Compartilhe

HENRIQUE VIII, ATO V, CENA III

A Câmara do Conselho. Entram o Lorde Chanceler, o Duque de Suffolk o Duque de Vorfolk, o Conde
de Surrey, Lorde Camareiro, Gardiner e Cromwell. O chanceler se coloca na ponta de cima da mesa, à
esquerda, ficando acima dele vazia uma cadeira, Como que destinada para o Arcebispo de Cantuária. Os
demais se sentam por ordem, de ambos os lados da mesa. Cromwell, na ponta de baixo, como secretário.
O porteiro, em seu lugar.
CHANCELER ­ Abri a audiência, mestre secretário. Que nos traz hoje aqui?
CROMWELL ­ Se Vossas Honras me permitem, o principal assunto diz respeito à Sua Graça de
Cantuária.
GARDINER ­ Já foi ele informado?
CROMWELL ­ Já.
NORFOLK ­ Quem se acha à espera, aí?
PORTEIRO ­ Fora, meus nobres lordes?
GARDINER ­ Sim.
PORTEIRO ­ Milorde arcebispo; há meia hora vossas ordens aguarda.
CHANCELER ­ Então, que entre.
PORTEIRO ­ Vossa Graça já pode entrar na sala.
(Cranmer entra e se aproxima da mesa do Conselho.)
CHANCELER ­ Meu bom lorde arcebispo, é com tristeza que eu aqui me acho e vejo esta cadeira
privada de seu dono. Mas nós todos somos homens, de natureza frágil e sujeitos à carne; muito poucos
serão anjos. Assim, pela fraqueza levado e a irreflexão, vós que a nós todos devíeis dirigir, vós
desmandastes, gravemente, ofendendo o soberano, depois, as leis, e enchendo o reino todo, pelas
prédicas próprias e dos vigários ­ já soubemos de tudo isso de doutrinas recentes, muito estranhas e
perigosas, puras heresias, que, se não forem reformadas, podem produzir grande dano.
GARDINER ­ Nobres lordes, urge que essa reforma seja pronta. Quem quer domar cavalos pelas
mãos não os leva, porque dóceis a ficar venham, mas lhes tapa a boca com freio resistente e a espora
calca nos flancos até que eles obedeçam. Se permitirmos ­ por condescendência, por piedade pueril, pelo
conceito, tão-só, de um homem ­ que se alastre doença tão contagiosa: então, adeus remédio! Quais
serão do desídio as conseqüências? Revoltas, comoções, o Estado todo contaminado. Caro testemunho
disso mesmo nos dão nossos vizinhos da alta Alemanha; é mui recente a coisa que a memória dorida nos
compunge.
CRANMER ­ Lutei até hoje, meus bondosos lordes, assim na profissão como na vida, não sem
grande trabalho, porque as minhas doutrinas e o decurso poderoso de minha autoridade, sempre juntos a
mesma via certa percorressem. Sempre o bem tive em mira. Não existe ­ falo, milordes, com sinceridade
­ criatura que em consciência e no exercício de sua profissão mais ódio sinta do que eu aos destruidores
da paz pública. Permita o céu que nunca o soberano venha a encontrar menos fiéis vassalos. Os que
vivem da inveja e da malícia tortuosa ousam morder os mais prestantes. Suplico instante a Vossas
Senhorias que nesta causa os meus acusadores, sejam quais forem, sejam confrontados comigo e falar
possam livremente.
SUFFOLK ­ Não, não, milorde; sois um conselheiro; assim, ninguém se atreverá a acusar-vos.
GARDINER ­ Visto termos assuntos de mor peso, milorde, vamos ser convosco breves. É parecer de
Sua Alteza e nosso que, visando à vantagem do processo, sejais daqui levado para a Torre, onde,
voltando vós a ser um simples particular, vereis que muita gente contra vós deporá com ardimento maior
do que esperais, receio-o muito.
