Compartilhe

A MEGERA DOMADA, ATO I, Cena II

(Diante da casa de Hortênsio. Entram Petrucchio e Grúmio.)

PETRUCCHIO - Verona, adeus por uns momentos; quero ver em Pádua uns amigos, e entre todos o mui
querido e dedicado Hortênsio. Sua casa é esta aqui, se não me engano. Grúmio, maroto, bate! Estou
mandando.

GRÚMIO - Bater, senhor? Bater em quem? Alguém ofendeu Vossa Senhoria?

PETRUCCHIO - Maroto, digo: bate-me com força.

GRÚMIO - Bater em vós, senhor? Oh, senhor! Quem sou eu para bater em vós?

PETRUCCHIO - Vamos, maroto; bate-me na porta, se essa cabeça estúpida te importa.

GRÚMIO - Meu amo arruaceiro agora se revela. Mas se eu der nele, farei uso da canela.

PETRUCCHIO - Então, maroto: bates ou não bates? Não? Nesse caso, bato eu sem dó, para ouvir-te
cantar sol, mi, lá, dó.

(Puxa as orelhas de Grúmio.)

GRÚMIO - Socorro, gente! Enlouqueceu meu amo.
(Entra Hortênsio.)

HORTÊNSIO - Que é isso? Que aconteceu? Oh! o meu velho amigo Grúmio e o meu bom amigo
Petrucchio! Como vão todos em Verona?

PETRUCCHIO - Viestes nos separar, Hortênsio amigo? Con tutto il cuore ben trovato, digo.

HORTÊNSIO - Alla nostra casa ben venuto, molto honorato signior mio Petrucchio. Vamos, Grúmio,
levanta-te; acalmai-vos.

GRÚMIO - Não; pouco importa tudo quanto ele possa dizer em latim. Se isso não for um motivo legal
para eu deixar o serviço dele... Ora vede, senhor, ele mandou que eu batesse nele, que o surrasse com
força. E agora dizei-me se fica bem para um criado proceder dessa maneira com o patrão, uma pessoa
que, pelos meus cálculos, já terá seus trinta e dois anos? Mas se com força assim tivesse feito, saíra
Grúmio alegre deste pleito.

PETRUCCHIO - Estúpido maroto. Caro Hortênsio, mandei que ele batesse em vossa porta, sem poder
conseguir o que almejava.

GRÚMIO - Bater na porta? Oh céus! Pois não me ordenastes claramente: "Bate-me aqui, maroto; bate
em mim com bem força, bate sem piedade?" E agora vos saís com esse "bater na porta?"

PETRUCCHIO - Saí logo, maroto, é o que vos digo.

HORTÊNSIO - Calma, Petrucchio; sou penhor de Grúmio. Oh! que pendência séria entre vós e ele,
vosso bom Grúmio criado antigo e sério! Mas, caro amigo, que suave brisa vos trouxe a Pádua, de
Verona antiga?

PETRUCCHIO - A que os mancebos pelo mundo espalha em busca de fortuna, pois em casa não há
oportunidade. Resumindo, signior Hortênsio, a coisa é como segue: morreu meu pai, Antônio, tendo
agora saído eu sem destino, tencionando casar bem e vencer do melhor modo. Ouro tenho na bolsa; bens,
na pátria. Assim, viajo para ver o mundo.

HORTÊNSIO - Petrucchio, deverei, sem mais rodeios, apresentai-te a uma mulher ferina? Não me
agradecerias o conselho. Mas posso asseverar-te que ela é rica; sim, muito rica. Mas és meu amigo; não
convém que a desposes.

PETRUCCHIO - Entre amigos, signior Hortênsio, não se fala muito. Se conheces alguém bastante rica
para que esposa de Petrucchio seja - pois o ouro tilintar na dança deve do casamento dele - embora seja
tão feia como a amada de Florêncio, velha como a Sibila, tão maligna e impertinente como a própria
esposa de Sócrates, Xantipa, ou mesmo pior: não poderá deixar-me transformado nem embotar de meu
afeto o gume, embora seja como o mar Adriático, quando se altera. Vim para casar-me, para uma noiva
rica achar em Pádua; sendo rica, feliz serei em Pádua.

