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HENRIQUE VIII, ATO III, CENA I

O palácio de Bridewell. Um quarto dos aposentos da rainha. A rainha e suas damas de companhia
estão trabalhando.

RAINHA CATARINA ­ Menina, vai buscar teu alaúde, que minha alma está aflita de cuidados. Se
puderes, dispersa-os com teu canto. Larga o trabalho.

Canção
Com sua lira Orfeu fazia
dobrar-se a montanha fria
e os troncos, quando cantava.
Até, sem chuva e sem sol,
se via um lindo arrebol
e a primavera pompeava.
Ouvindo-o as coisas cantar,
as próprias ondas do mar
se quedavam pensativas.
Tem o canto tal condão
que as dores do coração
se tornam logo cativas.

(Entra um gentil-homem.)
RAINHA CATARINA ­ Que é que há?
GENTIL-HOMEM ­ Se Vossa Graça o permitir, encontram-se os dois grandes cardeais aí fora, à
espera.
RAINHA CATARINA ­ Querem falar-me?
GENTIL-HOMEM ­ Tenho instruções deles para dizer que sim.
RAINHA CATARINA ­ Dizei-lhes que entrem.
(Sai o gentil-homem.)
Que quererão de mim, sendo eu tão pobre, uma fraca mulher, já sem prestigio? Quanto mais penso
nisso, menos acho prazer nessa visita. Homens virtuosos deviam ser, de posição tão digna... Mas o hábito
não faz o monge, é certo.
(Entram Wolsey e Campeio.)
WOLSEY ­ Paz para Vossa Alteza.
RAINHA CATARINA ­ Vossas Graças como dona de casa ora me encontram. O medo do futuro é
que me obriga a estar em condições de fazer tudo. Reverendos senhores, qual a causa de quererdes
falar-me?
WOLSEY ­ Se do agrado vos for, nobre senhora, passaremos para vosso aposento reservado, onde
vos exporemos os motivos desta nossa visita.
RAINHA CATARINA ­ Mesmo aqui poderemos falar, pois, em consciência, até hoje nada fiz que
não pudesse revelar francamente em qualquer parte. Prouvera ao céu que todas as mulheres pudessem

