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A MEGERA DOMADA, ATO II, Cena I

(Pádua. Um quarto em casa de Batista. Entram Catarina e Bianca.)

BIANCA - Querida irmã, não me façais a injúria, nem a vós mesma, de tratar-me como criada ou baixa
escrava. Isso me humilha. Quanto aos enfeites, basta me soltardes as mãos, para que deles me desfaça;
sim, do manto ao casaco. E tudo quanto me ordenares, farei sem discrepância, tanto conheço meus
deveres para com as pessoas mais velhas.

CATARINA - Ora intimo-te a me dizer a qual dos pretendentes à tua mão dedicas mais afeto. Não
dissimules; conta-me a verdade.

BIANCA - Acreditai-me, irmã: nos homens vivos jamais notei fisionomia alguma que particularmente
me agradasse.

CATARINA - Bonequinha, é mentira. Não é Hortênsio?

BIANCA - Se gostais dele, mana, aqui prometo nesse sentido lhe falar, contanto que venhais a possuí-lo.

CATARINA - Agora entendo: gostais mais de riquezas, preferindo Grêmio, por isso, para que vos deixe,
sem dúvida, mais bela.

BIANCA - Tendes ciúme de mim por causa dele? É brincadeira, Vejo-o bem. E ora noto que outra coisa
não fizestes senão brincar comigo. Quetinha, por obséquio, as mãos soltai-me.

CATARINA - Se isto é brinquedo, o resto também era.
(Bate-lhe. Entra Batista.)

BATISTA - Que é isso, dona? Por que tanta fúria? Bianca, fica de lado. Pobrezinha! Está chorando... Vai
buscar a agulha; não te metas com ela. Que vergonha! Por que motivo, espírito diabólico, quem nunca te
fez mal assim maltratas? Quando ela te falou em tom mais áspero?

CATARINA - Seu silêncio me irrita; hei de vingar-me.
(Faz menção de pegar Bianca.)

BATISTA - Ante meus próprios olhos? Entra, Bianca.
(Sai Bianca.)

CATARINA - Já não me suportais? Agora vejo que ela é vosso tesouro e que é preciso arranjar-lhe um
marido. Em suas núpcias descalça dançarei; por causa dela conduzirei macacos para o inferno Não me
faleis, pois a chorar vou pôr-me, até achar ocasião para vingar-me.
(Sai.)

BATISTA - Já houve alguém, como eu, tão molestado? Mas, quem vem vindo aí?
(Entra Grêmio, com Lucêncio vestido pobremente, Petrucchio, com Hortênsio, como professor de
música, e Trânio, com Biondello, que traz um alaúde e livros.)

GRÊMIO - Muitos bons dias, meu vizinho Batista.

BATISTA - Sim, bom dia, vizinho Grêmio. Deus vos guarde, amigos.

PETRUCCHIO - E a vós, senhor. Dizei-me, por obséquio: não tendes uma filha, Catarina de nome,
encantadora e mui virtuosa?

BATISTA - Senhor, tenho uma filha desse nome.

GRÊMIO - Sois muito brusco; procedei com método.

PETRUCCHIO - Signior Grêmio, ofendeis-me; com licença. Senhor, sou um cavalheiro de Verona;
tendo ouvido falar da formosura de vossa filha, seu brilhante espírito, a modéstia pudica, as admiráveis
qualidades, a sociabilidade, sua conduta afável, a ousadia tomei de apresentar-me em vossa casa, sem
cerimônia, para que a verdade do que já tenho ouvido tantas vezes verifique com os olhos. Como gage de
minha vinda, quero apresentar-vos um dos meus homens, competente em música e matemático de traz,
que pode polir a educação de vossa filha nessas ciências, em que ele, estou bem certo, já tem
conhecimento. Ficai com ele, a não ser que queirais mesmo ofender-me. Chama-se Lício e é natural de
Pádua.

BATISTA - Sois bem-vindo, senhor, assim como ele, por amor vosso. Quanto à minha filha Catarina -
certeza tenho disso - não diz com vosso gênio, o que me pesa.

PETRUCCHIO - Vejo que não quereis perder a filha, ou que não vos agrada minha aliança.