GRÚMIO - Ora vede, senhor; ele vos diz francamente o que pensa. Sendo assim, dai-lhe ouro bastante e
casai-o com uma boneca, ou com um figurino, ou com uma velha que não tenha um só dente na boca,
muito embora tenha tantas doenças como cinqüenta e dois cavalos reunidos. Tendo dinheiro, para ele

tudo estará bem.

HORTÊNSIO - Bom Petrucchio, uma vez que andamos tanto, vou prosseguir no que era, de começo,
somente brincadeira. Tenho meios, Petrucchio, de ensejar-te uma consorte bastante rica, mui formosa e
jovem, e educada no jeito de fidalga. Seu único defeito - e que defeito! - é ser intoleravelmente brava,
teimosa e cabeçuda sem medida, a tal ponto que, embora meus haveres fossem menores, não a desposara
por uma mina de ouro.

PETRUCCHIO - Basta, Hortênsio! Não conheces o efeito do dinheiro. Dize-me o nome do pai dela, e
pronto. Vou abordá-la, muito embora alterque mais alto que o trovão, quando rebenta no outono a
tempestade.

HORTÊNSIO - O pai da jovem é Batista Minola, gentil-homem cortês e afável sendo o nome dela
Catarina Minola, em toda Pádua famosa pela língua ralhadora.

PETRUCCHIO - Conheço o pai, embora a não conheça; foi muito amigo de meu pai defunto. Não
durmo, Hortênsio, sem a ver primeiro. Ireis perdoar-me, assim, a liberdade, logo ao primeiro encontro, de
deixar-vos, salvo se fordes até lá comigo.

GRÚMIO - Peço-vos, senhor, deixai-o ir, enquanto ele está com essa disposição. Por minha alma, se ela
o conhecesse tão bem quanto eu, saberia que no caso dele de nada valem as recriminações. Ela poderá,
tal vez, chamá-lo umas dez vezes de biltre ou coisa assim. Não lhe fará mossa nenhuma. Uma vez
entrado na dança, ele recorrerá ao vocabulário próprio. Vou dizer-vos uma coisa, senhor: por pouco que
ela lhe resista, ele lhe marcará o rosto com uma figura que a deixará tão desfigurada como um gato sem
olhos. Não o conheceis, senhor.

HORTÊNSIO - Petrucchio, espera um pouco; iremos juntos, pois com Batista se acha meu tesouro; de
minha vida a jóia está com ele: sua filha mais nova, a bela Bianca, que de mim ele afasta e de outros
muitos pretendentes, rivais no meu afeto. Por julgar impossível - em virtude dos defeitos há pouco
relatados - que a Catarina alguém escolher possa, determinou Batista deste modo: que ninguém tenha
acesso à bela Bianca sem que venha a casar-se Catarina.

GRÚMIO - Catarina goela: o pior nome para uma donzela.

HORTÊNSIO - Fazei-me ora um favor, caro Petrucchio: ireis apresentar-me, tendo eu posto vestes
sóbrias, ao velho pai de Bianca, como perito professor de música, para lhe dar lições. Com esse plano,
terei vagar e liberdade, ao menos, de, sem suspeita, lhe fazer a corte.

GRÚMIO - Não há nenhuma velhacaria nisso. Vede como os moços sabem juntar as cabeças para
enganarem os velhos. Patrão, patrão, olhai para trás! Quem é que vem chegando?
(Entram Grêmio e Lucêncio, disfarçados, sobraçando livros.)

HORTÊNSIO - Silêncio, Grúmio. Meu rival é este. Petrucchio, fica à parte.

GRÚMIO - Um belo mancebo, e, ainda por cima, apaixonado.