declarar a mesma coisa com igual liberdade. Meus senhores, uma felicidade sempre tive: isso de não
ligar nunca importância ao fato de meus gestos comentados serem por toda a gente, de ficarem sob a
vista de todos, e como alvo dos ataques da inveja e da calúnia, tão certa me acho de ter vida limpa. Se
vindes para examinar a minha conduta como esposa, sede francos. Sempre a verdade ama linguagem
rude.
WOLSEY ­ Tanta est erga te mentis integritas, regina serenissima.
RAINHA CATARINA ­ Oh! nada de latim, meu bom senhor. Não tenho estado tão ociosa, desde
minha chegada, que não aprendesse a língua dos que vivem no meu meio. Em língua estranha minha
causa toma-se mais estranha e suspeita. Por obséquio, dai forma inglesa ao vosso pensamento. Se a
verdade disserdes, as pessoas presentes vos serão agradecidas por sua pobre senhora. Acreditai-me:
tratada tem sido ela rudemente. Lorde Cardeal, meu mais premeditado pecado pode ser perfeitamente
absolvido em inglês.
WOLSEY ­ Nobre senhora, pesa-me ver que a minha integridade, e toda a devoção com que vos
sirvo e a Sua Majestade só despertam suspeitas, apesar de toda a minha boa fé e lealdade. Aqui não
vimos para acusar, para manchar uma honra que recebido tem somente bênçãos das almas bem formadas,
nem, tampouco, para vos provocar novas tristezas ­ que é o que tendes bastante ­ mas apenas para
ficarmos conhecendo como julgais a grave dissidência que houve entre o monarca e vós, e para dar-vos.
­ como pessoas livres e sinceras ­ nossa justa opinião e algum conforto.
CAMPEIO ­ Muito honrada senhora, o Lorde de York, movido por sua nobre natureza, pelo zelo e
obediência que ele ainda professa a Vossa Graça, e já esquecido, por ser homem de bem, de vosso ataque
contra ele próprio ­ muito longe, muito, vos deixastes levar ­ vos oferece, como o faço, os serviços e
conselhos.
RAINHA CATARINA (à parte) ­ Para trair-me. (Alto.) Meus senhores, a ambos agradeço a
intenção. Falastes como gente honesta ­ prouvera ao céu que o fôsseis! ­ Mas dar uma resposta tão de
súbito sobre assunto de tanta gravidade, que tão de perto a honra vem ferir-me e muito mais, talvez, a
própria vida... Com meu fraco juízo, diante de homens de tanta erudição e gravidade, com franqueza, não
sei como fazê-lo. Encontrava-me em meio às minhas damas de companhia, longe ­ Deus o sabe ­ de
pensar em visitas de tal porte e em semelhante assunto. Assim, em nome do que eu fui ­ pois percebo
que se encontra no fim minha grandeza ­ a Vossas Graças suplico conceder à minha humilde causa um
pouco de tempo e reflexão. Ah! sou uma mulher fraca, sem amigos, sem esperança alguma.
WOLSEY ­ Nobre dama, ofendeis a afeição do soberano com semelhante medo. Não têm número
vossos amigos, vossas esperanças.
RAINHA CATARINA ­ Na Inglaterra, de quase nenhum préstimo. Acreditais, senhores, que um
inglês se atreveria a dar-me algum conselho, dizer-se amigo meu, abertamente, contra o prazer agir de
Sua Alteza ­ dado que houvesse algum desesperado que honesto se mostrasse ­ continuando, depois
disso, com vida? Não, decerto. Os amigos que o fardo poderiam sopesar de meu grande sofrimento, em
quem confiai- de todo eu poderia, aqui não vivem. Todos eles, como qualquer outro consolo, muito longe
se acham daqui, na minha própria pátria.
CAMPEIO ­ Desejaria que por uns instantes Vossa Graça deixasse essas tristezas e ouvisse meu
conselho.
RAINHA CATARINA -- Qual é ele, senhor?
CAMPEIO ­ À proteção do soberano confiar a vossa causa. Ele é bondoso e por demais amável. De
vantagem fora para vossa honra e vossa causa, pois se vos atingir o legal juízo, desonrada saireis.
WOLSEY ­ É com acerto que ele vos aconselha.
RAINHA CATARINA ­ Ele aconselha o que ambos desejais: minha ruína. É um conselho cristão?
Oh! que vergonha para vós ambos! Ainda há céu, lá no alto um juiz se encontra a que nenhum monarca poderá corromper.
CAMPEIO ­ Vossa paixão nos interpreta mal.
RAINHA CATARINA ­ Pois tanto pior para ambos. Eu pensava que ambos fôsseis homens santos; é
certo, por minha alma, duas cardeais virtudes e eminentes. Mas ambos não passais, receio-o muito, de
pecados cardeais, corações falsos. Que vergonha, senhores! Reformai-vos! Esse é o vosso consolo, o