BATISTA - Não me compreendais mal; digo o que penso. De onde vindes, senhor? Que nome tendes?

PETRUCCHIO - Eu? Sou Petrucchio; foi meu pai Antônio, em toda a Itália muito conhecido.

BATISTA - Conheço-o bem; assim, sois mui bem-vindo.

GRÊMIO - Acatando, Petrucchio, vossa história, permiti, por obséquio, que nós outros, pobres
peticionários, também azo tenhamos de falar. Ficai de lado; apressais-vos demais.

PETRUCCHIO - Ó signior Grêmio! Perdão; mas desejava concluir logo.

GRÊMIO - Não o duvido, meu senhor; mas ainda haveis de amaldiçoar esse noivado. Vizinho, o
presente dele vos deixou satisfeito, tenho certeza disso. Para vos prestar idêntica gentileza, uma vez que
eu, mais do que qualquer outra pessoa, tenho recebido de vossa parte tantas provas de deferência, tomo a
liberdade de apresentar-vos este jovem sábio (apresenta Lucêncio) que estudou muito tempo em Reims e
é tão perito em latim e grego como aquele o é em música e matemática. Chama-se Câmbio. Por
obséquio, aceitai os serviços dele.

BATISTA - Mil agradecimentos, signior Grêmio. Sois bem-vindo, bondoso Câmbio. (A Trânio.) Mas,
meu amável senhor, tendes aparência de estrangeiro. Poderei ter a ousadia de perguntar o motivo de
vossa vinda?

TRANIO - Perdão, senhor, mas a ousadia é minha, pois, à vossa cidade sendo estranho, apresento-me
como pretendente à mão da bela e virtuosa Bianca. Não ignoro, também, vosso propósito de dar a
preferência à irmã mais velha. A única permissão que vos impetro é que, sabendo a casa de onde eu
venho, me concedais acesso livre e idêntico acolhimento concedido aos outros. E para a educação de
vossa filha este instrumento simples vos oferto e estes autores gregos e latinos. Aceitai-os, que são de
grande mérito.

BATISTA - Sois Lucêncio? De que cidade vindes?

TRÂNIO - De Pisa sou, e filho de Vicêncio.

BATISTA - Pessoa de prestígio em Pisa, é certo. De nome já o conheço. Sois bem-vindo.
(A Hortênsio:)
Tomai o alaúde.(A Lucêncio) E vós, os livros. Vereis vossas alunas neste instante. Olá! Alguém daí!
(Entra um criado.)
Leva estes moços a minhas filhas; dize-lhes que os mesmos vão ser seus professores. Elas devem tratar
bem deles.
(Sai o criado com Hortênsio, Lucêncio e Biondello.)
Ora passear vamos um pouco no pomar. Depois, cearemos. Muitos bem-vindos sois; a todos peço
terem-se nessa conta.

PETRUCCHIO - Meu assunto, signior Batista, exige muita pressa; não poderei voltar todos os dias para
fazer a corte. Conhecestes meu pai perfeitamente; em mim o vedes, único herdeiro de seus bens e terras,
que, em minhas mãos, longe de diminuírem, tomaram grande impulso. Ora dizei-me: se eu conseguir o
amor de vossa filha, que dote ela trará no desposório?

BATISTA - Quando eu morrer, metade do que tenho; neste momento, vinte mil coroas.

PETRUCCHIO - Por esse dote quero assegurar-lhe, se me sobreviver, ficando viúva, todas as minhas
terras e contratos. Ponhamos isso tudo por escrito, porque entre as partes haja um penhor firme.

BATISTA - Sim, mas depois da cláusula precípua: o sim da noiva, porque isso é tudo.

PETRUCCHIO - Ora, isso é nada. Posso asseverar-vos, pai, que tão decidido eu sou quanto ela pervicaz
e orgulhosa. Ao se encontrarem, duas chamas violentas aniquilam quanto a fúria lhes tenha alimentado.
Conquanto o fogo brando se embraveça com pouco vento, os furacões terríveis levam diante de si o fogo
e tudo. Ora, sendo eu assim, compete a ela ceder aos meus desejos. Sou muito áspero; não vou fazer a
corte como criança.

