Compartilhe

HENRIQUE VIII, ATO IV, CENA I

Uma rua de Westminster. Entram dois gentis-homens, que se encontram.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Mais uma vez, bem-vindo.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Como vós.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Viestes tomar lugar, porque a Lady Ana possais ver, quando vier
da coroação?
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Perfeitamente. Ao nosso último encontro deixava o tribunal o
grande Duque de Buckingham.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Porém naquele dia tudo era só tristeza. Hoje, por toda parte reina a
alegria.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ E com razão. Os cidadãos revelam plenamente que dedicados são
ao rei e ao trono. Façamos-lhe justiça; sempre se acham prontos a celebrar esta efeméride com
representações, troféus e emblemas.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Mas nunca festivais houve tão belos, isso asseguro, nem mais
adequados.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Se desculpardes a pergunta, posso saber que papel é esse?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Ora, sem dúvida. É a relação dos que vão pedir hoje novos postos,
de acordo com o costume dia coroação. É o primeiro o Duque de Suffolk, que deseja ser nomeado
grão-senescal; o Duque de Norfolk vem depois, como conde-marechal. Lede o resto vós mesmo.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Agradecido; se eu já não conhecesse esse costume, vosso papel
muito útil me seria. Mas, por favor, dizei-me: que foi feito de Catarina? Falo da princesa viúva. Em que
pé está o seu negócio?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Poderei informar-vos. O Arcebispo de Cantuária, com vários
outros membros reverendos e sábios de sua ordem, reuniu uma corte de justiça há pouco, em Dunstable,
distante só seis milhas de Ampthill, onde a princesa está morando, a qual diversas vezes foi citada, mas
não apareceu. Para ser breve: por causa de sua ausência e dos escrúpulos recentes do monarca,
proclamado foi o divórcio por geral consenso dos sábios personagens, sem efeito tendo ficado o
casamento de ambos. Transferida depois foi ela para Kimbolton, onde agora se acha doente.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Pobre senhora!
(Toque de trombetas.)
Toque de trombetas! Basta, basta! A rainha vem chegando.
(A ordem do cortejo). (Oboés.)
1 ­ Dois juizes.
2 ­ O Lorde Chanceler, precedido da bolsa e da maça.
3 ­ Coristas cantando.
(Música.)
4 ­ O prefeito de Londres, com a maça; depois, o rei de armas, em traje de rigor, trazendo na cabeça
uma coroa de cobre dourado.
5 ­ O Marquês Dorset, com um cetro de ouro, trazendo na cabeça uma meia coroa de ouro. Com ele
vem o Conde de Surrey com o bastão de prata encimado por uma pomba, trazendo na cabeça uma coroa
de conde; ao pescoço, colar da ordem, em forma de SS.
6 ­ O Duque de Suffolk, com seu manto de Estado, coroa pequena na cabeça, empunhando a varinha
branca do grão-senescal. Com ele, o Duque de Norfolk, com o bastão de marechalato e coroa pequena.
Colar de SS.
7 ­ Um dossel carregado por quatro barões dos Cinco-Portos; sob ele, a rainha, em traje de
cerimônia; está coroada e com os cabelos enfeitados de pérolas. Ladeiam-na os Bispos de Londres e de
Winchester.
8 ­ A velha Duquesa de Norfolk com uma grinalda de flores de ouro, sustentando a cauda da rainha.
9 ­ Numerosas damas nobres ou condessas com simples aros de ouro na cabeça, sem flores.
(Atravessam o palco em ordem e com solenidade.)
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Por minha vida! um séquito admirável! Conheço aqueles. Quem
carrega o cetro?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ O Marquês Dorset; o bastão é o Conde de Surrey que carrega.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ É um gentil-homem nobre e valente. E aquele, porventura não será
o Duque de Suffolk?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ O mesmo; como grão-senescal.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ E esse, milorde de Norfolk?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Ele mesmo.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ (olhando para a rainha) ­ O céu te ampare! Tens o mais belo rosto
que eu já vi. Senhor, por minha vida, ela é um anjo. No braço leva o rei ambas as Índias, sendo muito
mais rico, oh! sem medida, quando nos braços cinge esta senhora. Não censuro a consciência do
monarca.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Os que sobre ela o baldaquim sustentam, são quatro dos barões de
Cinco-Portos.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Que homens felizes! e assim todos quantos se encontram perto
dela. E acaso aquela que lhe segura a cauda do vestido não será a veneranda e nobre dama, a Duquesa de
Norfolk?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Ela mesma, como condessas são todas as outras.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ As coroas o dizem. São estrelas todas elas; algumas, em declínio.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Sobre isso não falemos.
