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AS ALEGRES COMADRES DE WINDSOR, ATO III, Cena V

Um quarto na hospedaria da Jarreteira. Entram Falstaff e Bardolfo.

FALSTAFF - Bardolfo! Estou chamando.

BARDOLFO - Aqui, senhor.

FALSTAFF - Vai buscar-me um quartilho de xerez; põe dentro uma torrada.
(Sai Bardolfo.)
Ora, ter vivido, para que me carregassem num cesto e me atirassem no Tâmisa, como restos de açougue!
Bem; se eu cair em outra brincadeira como essa, quero que me tirem o cérebro, o fritem em manteiga e o
dêem a um cão, como presente de ano novo. Os patifes me atiraram no rio com tanta despreocupação
como se fossem afogar quinze cachorrinhos recém-nascidos e ainda sem vista. Se o fundo do rio
estivesse na mesma altura do inferno, eu me teria afogado. Sim, teria morrido afogado, se a margem não
fosse tão baixa e arenosa. Morte essa que eu abomino, porque a gente estufa na água. E de que jeito eu
ficaria, se viesse a estufar? Parecera a múmia de uma montanha.
(Volta Bardolfo com o xerez.)
BARDOLFO - Aí está a senhora Quickly, senhor, que deseja falar-vos.

FALSTAFF - Vem; deixa-me deitar um pouco de xerez na água do Tâmisa, pois tenho o ventre tão frio
como se houvesse engolido bolas de neve em vez de pílulas, para refrescar os rins. Manda-a entrar.

BARDOLFO - Entrai, mulher.
(Entra a senhora Quickly.)

QUICKLY - Com licença. Peço desculpas. Desejo muito bom dia a Vossa Senhoria.

FALSTAFF - Tira daqui estes cálices e traze-me uma boa garrafa de xerez.

BARDOLFO - Com ovos, senhor?

FALSTAFF - Simples; não quero saber de gala na bebida.
(Sai Bardolfo.)
E Então?

QUICKLY - Ah, meu caro senhor! Venho procurar Vossa Senhoria da parte da senhora Ford.

FALSTAFF - Da senhora Ford? Já estou farto desse forte; é forte, mas é em água, que é só o que eu
tenho na barriga.

QUICKLY - Oh, que dia! Não foi culpa da coitada! Ela passou uma sarabanda nos criados, por se terem
enganado com relação às resoluções dela.

FALSTAFF - Como eu com as minhas, por ter confiado nas promessas de uma tonta.

QUICKLY - Oh, senhor! Ela lamenta o que aconteceu; se a vísseis, ficaríeis comovido. O marido dela
vai caçar passarinhos esta manhã. Ela pede que a vades ver hoje, entre as oito e as nove. Terei de
levar-lhe a resposta com a maior urgência possível. Ela vos apresentará desculpas, posso asseverar-vos.

FALSTAFF - Bem; irei visitá-la; podes dizer-lhe isso, e pede-lhe que compreenda o que é um homem.
Ela que reflita em sua própria fragilidade, para depois julgar do meu merecimento.

QUICKLY - Dir-lhe-ei isso mesmo.

FALSTAFF - Dize-lhe, então. Entre nove e dez horas, não é assim?

QUICKLY - Entre oito e nove, senhor.

FALSTAFF - Bem; podeis ir. Não faltarei.

QUICKLY - Que a paz seja convosco, senhor.
(Sai.)

FALSTAFF - Admira-me não ter ouvido falar novamente em mestre Fontes; mandou-me recado para que
o esperasse. Aprecio bastante o dinheiro dele. Mas, ei-lo que vem chegando!
(Entra Ford.)

FORD - Deus vos abençoe, senhor.

FALSTAFF - Então, mestre Fontes? Viestes saber o resultado de minha entrevista com a mulher do
Ford?

FORD - É esse, justamente, sir John, o assunto que me traz até aqui.

FALSTAFF - Mestre Fontes, não vos faltarei com a verdade. Estive em casa dela na hora aprazada.

FORD - E como passaste lá?

FALSTAFF - Muito mal, mestre Fontes.

FORD - Como assim, senhor? Acaso ela mudou de resolução?

FALSTAFF - Não, mestre Fontes. Mas o cornudo do marido, mestre Fontes, que se acha em estado de
alarma permanente de ciúmes, chegou precisamente no momento de nosso encontro, quando já nos
tínhamos abraçado, beijado, jurado amor eterno e declamado, por assim dizer, o prólogo de nossa
comédia. No rasto dele seguia uma malta de gente de seu conhecimento, provocados e instigados por sua
cólera - imaginai só! - para vasculharem a casa em busca do amante da mulher.