BATISTA - Que tenhas sorte em tudo e que abençoada seja tua pressa. Mas será prudente contar com
muitos infelizes termos.

PETRUCCHIO - Vamos à prova; sou como a montanha que os ventos fortes abalar não podem, embora
de soprar não deixem nunca.
(Volta Hortênsio, com a cabeça quebrada.)

BATISTA - Então, amigo? Por que estás tão pálido?

HORTÊNSIO - Se estou assim, só pode ser de medo.

BATISTA - Minha filha tem gosto para a música?

HORTÊNSIO - Creio que ela dará melhor soldado. O ferro pode resistir-lhe, nunca sonoroso alaúde.

BATISTA - Não pudeste dobrá-la às harmonias do alaúde?

HORTÊNSIO - Não, que ela o dobrou em mim, primeiro. Disse-lhe apenas que ela se enganava com
relação ao toque, procurando os dedos ajeitar-lhe junto às cordas, quando ela, com espírito diabólico,
impaciente, gritou: "Isso é que é toque? Pois vou tocar de jeito". Assim dizendo, na cabeça me deu tão
forte golpe, que através do instrumento abri caminho, algum tempo ficando estupefacto, como pessoa
presa ao pelourinho, a olhar pelo alaúde, enquanto "Imundo rabequista", "Zezé desafinado", e outras
vinte expressões ela jogava-me, que adrede decoradas pareciam, tão-só para insultar-me.

PETRUCCHJO - Pelo mundo! Que rapariga alegre! Amo-a dez vezes mais agora do que antes. Que
vontade de conversar com ela alguns momentos!

BATISTA (a Hortênsio) - Vem, vem comigo; não te mostres triste; continua a ensinar minha caçula; tem
gosto para o estudo e é agradecida. Signior Petrucchio, quereis vir conosco, ou preferis que eu manda
Catarina?

PETRUCCHIO - Pois não; mandai-a vir; aqui a espero.
(Saem Batista, Grêmio, Trânio e Hortênsio.)
Vou cortejá-la com algum espírito. Se me insultar, dir-lhe-ei sem circunlóquios que como o rouxinol tem
ela o canto; franzindo o rosto, lhe direi que é límpida como a rósea manhã que o orvalho banha; se não
disser palavra e ficar muda, elogios farei ao seu talento de expressar-se, afirmando que a eloqüência dela
é arrebatadora. Convidando-me a retirar-me, agradecido mostro-me, como se o grato invite eu recebesse
de ficar junto dela uma semana. Se desposar-me não quiser, lhe falo sobre os proclamas e o feliz evento.

Mas ei-la aí. Vamos, Petrucchio; fala.
(Entra Catarina.)
Sois bem-vinda, Quetinha. Esse, disseram-me, é o vosso nome; não é isso mesmo?

CATARINA - Sois lerdo para ouvir; quantos meu nome pronunciam, só dizem Catarina.

PETRUCCHIO - Por minha alma, mentis. Todos vos chamam Quetinha, simplesmente, a brincalhona
Quetinha, e, às vezes, a Quetinha brava; mas, Quetinha, a Quetinha mais galante de toda a cristandade, a
superdoce Quetinha, o bom-bocado do meu gosto - sim, pois Quetinha é o meu melhor bocado Quetinha,
meu consolo, ouve-me agora: tendo ouvido elogiar tua doçura em todas as cidades, a virtude que te é
própria, e cantar tua beleza - aliás, bem menos do que mereceras - movi-me a desejar-te para esposa.

CATARINA - Movestes-vos em tempo. Que o demônio que vos moveu a ver-me vos remova, sem
demora, daqui. Logo de início notei que éreis um móvel.

PETRUCCHIO - Como! Um móvel?

CATARINA - Um tamborete, sim.

PETRUCCHIO - Deste no vinte; então vem logo e sobre mim se senta.

CATARINA - Os asnos como vós suportam carga.

PETRUCCHIO - As mulheres também suportam carga.

CATARINA - Mas não um tolo como vós, se é certo que a mim vos referis.

