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JULIO CESAR, ATO III, Cena II

O mesmo. O Foro. Entram Bruto e Cássio, seguidos de grande número de cidadãos.

CIDADÃOS - Dai-nos explicações.

BRUTO - Então, amigos, vinde comigo e me prestai ouvidos. Caio Cássio, tomai por outra rua;
dividamos o povo. Deixai aqui tão-só os que ouvir-me queiram; os que quiserem ir com Cássio,
sigam-no. Serão ditos em público os motivos de havermos morto César.

PRIMEIRO CIDADÃO - Eu não saio; quero ouvir Bruto.

SEGUNDO CIDADÃO - Eu, Cássio. Desse modo, confrontar poderemos os motivos de ambos, depois
de ter ouvido à parte.
(Sai Cássio com alguns cidadãos; Bruto sobe à tribuna.)

BRUTO - Sede pacientes até o fim. Romanos, concidadãos e amigos! Ouvi a exposição da minha causa e
fazei silêncio, para que possais ouvir. Crede em minha honra e respeitai minha honra, para que possais
acreditar nela. Julgai me segundo vossa sabedoria e ficai com os sentidos despertos, para que possais
julgar melhor. Se houver alguém nesta reunião, algum amigo afetuoso de César, dir-lhe-ei que o amor
que Bruto dedicava a César não era menor do que o dele. E se esse amigo, então, perguntar por que
motivo Bruto se levantou contra César, eis minhas resposta: não foi por amar menos a César, mas por
amar mais a Roma. Que teríeis preferido: que César continuasse com vida e vós todos morrêsseis como
escravos, ou que ele morresse, para que todos vivêsseis como homens livres? Por me haver amado César,
pranteio-o; por ter sido ele feliz, alegro-me; por ter sido valente, honro-o; mas por ter sido ambicioso,
matei-o. Logo: lágrimas para a sua amizade alegria para sua fortuna, honra para o seu valor e morte para
a sua ambição. Haverá aqui, neste momento, alguém tão vil que deseje ser escravo? Se houver al guém
nessas condições, que fale, porque o ofendi. Haverá alguém tão grosseiro para não querer ser romano? Se
houver, que fale, porque o ofendi. Haverá alguém tão desprezível, que não ame sua pátria? Se houver,
que fale, porque o ofendi. Faço uma pausa, para que me respondam.

CIDADÃOS - Ninguém, Bruto; ninguém.

BRUTO - Nesse caso, não ofendi ninguém. Não fiz a César se não o que faríeis a Bruto. O inquérito
sobre sua morte se acha depositado no Capitólio; sua glória não foi depreciada, com referência aos seus
merecimentos, não tendo sido, também, exagerados os crimes pelos quais veio a sucumbir.
(Entram Antônio e outros, com o corpo de César.)

Aí vem o seu corpo, chorado por Marco Antônio, que, muito embora não houvesse tomado parte em sua
morte, será beneficiado por ela, pois passará a ocupar um cargo na República. Quem de 'vós, também,

não ocupará um cargo? Despeço-me com isto: assim como matei o meu melhor amigo por amor de
Roma, assim também conservarei o mesmo punhal para mim próprio, quando minha pátria necessitar que
eu morra.

CIDADÃOS - Viva Bruto! Viva! Viva!

PRIMEIRO CIDADÃO - Levai-o para casa triunfalmente.

SEGUNDO CIDADÃO - Uma estátua erijamos e ponhamo-la ao lado das dos seus antepassados.

TERCEIRO CIDADÃO - Que César ele seja.

QUARTO CIDADÃO - As boas partes de César hão de em Bruto ser coroadas.

PRIMEIRO CIDADÃO - Por entre aclamações e grande júbilo levá-lo-emos a casa.

BRUTO - Concidadãos...

SEGUNDO CIDADÃO - Silêncio! Ficais quietos, que Bruto vai falar!

PRIMEIRO CIDADÃO - Olá! Silêncio!

BRUTO - Caros concidadãos, é meu desejo voltar só para casa; porém peço-vos que por amor de mim
fiqueis com Antônio. Prestai honras ao corpo, aqui, de César, e ao discurso em que Antônio há de suas
glórias enaltecer, o que lhe permitimos. Encarecidamente a todos peço que, a não ser eu, ninguém daqui
se arrede até que Marco Antônio haja falado.
(Sai.)

