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A MEGERA DOMADA, ATO III, Cena II

(O mesmo. Diante da casa de Batista. Entram Batista, Grêmio, Trânio, Catarina, Bianca, Lucêncio e
criados.)

BATISTA (a Trânio) - Hoje é o dia das núpcias de Petrucchio com Catarina, meu senhor Lucêncio; mas
não temos notícia de meu genro. Que se virá a dizer? Quanto motivo de zombaria, se não vier o noivo, já
estando o padre à espera para os ritos das núpcias realizar! Que diz Lucêncio da afronta que nos fazem?

CATARINA - Minha, apenas, é toda a afronta. Tive de, forçada, ceder a mão, contra a vontade própria, a
um sujeito estouvado, tipo excêntrico, que ficou noivo à pressa e ora pretende casar-se com vagar. Bem
que eu vos disse que era louco varrido e que escondia sob a capa de amargas brincadeiras a grosseria
própria. Porque alegre sujeito parecesse, pediria de mil jovens a mão, marcara a data do casamento,

convidara amigos, fazendo publicar logo os proclamas, sem pretender, porém, casar-se nunca. A pobre
Catarina doravante vai apontada ser por toda a gente, que dirá: "Olha a esposa de Petrucchio, quando
Petrucchio se casar com ela!"

TRÂNIO - Paciência, Catarina; e vós, Batista. Mas posso garantir-vos que Petrucchio tem boas
intenções. É que decerto não pôde vir no prazo combinado. Conquanto seja um tanto brusco, tenho-o na
conta de sensato; embora alegre, é homem de palavra e muito honesto.

CATARINA - Prouvera ao céu que nunca o houvesse visto a pobre Catarina!
(Sai chorando, seguida de Bianca e de outras pessoas.)

BATISTA - Vai, menina; não te censuro por chorares hoje. Uma injúria como esta deixaria vexado um
santo, muito mais pessoa de gênio como o teu, tão impaciente.
(Entra Biondelo.)

BIONDELLO - Senhor, senhor! novidade! Uma novidade velha, uma novidade como igual jamais
Ouvistes.

BATISTA - Velha e nova ao mesmo tempo? Como pode ser isso?

BIONDELLO - Então não será novidade saberdes que Petrucchio está a chegar?

BATISTA - Já chegou?

BIONDELLO - Ainda não, senhor.

BATISTA - Então, que é que houve?

BIONDELLO - Está chegando, senhor.

BATISTA - E quando chegará aqui?

BIONDELLO - Quando ele estiver onde eu estou e vos vir como eu vos estou vendo.

TRÂNIO - Dize logo de uma vez: qual é a tua novidade velha?

BIONDELLO - Ora, Petrucchio vem vindo aí com um chapéu novo e um casaco velho; uns calções três
vezes revirados; um par de botas que já serviram de candelabro, uma de fivela e a outra de amarrar com
cordão; uma espada enferrujada e sem bainha, tirada do arsenal da cidade, com o punho quebrado e com
as duas correias arrebentadas. O cavalo em que ele vem é manco e traz uma sela bichada e velha, com
estribos desaparelhados, além de sofrer de mormo e gosma, de sarna, de escorbuto; está cheio de tumores
nas juntas, de esparavão caloso; a icterícia o deixou listado, tem escrófula a mais não poder, vive morto
de apoplexia, comido de lombrigas; a espinha,, arrebentada; as pás, fora do lugar; as pernas da frente são
mais curtas, o freio, de um lado só, com cabeçada de couro de carneiro que de tanto ser puxado para
impedi-lo de tropeçar, já arrebentou em muitas partes, ficando cheio de nós. A silha é de seis variedades
de pano; o selim é de mulher, com duas iniciais indicadoras do nome da dona primitiva, desenhadas com
tachas e aqui e ali costuradas com barbante.

BATISTA - Quem vem com ele?

BIONDELLO - Oh, Senhor! O seu lacaio, enfeitado do mesmo jeito que o cavalo, com uma meia de
linho em uma das pernas e uma perneira de pano grosso na outra, ligas listadas de azul e vermelho, um

velho chapéu que, guisa de pluma, traz "o humor de quarenta fantasias"; um monstro, um verdadeiro
monstro nos trajes, não se parecendo em nada com um pajem cristão ou com o criado de um
gentil-homem.

TRÂNIO - Algum capricho o leva a assim vestir-se, embora sempre usasse roupa simples.

BATISTA - Alegra-me saber que ele já está em caminho; venha de que jeito vier.

BIONDELLO - Ora, senhor; mas ele não vem vindo.

BATISTA - Mas não dissestes que ele já vinha vindo em caminho?

BIONDELLO - Quem? Eu? Que Petrucchio vem vindo?

BATISTA - Sim, que Petrucchio está a chegar.

BIONDELLO - Não, senhor; o que eu disse foi que o cavalo dele o trazia no dorso.

BATISTA - Ora, ora; é a mesma coisa.

BIONDELLO - Não, não, por São Jacó! Aposto um bom vintém em que um cavalo só e um homem,
mais ninguém, se eu junto os colocar não formarão um par.
(Entram Petrucchio e Grúmio.)