PETRUCCHIO - Boa Quetinha, não quero sobrecarregar-te, vendo que és muito moça e leve.

CATARINA - Muito leve para ser apanhada por um rústico. Sou tão pesada quanto devo sê-lo.

PETRUCCHIO - Pesada, não; preada.

CATARINA - Ave de preia só conheço gavião.

PETRUCCHIO - Ó vagarosa rolinha, um gavião irá apanhar-te?

CATARINA - Bruto seria para uma rolinha.

PETRUCCHIO - Vamos, vespa; ferina sois bastante.

CATARINA - Sendo eu vespa, cuidado com o ferrão.

PETRUCCHIO - Há remédio para isso: arranco-o logo.

CATARINA - Sim, no caso de o tolo vir a achá-lo.

PETRUCCHIO - Quem não sabe onde as vespas o têm sempre? No corpinho.

CATARINA - Na língua.

PETRUCCHIO - Como! língua? Língua de quem?

CATARINA - Na vossa, se em corpinho vindes falar-me. Adeus.

PETRUCCHIO - Como! Com minha língua em vosso corpinho? Não, Quetinha; voltai; sou um
cavalheiro.

CATARINA - Vou ver isso.
(Bate-lhe.)

PETRUCCHIO - Se me bateres novamente, juro que te darei um murro.

CATARINA - Nesse caso, perderíeis as armas; pois, batendo-me, não seríeis em nada cavalheiro, e, não
o sendo, não teríeis armas.

PETRUCCHIO - Quetinha arauto, inscreve-me em teu livro.

CATARINA - Vosso emblema qual é? Crista de galo?

PETRUCCHIO - Galo sem crista, se Quetinha, agora, for a minha franguinha.

CATARINA - Não desejo galo assim; se sois galo, sois corrido.

PETRUCCHIO - Quetinha, não te mostres tão azeda.

CATARINA - Só fico assim ao ver maçã silvestre.

PETRUCCHIO - Aqui não há maçã silvestre; deixa de ser azeda.

CATARINA - Há, sim.

PETRUCCHIO - Mostra onde se acha.

CATARINA - Se eu tivesse um espelho, mostraria.

PETRUCCHIO - Então meu rosto é que me mostraríeis?

CATARINA - Tão moço e tão sabido.

PETRUCCHIO - Por São Jorge, sou muito moço, mesmo.

CATARINA - E já enrugado.

PETRUCCHIO - Só de cuidados.

CATARINA - Não me dá cuidado.

PETRUCCHIO - Vamos Quetinha; estou falando sério: não fugireis de mim. CATARINA - Hei de
irritar-vos, no caso de eu ficar.

PETRUCCHIO - Nem um pouquinho; acho-vos mui gentil. Tinham-me dito que éreis selvagem, áspera e
estouvada; e ora vejo que o boato é mentiroso, pois és muito cortês, encantadora, de gênio divertido; um
pouco tarda para falar, mas suave como as flores da primavera. Os lábios tu não mordes, tal como as
raparigas irritadas. Não contradizes nunca outras pessoas; é sempre branda que manténs conversa com
teus cortejadores, sempre afável, com gentis ademanes. Por que o mundo diz que Quetinha é manca? Oh
mundo infame! Quetinha é reta e esbelta como galho de aveleira, de tez amorenada como a avelã, tão
doce quanto a fruta. Oh! anda um pouco; sei que não claudicas.

CATARINA - Vai dar ordem, cretino, aos teus criados.

PETRUCCHIO - Teria ornado Diana uma floresta como Quetinha agora este aposento com seu porte
fidalgo? Oh! que ela seja Quetinha, e tu, Diana, porque casta Quetinha fique e Diana, brincalhona.

CATARINA - Onde estudastes todo esse discurso?

PETRUCCHIO - Do espírito me nasce; é de improviso.

CATARINA - O espírito é fecundo; o dono, estéril.

PETRUCCHIO - Como! Então não sou sábio?

CATARINA - O suficiente para vos aquecerdes.

