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CORIOLANO, ATO V, Cena III

Tenda de Coriolano. Entram Coriolano, Aufídio e outros.

CORIOLANO - Acamparemos amanhã defronte das muralhas de Roma. Como sócio meu que sois nesta
empresa, aos comandantes volscos relatareis minha lisura em todo este negócio.

AUFÍDIO - Só cuidastes dos interesses deles, e os ouvidos fechastes para as súplicas romanas; não
admitistes o menor cochicho de ninguém, nem ainda dos amigos que se prezavam de maior prestígio.

CORIOLANO - O último, aquele velho que eu reenviei com o coração partido para Roma, tinha por mim
mais do que amor paterno. Sim, chegava a endeusar-me. A vinda dele representa o último recurso.
Embora me mostrasse com ele muito ríspido, levando em conta nosso antigo afeto de novo ofereci-lhes
as primeiras condições, já por eles recusadas e que, por isso, não serão aceitas. Fiz isso para prestigiar o
amigo que alcançar muito mais imaginava. Cedi, alguma coisa. Doravante, porém, ouvidos não terei para
outras embaixadas ou súplicas, ou venham do Estado, ou dos amigos, meus privados.
(Clamor fora.)
Que clamor será esse? Porventura quererão obrigar-me a ser perjuro na hora precisa em que formulo o
voto? Tal não farei.
(Com vestes de luto entram Vergília, Volúmnia que conduz o jovem Márcio, Valéria e criadas.)
À frente, minha esposa; depois, a honrosa forma em que este tronco foi plasmado, trazendo pela mão o
neto de seu sangue. Fora, fora, compaixão! Arrebentem-se os liames e os privilégios todos da natura. Ser
obstinado, agora, é ser virtuoso. Que significam essas reverências, esses olhos de pomba, que podiam
deixar perjuros até aos próprios deuses? Comovo-me. Não sou feito de argila mais forte do que os outros.
Até ao solo se curva minha mãe, como se o Olimpo diante de um monte de toupeira viesse, humilhado,
abaixar-se; e meu filhinho feições de suplicante ora apresenta, que a declarar obriga a natureza: "Não
recuses!" Que os volscos arem Roma e o rastrilho por toda a Itália passem. Nunca o papel farei dos
gansozinhos que ao instinto obedecem; mas como homem resistirei, que houvesse de si mesmo sido
gerado e que não conhecesse nenhum parente.

VERGÍLIA - Meu senhor e esposo!

CORIOLANO - Não vejo as coisas como via em Roma.

VERGÍLIA - A tristeza que tanto nos transforma é que vos faz pensar dessa maneira.

CORIOLANO - Tal como ator estúpido, esqueci-me do meu papel e fui vaiado e expulso. Ó tu, parte
melhor de minha carne, perdoa ao meu rigor, mas não me digas que aos romanos perdoe. E agora um
beijo tão longo quanto meu exílio, doce como minha vingança. Pela cólera da rainha do céu, digo-te que
este beijo eu tomei de ti, minha querida, e desde então a minha fiel boca virgem se conservou. Oh
deuses! Falo sem medida, e a mais nobre mãe do mundo deixo sem saudação! Dobra-te, joelho, até ao
chão e na terra imprime marcas de tua reverência mais profundas que as do filhos comuns.

VOLÚMNIA - Oh, não! Levanta-te e sê bendito. Eu, sim, que em almofada mão mais mole que a pedra,
dobro os joelhos diante de ti e impropriamente mostro reverência, tal como se durante toda a vida
enganado me tivesse com a atitude dos pais para seus filhos.

CORIOLANO - Como! Diante de mim vos ajoelhais? Então, que os seixos da marinha praia nos astros
vão bater. Então, que os ventos amotinados lancem contra o ardente sol os cedros altivos, o impossível

matando, com deixar trabalho fácil o que não pode ser.

VOLÚMNIA - És meu guerreiro; foste feito por mim. Não reconheces esta senhora aqui?

CORIOLANO - É a nobre irmã de Publícola; a lua ela é de Roma, casta como o cristal feito da neve mais
pura que do templo de Diana estivesse a pender: cara Valéria.