GRÊMIO - Oh, muito bem! Já examinei a conta. Ora me ouvi, senhor: quero que todos sejam
encadernados ricamente; livros de amor, somente, tomai nota; não deveis ler-lhe nenhum outro assunto.
Compreendestes-me? Além dos que obtiverdes da liberalidade de Batista, vos farei donativos generosos.
Tomai vossos papéis; é necessário que perfumados sejam suavemente, pois mais suave ela é do que os

perfumes a que são destinados. Que ireis ler-lhe?

LUCÊNCIO - Seja o que for, podeis estar certíssimo de que defenderei a vossa causa como se fôsseis
vós; sim, talvez mesmo com palavras de muito mais efeito, salvo se fôsseis, meu senhor, um sábio.

GRÊMIO - Oh! que coisa é a ciência!

GRÚMIO - Oh! que animal é esta galinhola!

PETRUCCHIO - Silêncio, maroto.

HORTÊNSIO - Grúmio, caluda. Signior Grêmio, salve!

GRÊMIO - Feliz encontro, meu signior Hortênsio. Não suspeitais para onde vou? A casa de Batista
Minola. Prometi-lhe que havia de esforçar-me na procura de um professor para a formosa Bianca. E tive
sorte; achei este mancebo que, pelo seu saber e competência, muito se recomenda. Lê poesia e outros
livros; só bons, posso afiançar-vos.

HORTÊNSIO - Muito bem; e eu achei um gentil-homem que ficou certo de arranjar-me um outro,
músico, próprio para nossa amada. Assim, não fico atrás no que me cumpre fazer à bela Bianca tão
querida.

GRÊMIO - Por mim querida, como vou prová-lo.

GRÚMIO (à parte) - Quem vai prová-lo é a bolsa dele.

HORTÊNSIO - Ocasião não é de ventilarmos, Grêmio, nossa afeição. Se me escutardes e usardes de
franqueza, vou contar-vos algo que para os dois é de importância. Por acaso encontrei este mancebo que
conosco concorda mui de grado em cortejar a fera Catarina, em desposá-la, mesmo, caso o dote dela for
conveniente.

GRÊMIO - Dito e feito; muito bem. Revelaste-lhe os defeitos, Hortênsio, da donzela?

PETRUCCHIO - Sei que é brusca, rilhenta a conta inteira. Se é só isso, meus senhores, não vejo
inconveniente.

GRÊMIO - Nenhum, amigo? De que terra sois?

PETRUCCHIO - De Verona; do velho Antônio, filho. Morreu meu pai; mas vive meu dinheiro; viver
pretendo agora prazenteiro.

GRÊMIO - Prazenteiro, com uma fúria dessas? Fora estranho. Porém se assim quiserdes, seja, em nome
de Deus. Haveis de ter-me como auxiliar em tudo. Mas é certo: namorareis aquela gata brava?

GRÚMIO - Se ele lhe fará a corte? Caso contrário, a enforcarei.

PETRUCCHIO - Por que vim cá, senão para isso mesmo? Pensais que um ruidozinho me ensurdece? Já
não ouvi rugirem leões há tempos? Já não ouvi o mar, que o vento empola, bramir como javardo
enfurecido, suando de espumar? As baterias já não ouvi, acaso, na campanha, e a artilharia arrebentar das
nuvens? Nos grandes prélios já não tenho ouvido nitrir cavalos, ressoar trombetas, não cessar nunca o
alarma, para virdes da língua me falar de uma donzela, que não chega a fazer tanto barulho como a
castanha no fogão do rústico? Ora! Espantalho é só para criança.

GRÚMIO (à parte) - Disso ele não tem medo.

GRÊMIO - Hortênsio, escuta! Este senhor chegou em feliz hora. Tenho o pressentimento de que veio
para o bem dele e nosso.

HORTÊNSIO - Assegurei-lhe nossa ajuda nisso, com lhe pagarmos todas as despesas.