PRIMEIRO CIDADÃO - Ficai todos! Ouçamos Marco Antônio.

TERCEIRO CIDADÃO - Subi à tribuna! Vamos escutá-lo. Nobre Antônio, subi.

ANTÔNIO - Muito obrigado vos fico, por amor, tão-só, de Bruto.
(Sobe à tribuna.)

QUARTO CIDADÃO - Que disse ele de Bruto?

TERCEIRO CIDADÃO - Que obrigado ficava a todos nós por amor dele.

QUARTO CIDADÃO - Será bom que ele aqui não diga nada contra o nome de Bruto.

PRIMEIRO CIDADÃO - Que tirano foi esse César!

TERCEIRO CIDADÃo - Justo. Para Roma, foi grande bênção ficar livre dele.

SEGUNDO CIDADÃO - Ficai quietos! Ouçamos Marco Antônio!

ANTÔNIO - Generosos romanos...

CIDADÃOS - Psiu! Ouçamo-lo.

ANTÔNIO - Concidadãos, romanos, bons amigos, concedei-me atenção. Vim para o enterro fazer de
César, não para elogiá-lo. Aos homens sobrevive o mal que fazem, mas o bem quase sempre com seus
ossos fica enterrado. Seja assim com César. O nobre Bruto vos contou que César era ambicioso. Se ele o

foi, realmente, grave falta era a sua, tendo-a César gravemente expiado. Aqui me encontro por permissão
de Bruto e dos restantes - Bruto é homem honrado, como os outros; todos, homens honrados - aqui me
acho para falar nos funerais de César. César foi meu amigo, fiel e justo; mas Bruto disse que ele era
ambicioso, e Bruto é muito honrado. César trouxe numerosos cativos para Roma, cujos resgates o tesouro
encheram. Nisso se mostrou César ambicioso? Para os gritos dos pobres tinha lágrimas. A ambição deve
ser de algo mais duro. Mas Bruto disse que ele era ambicioso, e Bruto é muito honrado. Vós o vistes nas
Lupercais: três vezes recusou-se a aceitar a coroa que eu lhe dava. Ambição será isso? No entretanto,
Bruto disse que ele era ambicioso, sendo certo que Bruto é muito honrado. Contestar não pretendo o
nobre Bruto; só vim dizer-vos o que sei, realmente. Todos antes o amáveis, não sem causa. Que é então
que vos impede de chorá-lo? O julgamento! Foste para o meio dos brutos animais, tendo os humanos o
uso perdido da razão. Perdoai-me; mas tenho o coração, neste momento, no ataúde de César; é preciso
calar até que ao peito ele me volte.

PRIMEIRO CIDADÃO - Penso que em sua fala há muito senso.

SEGUNDO CIDADÃO - Se bem considerardes, procederam muito mal contra César.

TERCEIRO CIDADÃO - Sim, amigos? Temo que em seu lugar venha outro pior.

QuARTO CIDADÃO - Prestastes atenção no que ele disse? Recusou a coroa. Logo, é certo não ter sido
ambicioso.

PRIMEIRO CIDADÃO - Isso provado, muita gente terá de pagar caro.

SEGUNDO CIDADÃO - Pobre alma! Tinha os olhos como fogo, à força de chorar.

TERCEIRO CIDADÃO - Em toda Roma não há ninguém mais nobre do que Antônio. QUARTO
CIDADÃO - Atenção! Ele vai falar de novo.

ANTÔNIO - Até ontem a palavra do alto César podia resistir ao mundo inteiro. Hoje, ei-lo aí, sem que
ante o seu cadáver se curve o mais humilde. Ó cidadãos! Se eu disposto estivesse a rebelar-vos o coração
e a mente, espicaçando-os para a revolta, ofenderia Bruto, ofenderia Cássio, que são homens honrados,
como vós bem o sabeis. Não pretendo ofendê-los; antes quero ofender o defunto, a mim e a vós, do que
ofender pessoas tão honradas. Vede este pergaminho: traz o selo de César. Encontrei-o no seu quarto; é o
testamento dele. Caso o povo sua leitura ouvisse - desculpai-me, mas não pretendo lê-lo - correriam
todos a depor beijos nas feridas do morto César e a tingir os lenços em seu sagrado sangue. Mais: viriam
mendigar-lhe um cabelo, por lembrança, que, ao morrerem, seria em testamento transmitido aos
herdeiros sucessivos, como rico legado.