VOLÚMNIA - Este é um pobre resumo de vós próprio, que com o aperfeiçoamento do futuro talvez
consiga vos pegar em tudo.

CORIOLANO - Que o deus dos combatentes, com a anuência de Júpiter supremo, de nobreza te inspire o
pensamento, porque possas mostrar-te invulnerável ao opróbrio e ficar nas batalhas como grande baliza
que resiste às tempestades e salva a quantos para ti olharem.

VOLÚMNIA- Pequeno, ajoelha-te.

CORIOLANO - É o meu bravo filho.

VOLÚMNIA Sim, ele, vossa esposa - esta senhora - e eu própria somos vossos suplicantes.

CORIOLANO - Por obséquio, calai-vos. Ou, no caso de falardes, lembrai-vos de que nunca podeis
considerar como recusa de minha parte o que por juramento obrigado me vejo a recusar-vos. Não
mandeis que eu despeça meus soldados ou que a capitular de novo venha com os artesãos de Roma. Não
desejo que me mostreis o em que desnaturado pareço agora, nem que minha cólera e meu rancor tenteis
tranqüilizar com o frio raciocínio.

VOLÚMNIA - Oh! basta! basta! Não nos concedeis nada, já o dissestes, pois a pedir não temos outra
coisa a não ser o que já nos recusastes. Contudo, vamos formular a súplica, pois se nos recusardes o
pedido só em vosso rigor recaia o opróbrio. Por isso, ouvi-nos.

CORIOLANO - Tomai nota, Aufídio; e vós, volscos, também; pois não queremos ouvir de Roma coisa
alguma à parte. Qual é o vosso pedido?

VOLÚMNIA Se ficássemos calados, sem dizer palavra alguma, nossas vestes e o estado destes corpos
mostrariam a vida que levamos depois de teu exílio. Considera quanto mais infelizes do que todas as
mulheres nós somos no momento de procurar-te, pois a tua vista, que deveria, de prazer, os olhos
marejar-nos de lágrimas e aos saltos o coração deixar-nos, de conforto, de pavor e tristeza força aqueles a
chorar e a este deixa estremecido, com obrigar a esposa, a mãe e o filho a verem o marido, o filho e o pai
as entranhas rasgar da própria pátria. A nós, coitadas, muito mais que às outras é teu ódio fatal, pois nos
impede de aos deuses dirigirmos nossas súplicas, o que grande conforto é para todas, com exceção de
nós. Pois como fora possível - ai de nós! - como nos fora possível implorar por nossa pátria - como é
nosso dever - e, ao mesmo tempo, pedir que possas alcançar vitória, como é nosso dever? Ah! é preciso
que percamos a pátria, a ama querida, ou então tua pessoa, nosso amparo e alegria na pátria. Inevitável
calamidade sobre nós se apresta, seja qual for o voto que se exalce quanto à final vitória. Pois forçoso
será que, como um malfeitor estranho, passes em ferros pelas nossas ruas, ou que pises triunfante nos
escombros de tua pátria e a palma a alcançar venhas por haveres o sangue derramado bravamente da
esposa e de teu filho. Porque, meu filho, protelar não hei de até que possa decidir a sorte sobre o fim
desta guerra. Se impossível me é de todo fazer que, enfim, te mostres com as duas partes nobre e
generoso, em vez de a ruína de uma procurares, fica sabendo que não hás de os muros assaltar da cidade -
isso é certeza - sem passares primeiro sobre o ventre da mãe que te deu vida.

VERGÍLIA - E também sobre o meu, onde gerado foi teu filho, porque teu nome nele perpetuasses.

MENÊNIO - Sobre o meu corpo ele não pisa, que hei de sair correndo, e quando ficar grande, volto para
brigar.

CORIOLANO - Se não quisermos na alma ter de mulher a semelhança, ver não devemos nem mulher
nem criança. Já esperei muito tempo.
(Levanta-se.)

