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HENRIQUE VIII, ATO II, CENA I

Westminster. Uma rua. Entram dois gentis-homens, que se encontram.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Por que tamanha pressa?
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Oh! Deus vos guarde. Ia direito à sala do conselho para ouvir o que
vão fazer do grande Duque de Buckingham.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Então vos poupo, senhor, esse trabalho. Já está tudo concluído,
tirante a cerimônia de levar novamente o prisioneiro.
SEGUN1)O GENTIL-HOMEM ­ Estivestes presente?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Sim, decerto.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Que aconteceu? Dizei-me, por obséquio.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Adivinhar podeis mui facilmente.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Ficou reconhecida a culpa dele?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Sem dúvida nenhuma, tendo sido, como tal, condenado.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Triste fico perante essa notícia.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Como muitas outras pessoas.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Mas, por gentileza, como se passou tudo?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Vou contar-vos em resumo o que vi. O grande duque apresentou-se
ao tribunal, e a todos os itens que contra ele formularam respondeu, declarando-se inocente e alegando
razões de muito peso porque da lei livrar-se conseguisse. O advogado do rei, por outro lado, fazia carga
sobre o questionário, provas e confissões das testemunhas, com as quais o duque quis ser confrontado
para, de viva voz, poder falar-lhes, depois do que contra ele depuseram seu intendente, Sir Gilberto Peck,
também chanceler dele e, assim, John Car, que foi seu confessor, e aquele monge diabólico, sim,
Hopkins, que culpa teve de tudo.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Não foi esse monge que o empanturrou com suas profecias?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Precisamente. Todos o acusaram com veemência. De grado ele
teria destruído tantas provas; mas não pode. E assim, ante a evidência, os próprios pares o declararam réu
de alta traição. Ele se defendeu por muito tempo e com sabedoria, porque a vida viesse a salvar; mas tudo
foi somente lastimado ou esquecido na mesma hora.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ E após isso, como ele se portou?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Ao ser trazido novamente à barra do tribunal para o funéreo toque,
sua sentença, ouvir, de grande angústia ficou tomado, em bagas lhe escorrendo pelas faces o suor; falou
colérico qualquer coisa, apressado e sem sentido. Porém voltou a si em pouco tempo e, serenado, até o
fim mui nobre resignação mostrou.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Não acredito que tenha medo à morte.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM -- Não, decerto; jamais foi pusilânime. Contudo, tinha razão para
ficar nervoso.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Com certeza o cardeal tem parte nisso.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ A pensar desse modo nos obrigam todas as conjeturas. De começo,
foi detido Kildare, quando ainda era deputado da Irlanda. Uma vez ele retirado do posto, foi mandado
para substituí-lo o Conde Surrey, com toda a urgência, porque não pudesse levar auxílio ao pai.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Essa manobra política revela muita astúcia.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Quando o conde voltar, isso é certeza, há de querer vingar-se dele.
É fato mui notório que todas as pessoas que o monarca distingue, logo arranja jeito o cardeal para
ocupá-la alhures, bem distante da corte.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Todo o povo lhe vota ódio entranhado e, por minha alma, desejaria
de bom grado vê-lo dez braças sob a terra, enquanto ao duque todos são afeiçoados, só o chamando de
generoso Buckingham é espelho de toda a cortesia.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Fazei pausa nessa altura, senhor, e vede o nobre par arruinado,
sobre que faláveis.
(Entra Buckingham, reconduzido do julgamento; oficiais de justiça o precedem, de machado, com o
corte virado para o lado dele; alabardeiros de ambos os lados. Vêm com ele Sir Tomás Lovell, Sir
Nicolau Vaux, Sim William Sands e gente do povo.)
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Vamos ficar mais perto, para vê-lo.
BUCKINGHAM ­ Ó boa gente que de longe viestes por vos compadecerdes de meu fado: ouvi
quanto vos digo e, abandonando-me, retornai para casa. Hoje a sentença recebi de traidor, sendo forçoso
morrer com esse labéu. Contudo, sirva-me o céu de testemunha: caso eu tenha consciência, só desejo
que, no instante de cair o machado, ela me deixe, tendo eu sido desleal. Não recrimino por minha morte a
lei: justa foi ela, uma vez admitidas as premissas. Porém que fossem mais cristãos quisera aqueles que a
aplicaram. Mas perdôo-lhes quanto eles intentaram. Não se mostrem jactanciosos, no entanto, na malícia,
nem pretendam construir sua maldade no sepulcro dos grandes, que contra eles meu inocente sangue
clamaria. Esperança não tenho de esta vida terrena prolongar, nem imploro isso, ainda que mais graças o
rei tenha do que eu pecados cometer ousasse. Ó vós, pequeno número de amigos que me tendes amor e
revelastes coragem de chorar a triste sorte de Buckingham, seus nobres companheiros e amigos, cuja
despedida é a única amargura, para ele como a morte: como anjos bons vinde até o fim comigo. E
quando sobre mim cair o longo divórcio de aço, um doce sacrifício fazei com vossas preces, elevando
minha alma para o céu. Vamos; levai-me logo, em nome de Deus.
LOVELL ­ Por caridade suplico a Vossa Graça: se algum ódio em qualquer tempo contra mim
guardastes no coração, perdoai-me francamente.