PETRUCCHIO - Justamente, querida Catarina, no teu leito. Mas deixando de lado todo o nosso
palavreado, falemos claramente. Consentiu vosso pai no casamento; combinamos o dote. E agora, ainda
que não queirais, tereis de desposar-me. Podeis crer-me, Quetinha: eu sou o marido que vos convém. Por
esta luz o juro, que me permite ver tua beleza - essa beleza que de ti me deixa de tal modo rendido - outro
marido que não seja eu, não poderás ter nunca, pois eu nasci para domar-te, para transformar a Quetinha
rezingueira numa Quetinha mansa, e tão amável como as Quetinhas donas de seus lares. Teu pai vem
vindo agora não te insurjas, pois quero Catarina para esposa.
(Voltam Batista, Grêmio e Trânio.)

BATISTA - Então, Signior Petrucchio, de que modo ides com minha filha?

PETRUCCHIO - De que modo, senhor? Do melhor modo; nem me for a possível fracassar no meu
intento.

BATISTA - E minha filha Catarina, sempre de rosto carrancudo?

CATARINA - Dais-me o nome de filha? Pois afirmo sob palavra. Que paternal afeto revelastes querendo
desposar-me com um lunático, um João praguejador, um tresloucado, que quer impor-se só com
juramentos.

PETRUCCHIO - Pai, o negócio é assim: vós e os mais todos que falais dela estais muito enganados. Ela
só é indigna por política; rabugenta não é, mas tão modesta como a rola; não tem gênio esquentado,
sendo tão fresca quanto a manhã bela. Em paciência é Griselda rediviva; a romana Lucrécia, em
castidade. Em conclusão: deixamos combinado casarmo-nos no próximo domingo.

CATARINA - Primeiro nesse dia quero ver-te pendurado na forca.

GRÊMIO - Ouve, Petrucchio, ela disse que te quer ver na forca.

TRÂNIO - E assim vossa história? Então, boa noite para nosso contrato. PETRUCCHIO - Cavalheiros,
paciência. Eu a escolhi de motu próprio. Se nós dois estivermos satisfeitos, que vos importa o resto?
Combinamos, quando ficamos sós, que em companhia de outras pessoas ela impertinente devia se
mostrar. Posso afiançar-vos: não fazeis uma idéia de quanto ela me tem amor. Oh terna Catarina! Do
pescoço pendeu-me, prodigando-me beijo em cima de beijo, juramentos de amor os mais ardentes, tão de
pronto se revelou de mim apaixonada. Oh! sois noviços. É uma maravilha verificar, quando a mulher e o
homem ficam sós, como pode um mariquinhas dominar a megera mais rebelde. Quetinha, dá-me a mão.

Vou a Veneza comprar a roupa para o casamento. Preparai os festejos, pai, mandando logo convite para
os conhecidos. Certo estou de que a minha Catarina vai mostrar-se galante.

BATISTA - Disso tudo não sei o que pensar; mas dai-me as mãos. Petrucchio, Deus vos dê felicidade.
Está assentado.

GRÊMIO E TRÂNIO - Amém, é o que dizemos; seremos os padrinhos.

PETRUCCHIO - Pai, esposa, cavalheiros, adeus. Vou a Veneza; domingo já está perto. Anéis teremos
nesse dia, festanças e alto gozo. Agora um beijo no teu caro esposo.
(Saem Petrucchio e Catarina por lados diferentes.)

GRÊMIO - Já houve noivado assim tão apressado?

BATISTA - Tal como o comerciante, muito ou pouco nesta hora arrisco num negócio louco.

TRÂNIO - Era uma carga que vos molestava; agora ou vos dá lucro ou vai ao fundo.

BATISTA - Só quero um lucro: paz nesse contrato.

GRÊMIO - Pacífico para ele foi esse ato. Mas agora, Batista, é mais que tempo de falarmos em vossa
filha Bianca. Chegou o dia por que tanto ansiávamos. Vosso vizinho sou; a apresentar-me fui o primeiro
como pretendente.

TRÂNIO - O amor que voto a Bianca não se pode comprimir em palavras; ultrapassa vosso próprio
conceito.

