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A TEMPESTADE, ATO III, Cena II

(Outra parte da ilha. Entra Calibã com uma garrafa, Estéfano e Trínculo.)

ESTÉFANO - Não me fales! Quando o barril ficar vazio, beberemos água.Antes disso, nem uma gota. Por isso, criemos coragem e vamos abordá-lo! - Monstro-criado, bebe à minha saúde.

TRÍNCULO - Monstro-criado! A loucura desta ilha! Dizem que só há cinco habitantes na ilha. Três aqui estão; se os outros dois tiverem o cérebro como nós, o Estado não irá lá muito bem das pernas.

ESTÉFANO - Bebe, monstro-criado, quando eu mandar. Tens os olhos quase enfiados na cabeça.

TRÍNCULO - Onde querias que ele os tivesse? Seria um monstro muito famoso, em verdade, se tivesse os olhos na cauda.

ESTÉFANO - Meu servo-monstro afogou a língua em xerez. Quanto a mim, o mar não poderá afogar-me. Sem tocar pé em terra, posso nadar, de ida e vinda, trinta e cinco léguas. Por esta luz. Monstro, serás o meu tenente, ou o meu porta-bandeira.

TRÍNCULO - Tenente, se quiserdes, pois segurar a bandeira é o que ele não poderá.

ESTÉFANO - Não haveremos de correr, monsieur Monstro.

TRÍNCULO - Nem andar, tampouco; ficareis deitados, como cães, sem dizer palavra.

ESTÉFANO - Bezerro da lua, fala uma vez na vida, se fores um bom bezerro da lua.

CALIBÃ - Como passa tua Honra? Deixa-me lamber a sola de teus sapatos. Não hei de continuar no serviço dele; não é corajoso.

TRÍNCULO - Mentes, monstro ignorante! Encontro-e em condições de esbarrar num oficial de justiça. Vamos, responde, peixe devasso: já houve algum covarde que bebesse tanto xerez como eu bebi hoje? Não quererás dizer uma mentira monstruosa, sendo, como és, metade peixe e metade monstro?

CALIBÃ - Vê como ele zomba de mim! Consentes isso, príncipe?

TRÍNCULO - "Príncipe", foi o que ele disse! Como um monstro assim pode ser tão ingênuo!

CALIBÃ - Vê! Vê! Vai recomeçar! Por favor, mata-o a dentadas.

ESTÉFANO - Trínculo, pára com essa língua suja. Se provocares desordem... a primeira árvore! O pobre monstro é meu súdito e não sofrerá nenhuma indignidade.

CALIBÃ - Obrigado, meu nobre lorde. Queres mais uma vez ouvir minha proposta?

ESTÉFANO - Quero, sem dúvida. Ajoelha e repete-a. Eu e Trínculo ficaremos de pé.

(Entra Ariel invisível.)

CALIBÃ - Como já te disse, sou servo de um tirano, de um feiticeiro, que por meio de sua astúcia me despojou desta ilha.

ARIEL - Mentes!

CALIBÃ - Tu é que mentes, símio bobo. Por mim, meu valente amo te matava. Não menti nada.

ESTÉFANO - Trínculo, se o interromperdes mais uma vez em sua história, por esta mão, arranco-vos alguns dentes.

TRÍNCULO - Não falei nada.

ESTÉFANO - Então, psiu! Nem mais uma palavra.

(A Calibã.)

Continua.

CALIBÃ - Foi por feitiçaria, como disse, que ele ficou com a ilha. Caso tua Honra se dispuser a castigá-lo - pois sei que tens coragem, que é o que falta àquele tipo -

ESTÉFANO - Isso é verdade.

CALIBÃ - Serás o dono da ilha e eu teu criado.

ESTÉFANO - Mas de que modo levaremos a cabo o empreendimento? Podes conduzir-me até ao inimigo?

CALIBÃ - Posso, sim, meu senhor. Hei de entregar-to quando estiver dormindo, onde possível te for meter-lhe na cabeça um prego.

ARIEL - É mentira! Não podes.

CALIBÃ - Bobo sarapintado! Tipo imundo! Suplico à tua Alteza dar-lhe golpes e tomar-lhe a garrafa; ela conosco, ele que beba água do mar, somente, pois não lhe mostrarei as fontes frescas.

ESTÉFANO - Trínculo, não enfrentes outro perigo. Se interromperes mais uma vez o monstro com uma única palavra, por esta mão, mandarei embora a minha misericórdia e te farei virar bacalhau.

TRÍNCULO - Mas que fiz eu? Não fiz nada. Vou mudar de lugar.

ESTÉFANO - Não disseste que o monstro estava mentindo?