BUCKINGHAM ­ Sim Tomás Lovell, tudo vos perdôo, tal como desejara ser perdoado. Perdôo tudo.
Haver não pode ofensas inumeráveis que eu capaz não seja de esquecer por completo. A negra inveja não
há de assinalar-me a sepultura. Recomendai-me a sua Graça; caso a Buckingham venha ele a referir-se,
dizei-lhe, por obséquio, que o encontrastes a caminho cio céu. Meus votos todos e as orações ao rei
dizem respeito, e enquanto não se despedir minha alma, só há de suplicar bênçãos para ele. Que mais
anos viver ele consiga do que tempo me sobra de contá-los. Amado e amável seja seu governo. E ao baixar ao sepulcro em muita idade, num monumento viva com a bondade.
LOVELL ­ É preciso que eu leve Vossa Graça para o outro lado da água, onde este encargo
transmitirei a Sir Nicolau Vaux, que ao vosso fim terá de acompanhar-vos.
VAUX ­ Preparai tudo! O duque está chegando. Ponde a barca de jeito e decorai-a de acordo com a
grandeza que lhe é própria.
BUCKINGHAM ­ Não, não, Sir Nicolau; deixai tudo isso, que minha posição, de agora em diante,
de mim só poderá fazer chacota. Quando aqui vim, era o alto condestável, Duque de Buckingham; porém
agora sou apenas o pobre Eduardo Bohun. Porém mais rico sou do que os meus baixos acusadores, que
jamais souberam o que fosse a lealdade, que ora eu selo com o próprio sangue, o qual há de fazê-los
algum dia gemer. Meu nobre pai, Henrique de Buckingham, que contra a tirania de Ricardo foi o
primeiro a rebelar-se, tendo pedido asilo em casa de seu criado Banister, porque estava na desgraça, foi
traído por esse miserável, vindo logo a morrer sem julgamento. Que a paz de Deus seja com ele!
Henrique VII, ao trono após tendo subido, sinceramente lastimando a sorte de meu pai, como príncipe às
direitas, reintegrou-me nas honras e das ruínas fez meu nome sair com maior brilho. Mas agora seu filho
Henrique VIII vida, honra e nome, quanto me deixava feliz, de um golpe fez que para sempre sumisse
deste mundo. Julgamento concedido me foi, sendo forçoso que o declare: mui nobre, isso me deixa um
pouco mais feliz do que o meu muito desventurado pai. Mas numa coisa nos iguala o destino: o termos
sido traídos pelos criados, justamente pelas pessoas a que mais amávamos. Desleal serviço e contra a
natureza! Seus fins o céu em toda a parte mostra. Porém vós que me ouvis, de um moribundo recebei este
aviso indubitável: Sempre que fordes liberal com vossos conselhos e afeição, tende cautela, pois os
próprios amigos que fizerdes, o coração lhes dando, ao perceberem a menor diferença em vossa sorte, de
vós se afastarão como o faz a água, só retomando para assoberbar-vos e tragar-vos por fim. Gente
bondosa, rezai por mim. Forçoso é que vos deixe. A hora postrema já soou de minha vida tão dilatada e
cansativa. Adeus. Quando algo triste relatar quiserdes, contai como eu caí. Aqui termino. E que Deus me
perdoe.
(Sai Buckingham e o séquito.)
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Que coisa lamentável! Isso chama, senhor, receio-o muito,
inumeráveis maldições sobre os próprios responsáveis.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Se inocente estiver o duque nisso, é terrível, de fato. No entretanto,
poderia mostrar-vos uns indícios de uma calamidade em perspectiva, que, se vier a se dar, será, sem
dúvida, muito maior do que esta.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Anjos bondosos, afastai-a de nós! Qual será ela? Confiai, senhor,
tenho certeza disso, em minha discrição.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Esse segredo é de tal monta que requer a máxima confiança porque
possa ser contado.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Revelai-mo; não sou de muita prosa.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Confio em vós, senhor; vou revelar-vo-lo. Não ouvistes, acaso,
alguns rumores nestes últimos dias sobre o próximo divórcio entre o monarca e Catarina?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Ouvi, mas já passou, pois o monarca ficou encolerizado quando
soube do que se comentava e mandou ordem para o Lorde Maior, porque fizesse parar in continenti esses
rumores e as línguas responsáveis aquietasse.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Contudo, meu senhor, essa calúnia mostrou-se verdadeira, pois
renasce com mais viço que nunca, estando todos convictos de que o rei vai tentar isso. Se não foi o
cardeal, um dos validos da corte, por maldade tão-somente contra a boa rainha, sugeriu-lhe certo
escrúpulo que há de arruiná-la. Confirma-se a notícia com a chegada muito recente do Cardeal Campeio,
que veio só para isso, julgam todos.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Foi o cardeal, é certo; e tão-somente para do imperador tomar
vingança, por não haver obtido o arcebispado de Toledo, conforme lhe pedira.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM ­ Estou certo de que batestes no alvo. Mas não é doloroso que seja
ela, justamente, que venha a pagar tudo? Obterá o cardeal o que deseja, que é a queda da rainha.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM ­ Oh! é terrível. Mas aqui nos achamos muito à vista, para falarmos
disso. Conversemos mais de espaço em algum lugar seguro.
(Saem.)