VOLÚMNIA - Desse modo não nos deixeis. Se nossa interferência a favor dos romanos implicasse a
destruição dos volscos, a serviço dos quais estais agora, poderíeis ver em nós o veneno de vossa honra.
Não; não há tal. Queremos, tão-somente, que a reconciliação façais entre eles, de forma que dizer os
volscos possam: "Mostramo-nos clementes", e os romanos: "Com relação a nós", rompendo todos em
calorosos vivas para tua pessoa com dizerem: "Sê bendito por semelhante paz!" Meu grande filho, como
bem sabes, toda guerra é incerta. Mas uma coisa é certa: se chegares a ganhar Roma, lucrarás apenas um
nome que há de ser por toda parte dito com maldição e cuja crônica repetirá: "Era pessoa nobre. mas com
o último feito rebaixou-se: destruiu a pátria, havendo transmitido para a posteridade um nome abjeto".
Fala, meu filho. Sempre te esforçaste por ter os delicados traços da honra, por imitar dos imortais a graça,
com teus trovões dilacerando as largas bochechas do ar, mais disparando um raio capaz apenas de fender
um roble. Por que não dizes nada? Acaso pensas que seja honroso para um nobre sempre relembrar as
injúrias? Falai, filha; ele não dá valor ao vosso choro. Menino, fala tu, é bem possível que comovê-lo
possa mais que nossas razões tua inocência. Não há filho que mais deva a sua mãe; no entanto, deixa-me
falar agora sem parar, tal como condenado no cepo. Em toda a vida nunca deste a tua mãe prova de afeto.
Ela - pobre ave! não se preocupava com segunda ninhada - para as guerras com seu cacarejar sempre te
enviava e, coberto de glória, te fazia voltar são para casa. Dize apenas que meu pedido é injusto e me
repele. Mas, se tal não se der, faltas com a honra, castigando-te os deuses por me haveres recusado a
obediência que me toca por direito de mãe. Ele se vira! De joelho, damas! Possam humilhá-lo nossas
genuflexões. O sobrenome Coriolano lhe infunde mais orgulho que compaixão todas as nossas súplicas.
De joelhos; acabemos. Vai ser a última tentativa. Voltemos para Roma e com nossos vizinhos
pereçamos. Não; olha para nós. Este menino que não sabe dizer o que pretende, mas apenas se ajoelha e
as mãos levanta, traz razões mais potentes do que possas aduzir em contrário. Mas voltemos. Por mãe
este homem teve mulher volsca; a esposa está em Coríolos; o filho só por acaso tem os traços dele. Mas
despachemo-nos; quero ficar quieta até nossa cidade ver em chamas; depois ainda direi alguma coisa.

CORIOLANO
(tomando Volúmnia, que se cala, pela mão.)
Mãe! ó mãe! que fizestes? Oh! entreabrem-se os céus, e os deuses que nos vêem riem desta cena
contrária à natureza. Ó minha mãe! Ó mãe! Ó minha mãe! Ganhastes para Roma uma vitória muito feliz,
mas para vosso filho, podeis crer-me - oh! podeis - prevalecestes sobre ele por maneira perigosa, se
mortal não lhe for. Porém que venha. Aufídio, muito embora eu já não possa dirigir guerra leal, ao menos
posso concluir honrosa paz. Bondoso Aufídio, se em meu lugar agora vos achásseis, teríeis, porventura,
ouvido menos vossa mãe, caro Aufídio, ou concedido menos do que pedisse?

AUFÍDIO - Comovido fiquei, confesso.

CORIOLANO - Eu o asseveraria. E, amigo, podeis crer que pouca coisa dos olhos não me faz pingar
piedade. Meu bondoso senhor, aconselhai-me sobre a paz que quereis fazer com eles. Por minha parte
não irei a Roma; retornarei convosco. Por obséquio, neste passo auxiliai-me. Oh mãe! oh esposa!

AUFÍDIO (à parte) - Muito me alegra ver que em tua alma lutam a compaixão e a honra. Com isso tudo
saberei refazer a antiga sorte.
(As senhoras fazem sinal a Coriolano.)

CORIOLANO - Neste momento. Mas bebamos juntos, e levareis a Roma um testemunho melhor do que
palavras, que haveremos de subscrever em condições idênticas. Vamos, entremos juntos. Vós, senhoras,
um templo mereceis que vos construam; as espadas da Itália, suas armas confederadas, nunca chegariam
a alcançar uma paz como a de agora.
(Saem.)