PETRUCCHIO - Então, meus elegantes? Todos prontos?

BATISTA - Sois bem-vindo, senhor.

PETRUCCHIO - Mas não vim bem.

BATISTA - Contudo, não coxeais.

TRÂNIO - Como não vindes vestido como eu próprio o desejara.

PETRUCCHIO - Com roupa fina ou não, o que importava era a ansiedade de vir ter convosco. Mas onde
está Quetinha, minha noiva do coração? Meu pai, como se sente? Meus senhores, franzis o sobrecenho.
Por que esta bela companhia fica como que estupefacta, parecendo ver algum monumento extraordinário,
prodígio raro, ameaçador cometa?

BATISTA - Ora, senhor, sabeis perfeitamente que hoje é o dia de vosso casamento. A princípio ficamos
pesarosos de medo que não viésseis; mas agora mais tristes nos tornamos por vos vermos vestido desse
jeito. Tirai isso, que vossa posição não honra e mancha nossa festa solene.

TRÂNIO - E revelai-nos o impedimento grave que afastado de vossa noiva vos deteve tanto,
trazendo-vos agora desse modo, tão estranho a vós próprio.

PETRUCCHIO - Fastidioso fora contar e pior de ouvir ainda. Vim cumprir a palavra; é quanto basta,
embora em alguns pontos obrigado tivesse sido a me afastar da meta, do que com mais vagar hei de
escusar-me, satisfações vos dando suficientes. Mas onde está Quetinha? Há quanto tempo não a vejo! A
manhã já está passando; já fora tempo de na igreja estarmos.

TRÂNIO - Não vos apresenteis a vossa noiva com essa fantasia irreverente. Ide ao meu quarto e ponde
roupa minha.

PETRUCCHIO - Não; podeis crer-me. Assim, desejo vê-la.

BATISTA - Mas quero crer que não ireis à igreja vestido desse modo.

PETRUCCHIO - Justamente desta maneira, meu senhor. Mas basta de tanto palavrório. Ela se casa
comigo apenas, não com minha roupa. Caso eu pudesse reparar com tanta facilidade em mim o que ela
gasta, como posso trocar estes farrapos, bem estaria para Catarina, e melhor para mim. Mas que pateta,
para tagarelar assim convosco, quando devera dar a minha noiva meu bom dia e selar com um terno beijo
meu título inconteste!
(Saem Petrucchio, Grêmio e Biondello.)

TRÂNIO - Com tais vestes deve ele ter em mente alguma coisa. Se for possível, vamos persuadi-lo a
vestir-se melhor, para ir à igreja.

BATISTA - Vou atrás dele, para ver como isso tudo vai acabar.
(Saem Batista, Grêmio e criados.)

TRÂNIO - O amor de Bianca, senhor, é nada, sem que lhe ajuntemos a permissão paterna. Para obtê-la,
como já disse a Vossa Senhoria, vou procurar um homem - pouco importa quem ele seja; havemos de
instruí-lo - que Vicêncio de Pisa vai chamar-se e aqui em Pádua caução nos dará plena de quanto
prometi, e mais ainda. Assim, de vossa dita, calmamente desfrutareis, e com consentimento vireis a
desposar a doce Bianca.

LUCÊNCIO - Não fosse o professor, meu camarada, tão de perto vigiar os passos dela, fora fácil,
parece-me, casarmo-nos por modo clandestino. Uma vez pronto, embora diga "não" o mundo todo,
contra o mundo, sozinho, a defendera.

TRÂNIO - Até lá chegaremos pouco a pouco, se cuidarmos de nossos interesses. Mantearemos, assim, o
velho Grêmio, o pai ranzinza espreitador, Minola, o músico amoroso e fino, Lício, só para o bem de meu
senhor Lucêncio. Estais vindo da igreja, signior Grêmio?
(Volta Grêmio.)

GRÊMIO - De tão bom grado como do colégio.

TRÂNIO - E os casados, vêm vindo para casa?

GRÊMIO - Casados? Descasados fora certo, que ela com ele não ganhou marido.

Tipo intratável!

TRÂNIO - Como! Mais do que ela? Não é possível.

GRÊMIO - Ora, é um demônio, um verdadeiro demo.

TRÂNIO - E ela, uma diaba: uma diaba, a mulher do diabo-chefe.

GRÊMIO - Qual o quê! É uma ovelha, uma pombinha; junto dele é uma tonta. Vou contar-vos, senhor
Lucêncio. Ao perguntar-lhe o padre se por esposa ele aceitava a noiva, "Sim, pelo raio!" disse, de tal
modo gritando que, de medo, o sacerdote deixou cair o livro, e, ao abaixar-se para apanhá-lo, o noivo
tresloucado deu-lhe tamanho murro que rolaram pelo chão padre e livro, livro e padre. "Quem quiser",
disse, "que os levante agora".

TRÂNIO - E, ao levantar-se o padre, que disse ela?

