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RICARDO II, ATO III, CENA IV

Londres. Jardim do duque de York. Entram a rainha e duas damas.

RAINHA ­ Neste jardim que jogo intentaremos para expulsar o fardo dos cuidados?
PRIMEIRA DAMA ­ Vamos brincar com bolas, majestade.
RAINHA ­ A imaginar o jogo me obrigara que o mundo é só asperezas e que a minha fortuna em vão
se esforça na ladeira.
PRIMEIRA DAMA ­ Vamos dançar, senhora.
RAINHA ­ Impossível ser-me-á manter no ritmo sempre os pés, quando, cheio de tristeza, o coração
não bate certo nunca. Por isso, em dança, jovem, não falemos; outro qualquer desporto.
PRIMEIRA DAMA ­ Então, senhora, contaremos histórias.
RAINHA ­ As histórias serão tristes ou alegres?
PRIMEIRA DAMA ­ À vontade, senhora.
RAINHA ­ Então, nem tristes, nem alegres, rapariga; porque se for jocosa, faltando-me a alegria por
completo, mais me fará lembrada da tristeza; se for um caso triste, tendo eu tantas tristezas a pesar-me,
trará nova tristeza à minha falta de alegria. Não desejo dobrar o que já tenho; nem me quero queixar do
que me falta.
PRIMEIRA DAMA ­ Senhora, eu cantarei.
RAINHA ­ Se tens motivo para isso, bem está; mas preferira que chorasses.
PRIMEIRA DAMA ­ Senhora, eu poderia chorar, se algum proveito achásseis nisso.
RAINHA ­ Eu chorar poderia, se com o choro me viesse algum alívio e eu não tivesse necessidade
de pedir-te lágrimas. Mas pára aí; vêm vindo os jardineiros; ponhamo-nos à sombra destas árvores.
Aposto as minhas amarguras contra um papel de alfinetes em como eles vão do Estado falar, que todo o
mundo outra coisa não faz, quando há mudança; o infortúnio não pára; jamais cansa.
(A rainha e as damas se retiram.)
(Entram o jardineiro e dois criados.)
JARDINEIRO ­ Olha aqueles damascos pendurados; vai amarrá-los. São como crianças turbulentas
que os pais a dobrar forçam sob a opressão de seu pródigo peso. Põe estacas nos ramos mais descidos. Tu
aí, faze ao jeito dos carrascos: decapita as vergônteas mais viçosas, as que se sobressaem na república.
Em nosso Estado há uma bitola apenas. Enquanto cuidais disso, eu tiro as ervas daninhas, que desviam,
sem proveito, toda a seiva do solo, em prejuízo das flores benfazejas.
PRIMEIRO CRIADO ­ Por que causa devemos observar, no âmbito estreito deste recinto, a lei, a
forma e todas as proporções, mostrando, como exemplo digno de ser seguido, o nosso Estado de
fundamentos firmes, quando é certo que nossa terra, esse jardim cercado pelo mar, está cheio de cizânias,
suas flores mais belas se estiolam, asfixiadas, as árvores frutíferas carecentes de poda, arruinadas as
sebes, os canteiros em desordem e as ervas boas cheias de lagartas?
JARDINEIRO ­ Cala-te! O causador de tal desordem da primavera já perdeu as folhas. As ervas más,
que estavam protegidas por sua fronde extensa e que, tirando-lhe a seiva, pareciam sustentá-la,
arrancadas já foram com as raízes por Bolingbroke; ao duque me refiro de Wiltshire, Bushy e Green.
PRIMEIRO CRIADO ­ Que estás dizendo? Morreram?
JARDINEIRO ­ Sim, morreram. Além disso, Bolingbroke apossou-se do monarca dissipador. Que
pena não ter este cultivado o país como o fazemos com o jardim. Na sazão apropriada fazemos incisão na
casca, a pele das árvores frutíferas, por medo de que o excesso de seiva e sangue as deixe muito
orgulhosas, vindo a se destruírem pela própria riqueza. Se ele houvesse feito assim com as pessoas
ambiciosas e de influência, elas teriam tido vida bastante para dar os frutos do dever e ele enfim os
gostaria. Suprimimos os ramos parasitas para que os produtivos viver possam. Tivesse ele feito isso, e
não teria perdido o cetro em tal madraçaria.
PRIMEIRO CRIADO ­ Acreditais que seja ele deposto?
JARDINEIRO ­ Já está abaixando; e, quanto a ser deposto, não há dúvida alguma. Ainda esta noite
chegaram cartas para um grande amigo do bravo duque de York, noticiando coisas bem negras.
RAINHA ­ Isso me asfixia, impedindo-me a fala.
(Avançando.)
Ó tu, retrato do velho Adão, a este jardim trazido para vesti-lo, apenas: por que causa tem essa língua
rude o atrevimento de propalar notícias tão penosas? Qual foi a Eva, revela-me, qual serpente tentou a
anunciar mais uma queda do homem amaldiçoado? Por que dizes que o rei Ricardo foi deposto?
Atreves-te, sendo pouco melhor do que esta terra, a pressagiar sua queda? Como, quando, onde obtiveste
essas notícias lúgubres? Responde, miserável.
JARDINEIRO ­ Majestade, perdão. Pouca alegria me causa propalar essas notícias; mas só disse a
verdade. O rei Ricardo na mão forte já está de Bolingbroke. Já foi pesada a sorte deles ambos. No prato
em que se encontra vosso esposo nada mais há, senão poucas vaidades de nenhum peso, que mais leve o
deixam; mas no lado do grande Bolingbroke se acham todos os pares da Inglaterra, sem contarmos com
ele. Essa vantagem vai decidir a seu favor a sorte. Se a Londres fordes, sabereis de tudo quanto fala entre
nós o povo miúdo.
RAINHA ­ Ágil adversidade, de pés leves, tua embaixada a mim, só, diz respeito, e em sabê-la sou a
última? Deixaste-me para o fim, para que eu muito mais tempo tua dor no imo peito conservasse. Vamos
a Londres, moças, que o deposto rei de Londres se fina de desgosto. Nasci, então, para aumentar o
triunfo de Bolingbroke e lhe servir de trunfo? Por tuas más noticias, jardineiro, vai-te o esforço frustrar
Deus verdadeiro.
(Saem a rainha e suas damas.)
JARDINEIRO ­ Pobre rainha! A praga eu aceitara, se ela curasse a tua sorte amara. Neste ponto
umas lágrimas, donosas, ela deixou cair. Não serão rosas que nele eu vou plantar, senão arruda, planta,
da compaixão, da dor aguda, planta amarga da graça. Aqui, asinha, será sempre lembrada uma rainha.
(Saem.)