CRANMER ­ Agradecido, meu bom Lorde de Winchester, sempre vos revelastes meu amigo. Por
vosso parecer, sereis a um tempo jurado e juiz. Sois muito generoso. Percebo vosso intento: arruinar-me.
Doçura e amor, milorde, mais assentam a um sacerdote do que a vã cobiça. Voltai a conquistar almas
transviadas; não repilais nenhuma. Porque eu possa purificar-me, todo o peso ponde sobre minha
paciência; tão pequeno trabalho isso há de dar-me, como escrúpulo vos causa praticar o mal amiúde.
Poderia dizer muito mais coisas, mas o respeito a vosso ministério me obriga a moderar-me.
GARDINER ­ Não, milorde! A verdade, milorde, pura e simples é que sois um sectário. Vossas
glosas tão polidas, a quantos vos compreendam não passam de palavras sem substância.
CROMWELL ­ Milorde de Winchester sois muito duro; permiti que vos diga. Os indivíduos de tal
nobreza, ainda que faltosos, respeito sempre merecer deviam por tudo quanto foram. E crueldade fazer
pressão em quem já está caindo.
GARDINER ­ Peço perdão, meu caro secretário; mas de quantos aqui na mesa se acham, sois o
último a poder manifestar-se.
CROMWELL ­ Por quê, milorde?
GARDINER ­ Pois não sei, acaso, que sois adepto dessa nova seita? Não sois limpo.
CROMWELL ­ Limpo não sou?
GARDINER ­ Repito-o: não sois limpo.
CROMWELL ­ Quem dera que a metade disso fôsseis honesto, que então preces vos seguiriam, não
o medo, apenas.
GARDINER -- Nunca me esquecerei dessa linguagem desaforada.
CROMWELL ­ Nem de vossa vida desaforada
CHANCELER ­ É muito! É muito! Basta milordes. Que vergonha!
GARDINER ­ Pronto.

CROMWELL ­ Pronto.
CHANCELER ­ Voltando a vós, milorde, decidido, quero crer, foi por todos, que levado para a
Torre sejais sem mais delongas. onde deveis ficar até sabermos o que decide o rei. Concordam todos,
milordes?
TODOS ­ Concordamos.
CRANMER ­ Não há outro caminho de clemência? É inevitável que eu seja conduzido para a Torre?
GARDINER ­ Que outro caminho achar pretenderíeis? Sois enfadonho em demasia. Venham alguns
guardas daí, para levá-lo.
(Entra um guarda.)
CRANMER -- Para levar-me? Dais-me o tratamento que se dá aos traidores?
GARDINER ­ Recebei-o e até à Torre o levai com segurança.
CRANMER ­ Meus bons lordes, parai. pois ainda tenho algo para dizer. Olhai para isto, meus bons
senhoras. Pela só virtude deste anel, eu retiro minha causa das garras destes homens e a confio a um mais
nobre juiz: o rei meu mestre.
CHANCELER ­ É o próprio anel do rei.
SURREY ­ Sim, não é falso.
SUFFOLK ­ Sim, pelo céu, é o verdadeiro. A todos eu vos disse, no instante de quererdes tocar neste
penhasco perigoso, que viria acabar por esmagar-nos.
NORFOLK ­ Acreditais, milordes, que o monarca permitirá que no dedinho, ao menos, deste homem
nós toquemos?
CAMAREIRO ­ Não há dúvida; é mais que certo. E quanto a vida dele não vale junto ao rei! Só
desejara poder sair decentemente disto.
CROMWELL ­ Tinha um pressentimento, quando fábulas e acusações fictícias reunia contra tal
homem ­ cuja honestidade somente o diabo inveja e seus discípulos ­ que atiçáveis o fogo que vos
queima. Agora, suportai-o.
(Entra o rei, lança-lhes um olhar severo e se assenta.)
GARDINER ­ Terrível soberano, como todos ao céu agradecemos diariamente por brindado nos ter
com um tal príncipe, não só bondoso e sábio: religioso; um rei que com a máxima humildade da Igreja
faz o principal objeto da própria honra, e que para dar mais força a esse dever sagrado, com respeito
piedoso comparece pessoalmente ao nosso tribunal, porque sabendo fique da luta que se trava entre ela e
seu grande ofensor.