FORD - Como! Quando vos acháveis lá?

FALSTAFF - Quando me achava lá.

FORD - E ele, deu busca na casa e não vos encontrou?

FALSTAFF - Já vos direi. Por sorte, chegou a tempo uma tal senhora Page, que contou como Ford se
dirigia para casa, e por conselho dela e desespero da mulher do Ford me retiraram de lá dentro de um
cesto de roupa suja.

FORD - Um cesto de roupa suja!

FALSTAFF - Por Deus, um cesto de roupa. Atulharam-me com camisas sujas, saias, peúgas, meias
duvidosas, guardanapos engordurados, o mais rançoso conjunto, mestre Fontes, e de fedor insuportável,
que já ofendeu o olfato de qualquer mortal.

FORD - E quanto tempo ficastes dentro desse cesto?

FALSTAFF - Oh! Ireis ouvir, mestre Fontes, quanto sofri por vosso bem, para levar essa mulher para o
mal. Uma vez comprimido no cesto, a mulher do Ford chamou dois biltres, criados do marido, e lhes
ordenou que me levassem para o prado de Datchet, como se se tratasse de roupa suja. Mal tinham esses
atravessado a porta, com o cesto nos ombros, quando entrou o amo, que lhes perguntou uma ou duas
vezes o que levavam dentro do cesto. Eu tremia, de medo que o lunático fosse revistar o cesto. Mas o
destino, por querer que ele se torne, realmente, cornudo, deteve-lhe as mãos. Muito bem. Ele entrou, para
revistar a casa, enquanto eu saía como roupa suja. Mas ouvi o resto, mestre Fontes. Sofri as dores de três
mortes consecutivas: primeiramente, o pavor insuportável de ser apanhado por aquele carneiro de
chocalho, podre de ciúmes; depois, ser dobrado em círculo, como uma lâmina de Bilbao, no interior de
uma quartilha, o punho junto da ponta, o calcanhar na cabeça; e, por último, ser arrolhado, como
qualquer bebida forte, com roupas fedorentas que fermentavam em sua própria gordura. Imaginai só, um
homem com os meus rins! Imaginai só! tão sensível ao calor como manteiga, um homem que se acha em
estado de permanente de gelo e fermentação! Foi milagre não ter morrido sufocado. E no grau mais
elevado desse banho, quando eu já estava meio cozido em gordura, tal qual um prato holandês, ser
atirado ao Tâmisa e esfriado como uma ferradura que estivesse ao rubro! Imaginai só, mestre Fontes! Ao
rubro! Imaginai só!

FORD - Com sincero pesar, senhor, sinto terdes sofrido tudo isso pelo intuito de me favorecerdes. Mas
vejo que minha causa está perdida. Não voltareis a tomar a peito a questão?

FALSTAFF - Mestre Fontes, primeiro me atirara ao Etna, como me jogaram ao Tâmisa, antes de deixá-la
nesse ponto. O marido dessa senhora vai esta manhã caçar passarinhos. Ela me mandou outro recado,
para nova entrevista com ela, entre as oito e as nove horas, mestre Fontes.

FORD - Já passa das oito horas, senhor.

FALSTAFF - Já? Então vou preparar-me para a entrevista. Logo que tiverdes tempo, procurai-me para
saber da minha vitória, sendo o coroamento do caso virdes a possuir essa pessoa. Adeus. Haveis de
possuí-la, mestre Fontes! ainda haveis de pôr cornos nesse tal Ford.
(Sai.)

FORD - Hum! Ah! Será visão tudo isso? Será sonho? Estarei dormindo? Acorda, mestre Ford! Acorda,
mestre Ford! O teu melhor casaco está com um furo, mestre Ford. Casamento dá sempre nisso. Quem
tem cestos e roupa suja, passa por tudo isso. Muito bem; eu próprio me incumbirei de proclamar o que
sou. Vou pegar esse libertino; neste momento ele está em minha casa; não poderá escapar; é impossível;
não poderá enfiar-se em uma bolsinha de níqueis nem numa caixa de pimenta. Ainda mesmo que o
auxilie mais uma vez o demônio que o ampara, hei de rebuscar por tudo quanto for buraco. Conquanto eu
não possa escapar de ser o que não desejara, nem por isso me mostrarei complacente. Se tenho cornos
que me deixam louco, passarei a justificar o dito: furioso como um animal de chifre.
(Sai.)