QUARTO CIDADÃO - Desejamos ouvir o testamento. Lede-o, Antônio.

CIDADÃOS - O testamento! Lede o testamento de César!

ANTÔNIO - Acalmai-vos, bons amigos. Não posso lê-lo; não convém ficardes sabendo quanto César vos
amava. Não sois de pedra, nem de pau, mas homens; e, como tal, se ouvísseis a leitura do testamento
dele, poderíeis inflamados ficar, ficar furiosos. Conveniente não é ficardes todos sabendo que os
herdeiros sois de César; pois se o soubésseis, que não se daria?

QUARTO CIDADÃO - O testamento! Lede o testamento de César, Marco Antônio! Lede-o logo!

ANTÔNIO - Não podeis acalmar-vos um momento? Fui indiscreto ao vos falar sobre isso. Temo ofender
quantos honrados homens apunhalaram César. Temo-o muito.

QUARTO CIDADÃO - Homens honrados, nada! São traidores.

CIDADÃOS - São vilãos e assassinos todos eles. O testamento! Lede o testamento! ANTÔNIO -
Forçais-me, então, a ler o testamento? Sendo assim, vinde em cfrculo postar-vos ao redor do cadáver,
porque eu possa apontar-vos o autor do testamento.

Posso descer? Consentireis que o faça?

CIDADÃOS - Vinde para cá.

SEGUNDO CIDADÃO - Descei.
(Antônio desce da tribuna.)

TERCEIRO CIDADÃO - Estais autorizado a fazê-lo.

QUARTO CIDADÃO - Façamos um círculo.

PRIMEIRO CIDADÃO - Afastai-vos do ataúde Afastai-vos do corpo!

SEGUNDO CIDADÃO - Demos lugar para Antônio, para o muito nobre António!

ANTÔNIO - Não me aperteis tanto. Afastai-vos um pouco.

CIDADÃOS - Recuai! Espaço! Recuai!

ANÓNIO - Se lágrimas tiverdes, preparai-vos neste momento para derramá-las. Conheceis este manto.
Ainda me lembro quando César o estreou; era uma tarde de verão, em sua tenda, justamente no dia em
que vencera os fortes nérvios. Vede o furo deixado pela adaga de Cássio; contemplai o estrago feito pelo
invejoso Casca; através deste apunhalou-o o muito amado Bruto, e ao retirar seu aço amaldiçoado,
observai com cuidado como o sangue de César o seguiu, como querendo vir para a porta, a fim de
convencer-se se era Bruto, realmente, quem batia por modo tão grosseiro, porque Bruto, como o sabeis,
era o anjo do finado. Julgai, ó deuses! quanto o amava César. De todos, foi o golpe mais ingrato, pois
quando a Bruto viu o nobre César, a ingratidão mais forte do que o braço dos traidores, de todo o pôs por
terra. O coração potente, então, partiu-se-lhe e, no manto escondendo o rosto, veio cair o grande César
justamente ao pé da estátua de Pompeu, que sangue todo o tempo escorria. Que queda essa, caros
concidadãos! Eu, vós, nós todos nesse instante caímos, alegrando-se sobre nós a traição rubra de sangue.
Oh! Vejo que chorais, que sois sensíveis à impressão da piedade. Delicadas lágrimas derramais. Mas
chorais tanto, bondosas almas, só de o manto verdes do nosso César, cheio, assim, de furos? Então olhai
para isto, o próprio corpo de César, deformado por traidores.

PRIMEIRO CIDADÃO - Oh espetáculo lamentável!

SEGUNDO CIDADÃO - Oh nobre César!

TERCEIRO CIDADÃO - Oh dia de luto!

QUARTO CIDADÃO - Oh celerados! Oh traidores!

PRIMEIRO CIDADÃO - Que espetáculo sangrento!

SEGUNDO CIDADÃO - Queremos vingança!

CIDADÃOS - Vingança! Vamos procurá-los! Fogo! Morte! Fogo! Matemos os traidores!

