meu respeito?
(Saem.)