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HENRIQUE VIII, ATO V, CENA IV

Pátio do palácio. Barulho e tumulto por trás da cena. Entram o porteiro e seu ajudante.

PORTEIRO ­ Não parais com esse barulho, marotos? Pensais que a corte seja jardim de urso?
Rústicos, parai com esse falatório!
UMA VOZ (dentro) ­ Bom mestre porteiro, eu faço parte da despensa.
PORTEIRO ­ Pertenceis mas é à forca, para serdes enforcado, biltre. Isto aqui é lugar para tamanhos
urros? Arranje-me uma dúzia de varas de macieira, mas bem fortes, que estas não passam de gravetos.
Vou fazer-vos cócegas na cabeça. Tereis de ver batizados. Grosseirões! viestes procurar aqui cerveja e
bolos?
AJUDANTE ­ Tende paciência, meu senhor; a menos que usássemos canhões, tão impossível nos
será dispersá-los neste instante como obrigá-los a dormir na cama na primeira manhã do mês de maio.
Isso nunca acontecerá. Mais fácil do que expulsá-los nos seria a igreja de São Paulo abalar.
PORTEIRO ­ De que maneira conseguiram entrar?
AJUDANTE ­ Como sabê-lo? Como é que a maré sobe? Tanto quanto distribuir pauladas foi
possível a um pau de quatro pés ­ os pobres restos ainda podeis ver ­ não poupei nada, senhor.
PORTEIRO ­ Nada fizestes; é isso mesmo.
AJUDANTE ­ Não sou Sansão, nem Guido, nem Colbrando, para a todos ceifar. Mas se um, que
fosse, eu poupei, que tivesse uma cabeça boa para alvo, seja moço ou velho, ele ou ela, cornudo ou
corneador, que nunca mais um bom assado eu veja, no que jamais consentirei, nem mesmo por uma vaca
inteira. Deus a livre!
UMA VOZ (dentro) ­ Estais ouvindo, mestre porteiro?
PORTEIRO ­ Não demora, já chego aí, meu bom senhor velhaco. Toma conta da porta, maroto.
AJUDANTE ­ Que quereis que eu faça?
PORTEIRO ­ Que tereis de fazer, senão derrubá-los às dúzias? Acaso isto aqui é Moorfield, para
fazerem uma parada? Ou terá chegado a esta corte alguma índia do estrangeiro, com uma grande cauda,
para que as mulheres nos venham sitiar dessa maneira? Deus me abençoe! Quanta sem-vergonhice está
acontecendo atrás das portas! Por minha consciência de cristão, este batizado vai dar nascimento a um
milheiro de outros batizados; vai haver aqui hoje pais e padrinhos, tudo junto.
AJUDANTE ­ Tanto maiores serão as colheres, senhor. Ali perto da porta há um sujeito que pelo
rosto deve ser um caldeireiro, porque, por minha consciência, traz no nariz vinte dias de canícula. Todas
as pessoas que se acham junto dele já passaram a linha; não precisam de outra penitência. Por três vezes
bati na cabeça desse dragão de fogo, e três vezes seu nariz disparou para o meu lado; acha-se ali como
um morteiro, para bombardear-nos. Ao lado dele está a mulher de um merceeiro, de muito pouco
espírito, que tanto deblaterou contra mim, que lhe caiu da cabeça a sopeira de buracos, tal foi a
conflagração que eu fiz despertar na república. De uma feita eu errei o meteoro e acertei na tal mulher,
que começou a gritar: "Cacete, aqui!" Então percebi de longe que vinham em seu socorro uns quarenta
bastoneiros, a esperança de Strand, onde ela tinha seus quartéis. Eles atacaram; eu resisti com galhardia;
por último, vieram para cima de mim com cabos de vassoura. Continuei firme. Mas, de súbito, por trás
deles, uma bateria de garotos, pequenos atiradores, dispararam para o meu lado tamanha saraivada de
pedras, que eu tive de resguardar a honra e ceder-lhes o campo. O diabo estava no meio deles, por minha
fé; tenho certeza disso.
PORTEIRO ­ São os rapazes que trovejam no teatro e se batem por pedaços de maçãs, e que nenhum
auditório pode suportar a não ser o da Tribulação de Towerhill ou os freqüentadores de Limehouse, seus
dignos confrades. já pus um par deles no Limbo Patrum, onde terão de dançar estes três dias, sem contar
a sobremesa de duas chibatadas que ainda terão de receber.
(Entra o Lorde Camareiro.)
CAMAREIRO ­ Santo Deus! quanta gente aqui reunida! E sempre a chegar mais de toda parte! Até
parece feira. Onde se metem esses porteiros, esses preguiçosos? Belo trabalho, amigos, consentindo que
essa gentalha entrasse. Todos eles são vossos fiéis amigos dos subúrbios? Muitos lugares vão sobrar,
decerto, para as senhoras, quando retornarem do batizado.
PORTEIRO ­ Como vê Vossa Honra, somos homens, apenas. Tudo quanto foi possível fazer sem
que em pedaços nos deixassem, fizemos. Um exército não poderá contê-los.
CAMAREIRO ­ Por minha honra, se o rei me censurar por qualquer coisa, hei de pôr-vos em ferros,
e isso logo, cingindo-vos as frontes, por castigo, com uma multa redonda. Sois mandriões; esvaziais os
odres, quando tendes tanta coisa a fazer! Ouvi: trombetas! De retorno já estão do batizado. Rompei a
multidão e abri caminho porque passe o cortejo livremente; se não, hei de encontrar algum convento em
que possais vos divertir dois meses.
PORTEIRO ­ Ala para a princesa!
AJUDANTE ­ Olá, seu grandalhão! saí do caminho, se não quiserdes que eu vos dê dor de cabeça.
PORTEIRO ­ E vós aí, de jaqueta de camelão: descei da grade, se não quiserdes que eu vos empale
com um desses varapaus.
(Saem.)