GRÊMIO - Pois não, contanto que ele a alcance mesmo.

GRÚMIO (à parte) - Quisera ter tanta certeza disso como de um bom jantar.
(Entram Trânio, ricamente trajado, e Biondello.)

TRÂNIO - Deus vos guarde, senhores. Informai-me, por obséquio, o caminho mais direto para ir à casa
do signior Minola.

BIONDELLO - O que tem duas filhas mui formosas?

TRÂNIO - Justamente, Biondello.

GRÊMIO - Um momentinho, senhor. Decerto não falais da filha...

TRANIO - Filha ou filho, quem sabe? E vós com isso?

PETRUCCHIO - Não a briguenta, quero crer, amigo.

LUCÊNCIO (à parte)- Bem começado, Trânio!

HORTÊNSIO - Outro momento: sobre essa jovem, qual é o vosso intento?

TRÂNIO - E vós com isso?

GRÊMIO - Nada, certamente, se sairdes calado incontinenti.

TRÂNIO - Não é livre esta rua, ou esta viela, para nós ambos?

GRÊMIO - Certo; mas não ela.

TRÂNIO - E a razão, por obséquio? GRÊMIO - É muito simples: foi esc

olhida pelo signior Grêmio.

HORTÊNSIO - Também o foi pelo signior Hortênsio.

TRÂNIO - Devagar, meus senhores. Se fidalgos sois, em verdade, ouvi-me com paciência, fazendo-me
justiça. Cavalheiro muito nobre é Batista, a quem de todo meu pai não é estranho; e embora a filha dele
fosse mil vezes mais bonita, podia ter bastantes namorados, e, entre eles, eu. A filha da formosa Leda
teve um milhão de pretendentes. Logo, mais um vai ter a bela Bianca. Assim será. Lucêncio não desiste,
mesmo que venha Páris, lança em riste.

GRÊMIO - Como! Este cavalheiro vai meter-nos a todos no chinelo.

LUCÊNCIO - Dai-lhe corda, senhor, que acabará por enroscar-se.

PETRUCCHIO - Hortênsio, a que vem tanto palavrório?

HORTÊNSIO - Permiti-me a ousadia da pergunta: vistes já acaso a filha de Batista?

TRÂNIO - Jamais, senhor; mas soube que tem duas: uma, formosa pela língua afiada; a outra, pela
modéstia, encantadora.

PETRUCCHIO - A primeira, senhor, soltai; é minha.

GRÊMIO - Pois não; deixo o trabalho para esse Hércules; que lhe seja maior que os outros doze.

PETRUCCHIO - Permiti que vos fale com franqueza. Das duas filhas a mais moça, aquela que desejais
pescar, foi excluída pelo pai do convívio dos rapazes, afirmando ele que a nenhum a entrega sem que a
filha mais velha a casar venha. Livre será então; não antes disso.

TRÂNIO - Se for assim, senhor, sendo vós o homem que nos irá favorecer a todos, eu inclusive, quebrai
logo o gelo, realizai logo a proeza de a mais velha conquistar, e a mais moça deixai livre por que todos
possamos cortejá-la. O que a alcançar não há de ser, decerto, tão desgracioso que se mostre ingrato com
relação a vós.

HORTÊNSIO - É mui sensato quanto dizeis, senhor. E já que vindes também como aspirante à mão da
jovem, deveis gratificar, como nós outros, esse senhor, de quem nos confessamos devedores eternos.

TRÂNIO - Cavalheiro, sovina não serei; e como prova vos convido a passar comigo a tarde, para brindes
à moça levantarmos. Como advogados procedamos nisso, os quais, embora com calor discutam, depois
comem e bebem como amigos.

GRÚMIO E BIONDELLO - Oh! que excelente idéia! Amigos, vamos.

HORTÊNSIO - Petrucchio, a idéia pode dar bom fruto. Serei agora vosso ben venuto.
(Saem.)