lenitivo que trazeis a uma dama desgraçada? a uma mulher perdida neste meio, ridicularizada,
escarnecida? Nem a metade, ao menos, vos desejo das infelicidades que me oprimem. Tenho mais
caridade. Mas lembrai-vos de que ora vos advirto. Tomai tento, pelo céu, porque o fardo de meus males
sobre vós não recaia.
WOLSEY ­ Nobre dama, estais fora de vós; isso é delírio; em suspeita mudais os bons intentos.
RAINHA CATARINA ­ E vós a mim, em nada. Amaldiçoados sejam todos os falsos conselheiros
como vós. Quereríeis ­ se piedade tivésseis, sentimento de justiça, se de membros da Igreja possuísseis
alguma coisa mais do que a roupagem ­ que nas mãos minha causa eu depusesse de quem só me tem
ódio? Ai! há que tempo da afeição do monarca estou banida, e também do seu leito! Já estou velha, meus
senhores; agora só perdura de nossa ligação minha obediência. Que é que de pior podia acontecer-me
além dessa desgraça? Vosso esforço me acarretou a maldição que vedes.
CAMPEIO ­ O pior é Vosso medo.
RAINHA CATARINA ­ Vivi tanto ­ deixai que eu mesma o diga, que a virtude com amigos não
conta ­ como esposa dedicada e ­ declaro-o sem vanglória ­ sem que a suspeita nunca me tivesse
lançado o seu ferrete; tendo sempre dedicado ao monarca o meu afeto; depois de Deus, amando-o;
obedecendo-lhe, levando meu amor à idolatria, chegando mesmo, para ser-lhe amável, a descuidar das
orações, e tudo para premiada ser desta maneira? Oh! é duro, senhores! Apontai-me uma mulher
constante a seu marido, uma mulher que nunca uma alegria sonhado houvesse além do prazer dele, a
após ter ela feito tudo, tudo, a meu favor um mérito eu reclamo: minha grande paciência.
WOLSEY ­ Nobre dama, fugis dos bons intuitos que nos movem.
RAINHA CATARINA ­ Não quero cometer, milorde, o crime de renunciar de grado ao nobre título
que me ligou ao vosso soberano. Somente a morte pode divorciar-me de minha dignidade.
WOLSEY ­ Ora atendei-me.
RAINHA CATARINA ­ Antes o pé nunca eu tivesse posto no solo da Inglaterra. nem provado da
lisonja que nele cresce tanto. Tendes o rosto de anjo, mas é certo que vossos corações o céu conhece.
Qual será a sorte desta desgraçada? Não há mulher tão infeliz quanto eu.
(A suas damas de companhia.)
Ah, pobrezinhas! que futuro tendes, naufragadas num reino onde a esperança não medra, nem
amigos, nem piedade; onde por mim não chora um só parente e onde mal me concedem um sepulcro!
Como a açucena, outrora soberana dos campos, onde havia florescido, pendo a cabeça e morro.
WOLSEY ­ Se pudesse Vossa Graça chegar a convencer-se de que nossos intuitos são honestos,
mais tranqüila ficara. Por que causa, boa dama, por que motivo havíamos de vos prejudicar? Ah! nossos
postos, o caráter de nossa dignidade, nos impedem de tal. Curar as mágoas é nossa missão própria, não
semeá-las. Pelo céu, refleti no que fizerdes, como podeis prejudicar-vos, como, com tal procedimento,
poderíeis afastar-vos de todo do monarca. O coração dos príncipes dá beijos na obediência, a tal ponto
gosta dela; mas, em frente aos espíritos teimosos, levantam-se, explodindo tão terríveis como as grandes
tormentas. Estou certo de que sois de gentil e nobre gênio, de alma tão calma como o mar tranqüilo. Pelo
que somos, por favor, tomai-nos: mediadores da paz, amigos, servos.
CAMPEIO ­ Senhora, haveis de convencer-vos disso. Prejudicais demais vossa virtude com esse
medo de mulheres débeis. Um espírito nobre como o vosso rejeita essas suspeitas como moedas de cunho
duvidoso. O rei vos ama. Cuidai de conservar sempre o amor dele. Se confiardes em nós, estamos
prontos a provar nosso zelo de servir-vos.
RAINHA CATARINA ­ Fazei o que quiserdes, meus senhores, e desculpai-me, por favor, no caso de
eu me ter comportado incivilmente. Sabeis que sou mulher e que careço da arte de conversar com
propriedade com pessoas tão altas. Meus respeitos oferecei a Sua Majestade; fazei-me esse favor. Ele
ainda é dono do coração que neste peito bate, e enquanto eu tiver vida, será dono de minhas orações.
Vinde, mui dignos padres, aconselhai-me. Agora implora quem não pensou desde o primeiro dia que tão
cara a realeza lhe sairia.
(Saem.)