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RICARDO II, ATO II, CENA III

Nas florestas de Gloucestershire. Entram Bolingbroke e Northumberland, com forças.

BOLINGBROKE ­ Milorde, a que distância fica Berkeley?
NORTHUMBERLAND ­ Nobre lorde, asseguro-vos, sou estrangeiro aqui em Gloucestershire. Estes
caminhos rudes e as colinas selvagens e altas nossas milhas deixam mais longas e a fadiga nos apressam.
Vossa prosa agradável, no entretanto, fez o papel de açúcar, de tal modo que ficou doce o amargo da
jornada. Por isso mesmo penso nas canseiras que hão de ter padecido Ross e Willoughby de
Ravenspurgh até Cotswold, privados de vossa companhia, que, repito, atenuou muito a insipidez da
viagem. Mas a deles, também, se acha atenuada pela esperança de gozarem logo da vantagem de que ora
eu me enalteço. A esperança de um bem é pouco menos do que o bem alcançado. Por tudo isso, aos
fatigados lordes há de a estrada parecer curta, como curta a achei, por possuir vossa nobre companhia.
BOLINGBROKE ­ Vale menos a minha companhia do que essas delicadas expressões. Mas quem
vem lá?
(Entra Henrique Percy.)
NORTHUMBERLAND ­ Meu filho Henrique Percy, mandado, não sei de onde, com recado do
mano de Worcester. Henrique, como passa o vosso tio?
HENRIQUE PERCY ­ Esperava, senhor, que me dissésseis como ia ele passando.
NORTHUMBERLAND ­ Como! Acaso não se acha com a rainha?
HENRIQUE ­ Não, milorde; abandonou a corte, após a vara de comando quebrar e ter a casa
dispersado do rei.
NORTHUMBERLAND ­ E a razão disso? Na última vez que conversamos, ele não pensava em tal
coisa.
HENRIQUE PERCY ­ Por ter sido proclamado traidor Vossa Grandeza. Foi para Ravenspurgh,
milorde, pôr-se a serviço do duque de Hereford; a Berkeley me enviou para que eu visse com quantos
homens conta o duque de York. As minhas instruções mandam que eu volte, depois, a Ravenspurgh.
NORTHUMBERLAND ­ Já te esqueceste do duque de Hereford? Que é isso, Henrique?
HENRIQUE PERCY ­ Não, meu senhor; que me esquecer não posso do que não me lembrou jamais.
Suponho, até, que nunca o vi em minha vida.
NORTHUMBERLAND ­ Então aprende a conhecê-lo agora: eis o duque.
HENRIQUE PERCY ­ Gracioso lorde, ponho às vossas ordens meu serviço, jovem embora e
inexperiente, mas que os dias da idade hão de deixar maduro e forte para melhor serviço e maior mérito.
BOLINGBROKE ­ Gentil Percy, obrigado. Podes crer-me que nada tão feliz me deixa como possuir
um coração que não se esquece de seus amigos. Caso a minha sorte cresça com teu afeto, a recompensa
ela será de teu amor sincero. Faz o peito o contrato; a mão o sela.
NORTHUMBERLAND ­ Berkeley quanto dista? Que proveito de seus soldados tira o bom velho
York?
HENRIQUE PERCY ­ O castelo se encontra além daquele grupo de árvores, forte de trezentos
soldados, me disseram. Nele se acham os lordes de York, Berkeley e Seymour. Não sei que outros
fidalgos lá se encontrem.
(Entram Ross e Willoughby.)
NORTHUMBERLAND ­ Ai vêm vindo lordes Ross e Willoughby com as esporas sangrentas e
afogueados de tanta pressa.
BOLINGBROKE ­ Meus saudares a ambos, milordes. Sei que vosso amor procura somente um
sublevado posto fora da lei. Minha riqueza, por enquanto, são agradecimentos que não pesam, mas que
serão, depois de enriquecidos, a justa recompensa dessas vossas canseiras e de vosso amor sincero.
ROSS ­ Vossa presença nos faz ricos, muito nobre senhor.
WILLOUGHBY ­ E com excesso paga todo o esforço que o obtê-la nos custasse.
BOLINGBROKE ­ Obrigado, de novo. Esse é o tesouro dos pobres, que franqueado há de manter-se
à liberalidade que me é própria, até crescer a minha infantil sorte. Mas quem vem vindo aí?
(Entra Berkeley.)
NORTHUMBERLAND ­ Milorde Berkeley, segundo penso.
BERKELEY ­ E para vós, milorde de Hereford, a mensagem que me trouxe a este lugar.
BOLINGBROKE ­ Só vos darei resposta como Lencastre, nome que eu procuro presentemente na
Inglaterra e que hei de ouvir de vossa boca antes que possa retrucar qualquer coisa ao que disserdes.
BERKELEY ­ Senhor, não compreendais mal o que eu disse; não tencionava suprimir um título, ao
menos, de Vossa Honra. Vim, milorde, lorde do que quiserdes, por mandado do gracioso regente desta
terra, o duque de York, a fim de me dizerdes a causa que vos leva a aproveitar-vos do tempo ausente e a
alvoroçar, desta arte, nossa nativa paz com armas de guerra.