(Sai a procissão ao toque estridente de fanfarras.)
(Entra um terceiro gentil-homem.)
Deus vos salve, senhor! Onde ficastes tão assado?
TERCEIRO GENTIL-HOMEM ­ Na abadia, onde o povo se aglomera de modo tal, que nem um
dedo fora possível meter lá. Quase me matam com tanta exuberância de alegria.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Vistes a cerimônia?
TERCEIRO GENTIL-HOMEM ­ Vi.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ E o jeito?
TERCEIRO GENTIL-HOMEM ­ Mui digno de ser visto.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Bom amigo, contai-nos como foi.
TERCEIRO GENTIL-HOMEM ­ Do melhor modo que possível me for. Tendo a rainha levado até
um lugar no coro, a esplêndida onda de nobres damas e senhores um tanto se afastou. Lá, Sua Graça
sentou-se um pouco, cerca de meia hora, num trono rico, ao povo patenteando toda a sua beleza.
Acreditai-me, senhor: ela é a mulher mais admirável que ao lado já dormiu de qualquer homem. Quando
o povo a admirou assim de perto, levantou-se um barulho como fazem as enxárcias num mar em
tempestade, assim violento e vário: chapéus, mantos, creio que até casacos, tudo voava. E se as cabeças
fixas não se achassem, nesse dia perdidas ficariam. Nunca vi tanto júbilo; mulheres grávidas, na semana
já do parto, como os velhos aríetes de guerra, entre a turba se metiam, brechas abrindo facilmente. Não
podia ninguém dizer: "Minha mulher é aquela", de tal maneira entrelaçados todos num só bloco se
achavam.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ E após isso?
TERCEIRO GENTIL-HOMEM ­ Finalmente Sua Graça levantou-se e com passos modestos
dirigiu-se para o altar, ajoelhou-se e, na postura de uma santa, no céu fitando os olhos, rezou
devotamente. Levantando-se, fez uma reverência para o povo. Após isso, o Arcebispo de Cantuária lhe
deu as reais insígnias de seu posto: o óleo sagrado, a coroa que já fora de Eduardo, o Confessor, a vara, a
pomba da paz e todos os demais emblemas nobremente ao seu lado foram postos; logo depois, o coro,
acompanhado da música melhor de todo o reino cantou o Te Deum. Assim foi ela embora, com a mesma
cerimônia com que viera, para o palácio de York, onde festejos se estão realizando.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Doravante, senhor, já não será palácio de York. Isso foi no
passado, pois o título com a queda do cardeal ficou extinto. Ora é do rei e o nome de Whitehall.
TERCEIRO GENTIL-HOMEM ­ Perfeitamente. Porém tão recente foi a mudança, que seu velho
nome me ocorre mais amiúde.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Qual o nome dos dois bispos tão graves que marchavam ao lado da
rainha?
TERCEIRO GENTIL-HOMEM ­ Stokesly e Gardiner, um, Bispo de Winchester; foi promovido;
secretário do rei era até há pouco. O outro, Bispo de Londres.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ O de Winchester não é tido na conta de afeiçoado ao arcebispo, o
virtuoso Cranmer.
TERCEIRO GENTIL-HOMEM ­ Todo o país sabe isso. Por enquanto, porém, a divergência ainda é
pequena. Mas se vier a aumentar, há de achar Cranmer um amigo que nunca há de deixá-lo.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Quem pode ser? Dizei-me.
TERCEIRO GENTIL-HOMEM ­ Tomás Cromwell, pessoa que desfruta de muito alto prestígio
junto ao rei; amigo certo, sem dúvida nenhuma. O rei fez dele o avaliador de seu real tesouro, já tendo
sido nomeado para seu conselho privado.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Há de outros postos elevados obter.
TERCEIRO GENTIL-HOMEM ­ Sim, nem há dúvida. Vamos juntos, senhores; vou à corte; ali
sereis meus hóspedes; disponho de alguma autoridade. De caminho, sobre isso falaremos mais de espaço.
AMBOS ­ Estamos, meu senhor, às vossas ordens.
(Saem.)