REI HENRIQUE ­ Sempre mostrastes, Bispo de Winchester, grande habilidade no improvisar
brilhantes elogios. Mas sabei que não vim para ouvir essas adulações de frente. São vazias por demais,
muito finas, porque possam mascarar a maldade. Mas com isso não me atingis. Adulador cãozinho
pareceis, que pretende conquistar-me só com mexer a língua. Porém faças de mim o juízo que fizeres,
tenho-te por uni sujeito mau e sanguinário.
(A Cranmer.)
Senta-te, meu bom Cranmer. Só desejo ver quem tem a ousadia, o atrevimento de contra ti alçar um
só dedinho. Por quanto há de sagrado, melhor fora morrer de inanição que um só momento pensar que
este lugar não te pertence.
SURREY ­ Se a Vossa Graça for do agrado...
REI HENRIQUE ­ Não! não é do meu agrado! Imaginara que tinha em meu Conselho homens
sisudos, de algum discernimento, mas não vejo nenhum como o quisera. Achais decente deixar que este
homem, este bondoso homem ­ dentre vós muito poucos esse título podiam merecer ­ que este honesto
homem ficasse à espera diante de uma porta como um sórdido criado? Uma pessoa da vossa posição?
Oh, que vergonha! Estáveis obrigados pelas minhas instruções a esquecer-vos de vós próprios? Dei-vos

poderes para que o julgásseis não como a um criado, mas um conselheiro. Entre vós vejo muitos que sem
dúvida ­ mais por malícia do que honesto zelo ­ às mais terríveis provas o poriam, se viessem para isso
ter ensejo. Mas tal não se dará, por certo, enquanto eu estiver com vida.
CHANCELER ­ Queira Vossa Graça, meu mui temido soberano, deixar que a todos nós eu
justifique. A prisão dele foi deliberada ­ se há boa fé nos homens ­ mais para ele mesmo justificar-se
plenamente perante o mundo do que por malícia, ao menos eu outro pensar não tive.
REI HENRIQUE ­ Bem, bem. Então honrai-o, meus senhores; dai-lhe, acolhendo-o, todo o
tratamento, que ele o merece. A seu favor só digo que se um rei devedor pode sentir-se com relação a um
súdito, eu me sinto desse modo a ele preso não somente pela sua afeição, mas por seus préstimos. Assim,
deixai de me criar tropeços. Abraçai-o, abraçai-o! Sede amigos. Oh! por pudor! Milorde de Cantuária,
quero fazer-vos um pedido e espero que não mo refuseis: ainda se encontra por batizar uma gentil
menina. Vós sereis o padrinho, respondendo pelo futuro dela.
CRANMER ­ O mais potente monarca vivo ficaria ufano de uma tão subida honra. Como posso
merecê-la, tão pobre e humilde súdito?
REI HENRIQUE ­ Vamos, vamos, milorde; estais querendo poupar vossas colheres. Tereis duas
companheiras para esse ato: a velha Duquesa de Norfolk e a Marquesa de Dorset. São do vosso agrado?
Mais uma vez concito-vos, milorde de Winchester: abraçai e amai este homem.
GARDINER ­ De todo o coração e amor fraterno.
CRANMER ­ O céu é testemunha de quão ledo me deixa esta palavra.
REI HENRIQUE ­ Bom amigo! Essas alegres lágrimas revelam teu fido coração. A voz do povo
vejo em ti confirmada. É nestes termos: "Fazei ao Lorde de Cantuária alguma partida de mau gosto e um
grande amigo ganhareis para sempre". Vamos, vamos, senhores; perdemos muito tempo. Já não vejo o
momento de fazermos uma cristã da minha pequerrucha. Unidos quero ver-vos até à morte. Honrados
ficareis; eu, sempre forte.
(Saem.)