GRÊMIO - Era só medo, que ele sapateava, jurando sem parar, como se o padre quisesse ludibriá-lo. A
cerimônia concluída, pediu vinho. "À vossa saúde!" gritou, como se a bordo ele estivesse com a maruja,
a beber alegremente, depois do furacão. Tendo bebido parte do moscatel, jogou no rosto do sacerdote o
resto, sem dar outra razão senão dizer-nos que era rala e faminta a barba dele e parecia que implorava um
gole. Depois, pelo pescoço toma a noiva e com tal bulha lhe beijou os lábios que fez o eco estrondar na
igreja toda. Vendo isso, de vergonha vim correndo, como estou certo que os demais fizeram. Nunca
houve casamento tão maluco. Ouvi, porém! São os menestréis que tocam.
(Ouve-se música. Voltam Petrucchio, Catarina, Bianca, Batista, Hortênsio, Grúmio e séqüito.)

PETRUCCHIO - Amigos e senhores, a vós todos agradeço o trabalho que tivestes. Sei que hoje
pretendeis jantar comigo e preparastes um banquete opíparo. Mas o fato é que a pressa não permite que
eu me demore aqui. Assim, forçoso Será que me despeça de vós todos.

BATISTA - Como! quereis partir ainda esta noite?

PETRUCCHIO - De dia, ainda; antes que a noite chegue. Não vos mostreis atônitos. Se viésseis a saber
os negócios que me chamam, longe de me pedirdes que ficasse, diríeis que me fosse. Agradecido me
declaro a esta honrada companhia, que testemunha pôde ser de como me entreguei a esta esposa
pacientíssima, delicada e virtuosa. Ficai todos com meu pai e com ele banqueteai-vos. Bebei em meu
louvor. E agora, adeus.

TRÂNIO - Permiti que vos peça aqui ficardes até depois da ceia.

PETRUCCHIO - Isso é impossível.

GRÊMIO - Atendei-me, senhor.

PETRUCCHIO - Isso é impossível.

CATARINA - Permiti que vos peça.

PETRUCCHIO - Estou contente.

CATARINA - Contente vos mostrais, por que ficamos?

PETRUCCHIO - Contente, por pedirdes que fiquemos; porém, apesar disso, não ficamos.

CATARINA - Vamos, ficai, ficai, se amor me tendes.

PETRUCCHIIO - Grêmio, olá! Meu cavalo!

GRÚMIO - Está pronto, senhor; a aveia já comeu os cavalos.

CATARINA - Pois muito bem. Farás o que quiseres, mas hoje não sairei, nem amanhã; só quando o
resolver. Senhor, a porta se encontra aberta; é ali vosso caminho; podeis sair de trote, enquanto as botas
tendes macias. Quanto a mim, decido que só sairei quando me der na telha. Prometeis ser esposo bem
cacete, para assim procederdes desde início.

PETRUCCHIO - Acalma-te, Quetinha! Por obséquio, não te zangues comigo.

CATARINA - Zango, zango; que tens que ver com isso? Ficai calmo, meu pai; ele aqui fica; estou
mandando.

GRÊMIO - Ah! ah! amigo; agora é que são elas!

CATARINA - Senhores, dirigi-vos para a sala do festim nupcial. Agora vejo que uma mulher pode virar
cretina, se não mostrar coragem suficiente.

PETRUCCHIO - Todos irão cear, minha Quetinha, porque assim o ordenaste. Ide, senhores, para o
banquete! Obedecei à noiva, bebei à larga à sua virgindade, soltai rédeas ao júbilo, mostrai-vos ledos até
à loucura, ide enforcar-vos... Mas a minha Quetinha encantadora deverá ir comigo. Nada disso, não
precisais crescer para o meu lado, nem sapatear, nem escumar de raiva. Quero ser dono do que me
pertence; ela é minha fazenda, meus bens móveis, a mobília, o celeiro, a casa, o campo, meu burro, meu
cavalo, minha vaca, meu tudo, enfim. Aqui ela se encontra. Quem coragem tiver, que toque nela; saberei
defender-me contra o ousado que o passo me quiser barrar em Pádua. Desembainha, Grêmio, que
cercados estamos por bandidos. Se homem fores, salva tua patroa. Não, Quetinha, ninguém te tocará; hei
de amparar-te contra um milhão que seja.
(Saem Petrucchio, Catarina e Grúmio.)

BATISTA - Vamos! deixai seguir o par pacífico.

GRÊMIO - Se demorassem mais, eu morreria de tanta gargalhada.

TRÂNIO - Casamento tão louco assim, nunca houve.

LUCÊNCIO - Senhorita, de vossa mana que pensais agora?

BIANCA - Que, sendo louca, desposou um louco.

GRÊMIO - Petrucchio está catarinado, juro-o.

BATISTA - Amigos e vizinhos, muito embora não ocupem os noivos, por ausentes, seus lugares à mesa,
estai bem certos de que não faltam bons pitéus na festa. Lucêncio, o posto tomareis do noivo, e no lugar
da irmã senta-se Bianca. TRÂNIO - Vai praticar de noiva a bela Bianca?

BATISTA - Sim, Lucêncio. Avancemos, cavalheiros.
(Saem.)