BATISTA - Jovem, nunca amá-la poderás com tantas veras como seu próprio pai. TRÂNIO - Barba
cinzenta, teu amor vira gelo.

GRÊMIO - E o teu derrete. Sai, desmiolado! Brilha a meia-idade.

TRÂNIO - Mas às jovens apraz a mocidade.

BATISTA - Não brigueis, cavalheiros; tenho um meio para solucionar a desavença. Vão decidir os fatos.
De vós ambos o que firmar a minha filha dote mais opulento, o amor terá de Bianca. Dizei-me, signior
Grêmio, que importância podeis assegurar-lhe?

GRÊMIO - De começo, como sabeis, a casa que eu possuo na cidade adornada é ricamente com baixelas
de prata e ouro abundante, jarros, bacias para as mãos lavar-lhe, tão delicadas. São minhas cortinas. Tudo
isso será dela. Então, meu caro signior Grêmio, deixei-vos achatado? de tecidos da Tíria; nos meus cofres
de marfim as coroas se comprimem; nas arcas de ciprestes tenho colchas, cortinas, baldaquins, vestes
custosas, batistas finas, almofadas turcas com pérolas tecidas, franjas vindas de Venera, com fios de ouro
ornadas, cobre e estanho a valer, e tudo quanto faz parte de uma casa bem montada. Em minha granja
tenho uma centena de vacas prontas para boa ordenha, além de cento e vinte bois no estábulo, e tudo o
mais em proporção idêntica. Não nego que já sou um tanto idoso. Se eu morrer amanhã, tudo isso é dela,
caso, enquanto eu viver, ela for minha.

TRÂNIO - Esse "caso" do fim chegou a tempo. Signior Batista, ouvi-me. Sou filho único e herdeiro de
meu pai. Se vossa filha se tornar minha esposa, três ou quatro casas lhe deixarei na rica Pisa, tão belas
como quantas tenha em Pádua o velho signior Grêmio. Acrescentemos a isso uma renda de dois mil

ducados por ano em terras boas para amanho.

GRÊMIO - Dois mil ducados anuais de terra? Minhas terras não dão tamanha renda. Mas prometo
também que será dela minha carraca que ancorada se acha no porto de Marselha. E ora dizei-me se não
vos achatou minha carraca?

TRÂNIO - Grêmio, é sabido que meu pai possui nada menos que três carracas fortes, e mais duas galeras
e uma dúzia de embarcações menores. Isso tudo de dote lhe asseguro e mais o dobro de tudo quanto
possas ofertar-lhe.

GRÊMIO - Não; já ofereci tudo; é quanto tenho. Não posso dar-lhe mais do que possuo; de meus bens e
de mim será senhora, no caso de escolher-me.

BATISTA - Sim, confesso que é maior vossa oferta. Assegurando vosso pai a fortuna como dote de
minha filha, será vossa esposa. Mas sem isso, perdoai-me: se morrerdes primeiro, qual será o dote dela?

TRÂNIO - Isso é um sofisma; ele está velho; eu, moço.

GRÊMIO - E não morrem os moços como os velhos?

BATISTA - Muito bem, cavalheiros; resolvi deste modo: no domingo próximo minha filha Catarina vai
casar-se. Pois bem: no outro domingo Bianca ficará sendo vossa noiva, se lhe puderdes dar essa certeza;
se não, noiva será do signior Grêmio. E assim, muito obrigado e adeus para ambos.

GRÊMIO - Vizinho, passai bem. (Sai Batista.) Não tenho medo de ti. Com a breca, meu taful! Bem tolo
seria vosso pai se te fizesse dádiva do que tem, para debaixo viver de tua mesa na velhice. Uma raposa
italiana, moço, não arrisca assim fácil o pescoço.
(Sai.)

TRÂNIO - Pele engelhada, o diabo te carregue! Mas tenho um dez para ganhar o jogo. Já encontrei a
maneira de meu amo vir a sair-se bem. Não há motivo - não o vejo - para que um Lucêncio falso não
tenha um pai Vicêncio também falso. Eis o estranho do caso: os pais, de regra, dão vida aos filhos; mas
neste noivado pelo filho vai ser o pai gerado.
(Sai.)