ARIEL - Mentes!

ESTÉFANO - Minto, não? Então toma isto.

(Bate em Trínculo.)

Se gostares disto, desmente-me mais uma vez.

TRÍNCULO - Eu não te desmenti. Além de transtornado do espírito, ficastes com os ouvidos perturbados? A peste seja de vossa garrafa. Tudo isso é efeito do xerez. Que a peste carregue vosso monstro e o diabo vos arranque os dedos.

CALIBÃ - Ah! Ah! Ah!

ESTÉFANO - Agora, prossegue e tua história. Tu, aí, coloca-te mais longe!

CALIBÃ - Bate-lhe com vontade! Mais um pouco, que eu baterei também.

ESTÉFANO - Mais longe! - Adiante!

CALIBÃ - Ora, como eu te disse, ele tem o hábito de dormir toda tarde. Aí, te fora possível asfixiá-lo, após o teres privado de seus livros; ou, munido de um pau, lhe partirás em dois o crânio; se não, o estriparás com qualquer vara, ou a garganta com faca lhe seccionas. Mas, primeiro, é preciso que te lembres de lhe tomar os livros, pois, sem eles, é um palerma como eu, já não dispondo de espírito nenhum sobre que mande. Todos, como eu, lhe têm ódio entranhado. Basta queimar-lhe os livros. Utensílios valiosos também tem - assim lhes chama - para enfeitar sua futura casa. Mas o que é sobretudo de estimar-se é a beleza da filha, que ele próprio considera sem par. Mulher nenhuma jamais eu vi, tirante Sicorax, minha mãe, e ela mesma. Mas tAo longe deixa ela Sicorax como o que é grande ao que é muito pequeno.

ESTÉFANO - assim bonita?

CALIBÃ - Muito, senhor; há de enfeitar-te o leito, posso jurar-te, e dar-te bela prole.

ESTÉFANO - Monstro, vou matar esse homem. Sua filha e eu seremos rei e rainha. - Viva nossa Graça! - E Trínculo e tu próprio sereis vice-reis. Agrada-te a proposta, Trínculo?

TRÍNCULO - Excelente.

ESTÉFANO - Dá-me a mão. Entristece-me haver-te batido; mas enquanto viveres, guarda uma boa língua na cabeça.

CALIBÃ - É certo ele dormir nesta meia hora. Queres, então, destruí-lo? ESTÉFANO - Por minha honra.

ARIEL - Vou contar isso para o meu senhor.

CALIBÃ - Transbordo de prazer; deixas-me alegre. Rejubilemos, pois. Cantar não queres o estribilho que há pouco me ensinaste?

ESTÉFANO - Farei o que me pedes, monstro; farei tudo o que me pedires. Cantemos, Trínculo. (Canta.)

Zombemos dele, oh oh! Vamos rir dele!

Vamos rir dele, oh oh! Zombemos dele!

O pensamento é livre.

CALIBÃ - Não é essa a melodia.

(Ariel toca a melodia num tamboril e numa flauta.)

ESTÉFANO - Que significa isso?

TRÍNCULO - É a melodia de nosso estribilho, tocada pelo fantasma de Ninguém.

ESTÉFANO- Se fores um homem, mostra-te sob a tua verdadeira forma; se fores o demônio, assume a que bem te aprouver.

TRÍNCULO - Oh! Que os meus pecados sejam perdoados!

ESTÉFANO - Quem morre, salda as dívidas. Desafio-te! Misericórdia!

CALIBÃ - Estás com medo?

ESTÉFANO - Não, monstro; eu, não.

CALIBÃ - Não tenhas medo; esta ilha é sempre cheia de sons, ruídos e agradáveis árias, que só deleitam, sem causar-nos dano. Muitas vezes estrondam-me aos ouvidos mil instrumentos de possante bulha; outras vezes são vozes, que me fazem dormir de novo, embora despertado tenha de um longo sono. Então, em sonhos presumo ver as nuvens que se afastam, mostrando seus tesouros, como prestes a sobre mim choverem, de tal modo que, ao acordar, choro porque desejo prosseguir a sonhar.

ESTÉFANO - Que reino e tanto me vai ser este! Vou ter música de graça.

CALIBÃ - Uma vez destruído Próspero.

ESTÉFANO - O que se dará dentro de pouco. Não me esqueci da história.

TRÍNCULO - O som está se distanciando; acompanhemo-lo, para depois liquidarmos o nosso negócio.

ESTÉFANO - Monstro, vai na frente, que nós te acompanhamos. Quisera ver esse tamborileiro; tem talento, de fato. Não vens?

TRÍNCULO - Eu também vou Estéfano.

(Saem.)