(Entra York, com séquito.)
BOLINGBROKE ­ Não vos empregarei como correio do que eu disser. Vem vindo aí, em pessoa,
Sua Graça. Meu muito nobre tio...
(Ajoelha-se.)
YORK ­ Mostra-me o coração humilde e franco, não esses joelhos de obediência falsa e enganadora.
BOLINGBROKE ­ Meu gracioso tio...
YORK ­ Nada disso! Não tenho graça alguma, nem sou tio de ninguém, muito menos de um traidor.
Essa palavra "Graça" se abastarda em boca desgraciosa. Por que causa esses pés interditos e banidos a
tocar se atreveram na poeira do solo inglês? Mas ainda há mais "Porquês": Por que motivo ousaram
tantas milhas andar no seu pacífico regaço, as pálidas aldeias assustando com a guerra e a ostentação de
armas mesquinhas? Vieste por estar longe o rei ungido? Insensato! O monarca está presente; neste leal
peito o seu poder se encontra. Se eu dispusesse, ainda, da fogosa mocidade, tal como quando, ao lado de
teu valente pai, o bravo Gaunt, libertamos aquele jovem Marte, que de príncipe Negro nós chamávamos,
das filas de milhares de franceses, este braço que preso ora se encontra pela paralisia, sem demora te
aplicara o castigo reclamado por tua falta.
BOLINGBROKE ­ Meu gracioso tio, revelai-me essa falta. Em que consiste?
YORK ­ É das mais graves: rebelião grosseira, traição abominanda. Estás banido; contudo, antes do
prazo aqui te encontras em pé de guerra contra o rei legítimo.
BOLINGBROKE ­ Se banido eu me achava, fui banido como Hereford; mas vim, como Lencastre.
Por isso, nobre tio, instantemente suplico a Vossa Graça ver com olhos imparciais meu caso: em vós eu
vejo meu pai, o velho Gaunt redivivo. Permitireis, então, meu pai, que eu fique condenado a viver qual
vagabundo e que as prerrogativas e os direitos do meu nome me sejam arrancados, para esbanjados
serem por uns tantos perdulários mimosos do destino? Então, por que nasci? Se o rei meu primo for o rei
da Inglaterra, é inevitável que duque de Lencastre eu também seja. Tendes um filho: Aumerle, meu
parente muito prezado. Se morrido houvésseis primeiro e ele se visse espezinhado como eu agora, certo
ele teria um pai achado no seu tio Gaunt que as injustiças lhe vingara e à malta imporia respeito. Estou
proibido de reclamar aqui os privilégios que por cartas-patentes me couberam. Meu patrimônio todo foi
vendido e, como os outros bens, mal empregado. Que desejais que eu faça? Sou um vassalo; apelo para a
lei: negam-me juizes. Por isso ora eu reclamo pessoalmente a herança que me toca por direito.
NORTHUMBERLAND ­ Abusaram demais do nobre duque.
ROSS ­ Dependerá de Vossa Graça, apenas, justiça ora fazer-lhe.
WILLOUGHBY ­ Suas rendas enriqueceram muita gente baixa.
YORK ­ Milordes da Inglaterra, ora escutai-me: senti também as injustiças feitas contra meu primo e
procurei saná-las quanto me foi possível. Mas com armas ameaçadoras vir, desta maneira, ele próprio
cortar o seu pedaço, abrir caminho, assim, fazer justiça por meio injusto... Não; não pode ser! E vós que
fomentais a rebelião, encorajando-o, sois também rebeldes.
NORTHUMBERLAND ­ O nobre duque nos jurou que veio só para reclamar o seu direito. Por
nosso lado, nós também juramos ajudá-lo na empresa. Que não tenha jamais prazer quem se tornar
perjuro.
YORK ­ Bem, bem; já estou enxergando as verdadeiras intenções destas armas. Desfazê-las, não me
é possível, força é confessá-lo, que o meu poder é fraco e me foi tudo deixado em condições mais que
precárias. Mas se eu pudesse ­ pelo céu o juro! ­ vos deteria todos, obrigando-vos a implorar a clemência
do monarca. Mas já que me é impossível, vos declaro que me conservo neutro. E agora, adeus, salvo se
entrar quiserdes no castelo, para ai repousardes esta noite.
BOLINGBROKE ­ Oferta, meu bom tio, que aceitamos. Mas Vossa Graça tem de acompanhar-nos
ao castelo de Bristol, que, segundo nos disseram, se encontra sob o mando de Bagot e de Bushy, com
seus cúmplices, essas pragas nocivas à república que eu jurei extirpar e consumir.
YORK ­ E possível que eu vá: mas dai-me tempo, que violar não me agrada as leis do reino. Amigo
ou inimigo, pouco importa: entrai. Em caso desses, não direi nem ai.
(Saem.)