ANTÔNIO - Parai, concidadãos!

PRIMEIRO CIDADÃO - Silêncio! Ouçamos o nobre António.

SEGUNDO CIDADÃO - Queremos ouvi-lo; iremos para onde ele for; queremos morrer com ele!

ANTÔNIO - Bons e amáveis amigos, não desejo levar-vos a uma súbita revolta. Os autores deste ato são
honrados. Ignoro as causas, ai! particulares que a este extremo os levaram; mas são sábios, todos eles, e
honrados, e decerto vos dariam razões do que fizeram. Não vim aqui roubar-vos, meus amigos, o
coração. Careço da eloqüência de Bruto. Sou um homem franco e simples, como bem o sabeis, que tinha
o mérito de amar o seu amigo, o que sabiam perfeitamente quantos permitiram que eu viesse falar dele.
Pois é fato: não tenho espírito, valor, palavras, gesto, eloqüência e a força da oratória para inflamar o
sangue dos ouvintes. Contento-me em falar tal como falo, simplesmente, dizendo-vos apenas o que todos
sabeis, e ora vos mostro as feridas do nosso caro César - pobres bocas sem fala! - concitando-as a falarem
por mim. Se eu fosse Bruto, sendo ele Antônio, agora aqui teríeis um Antônio capaz de levantar-vos o
espírito e em cada uma das feridas de César uma voz pôr, que faria revoltarem-se as pedras da alta Roma.

CIDADÃOS - Revolta, sim! Revolta!

PRIMEIRO CIDADÃO - Queimaremos logo a casa de Bruto.

TERCEIRO CIDADÃO - Então partamos sem demora. Peguemos os traidores.

ANTÔNIO - Concidadãos, ouvi-me. Vou falar-vos.

CIDADÃOS - Que fale Antônio, o muito nobre Antônio!

ANTÔNIO - Sabeis, amigos, o que estais a ponto de realizar? Em que mereceu César ser a tal ponto
amado de vós todos? Ah! não o sabeis. Preciso, então, contar-vos. E o testamento, já vos esquecestes, de
que falei há pouco?

CIDADÃOS - É certo! É certo! O testamento! Ouçamos a leitura do testamento!

ANTÔNIO - Aqui vo-lo apresento, com o selo ainda de César. César deixa para cada romano em
separado setenta e cinco dracmas.

SEGUNDO CIDADÃO - Nobilíssimo César! Vamos vingar a morte dele!

TERCEIRO CIDADÃO - Oh real César!

ANTÔNIO - Ouvi-me com paciência.

CIDADÃOS - Olá! Silêncio!

ANTÔNIO - Além disso, deixou-vos seus passeios, caramanchões privados e os recentes jardins por ele
feitos neste lado do Tibre. Sim, deixou-vos, para sempre, para vossos herdeiros, como pontos de diversão
comum, porque pudésseis passear e distrair-vos. Foi um César, realmente! Outro igual, quando teremos?
PRIMEIRO CIDADÃO - Nunca! Nunca! Sigamos para a praça sagrada, a fim de o corpo ali

queimarmos, e com os tições as casas incendiemos de todos os traidores. Carreguemos o corpo.

SEGUNDO CIDADÃO - Trazei fogo.

TERCEIRO CIDADÃO - Derrubemos os bancos.

QUARTO CIDADÃo - Derrubai logo janelas, cadeiras, o que for.
(Saem os cidadãos, com o corpo de César.)

ANTÔNIO - Que vá por diante. Desgraça, estás de pé; toma ora o curso que bem te parecer.
(Entra um criado.)

Então, amigo?

CRIADO - Senhor, Otávio já chegou a Roma.

ANTÔNIO - Onde está ele?

CRIADO - Em casa estão de César, ele e Lépido.

ANTÔNIO - Vou já já visitá-lo. Chega a tempo. A Fortuna está alegre e, assim disposta, não nos
regateará coisa nenhuma.

CRIADO - Ouvi quando ele disse que teriam Bruto e Cássio, a galope, como loucos, ganho as portas de
Roma.

ANTÔNIO - É que decerto souberam da disposição do povo agitado por mim. Leva-me a Otávio.
(Saem.)