Entra um grupo de cidadãos amotinados, com bastões, varas e outras armas.
PRIMEIRO CIDADÃO - Antes de irmos adiante, ouvi-me.
TODOS - Falai! Falai!
PRIMEIRO CIDADÃO - Estais mesmo decididos a morrer, de preferência a passar fome?
TODOS - Estamos! Estamos!
PRIMEIRO CIDADÃO - Inicialmente, sabeis que Caio Márcio é o principal inimigo do povo.
TODOS - Sabemos! Sabemos!
PRIMEIRO CIDADÃO - Matemo-lo, portanto, e teremos trigo pelo preço que bem entendermos.
Resolvido?
TODOS - A esse respeito, nem mais uma palavra. Passemos à ação. Vamos! Vamos!
SEGUNDO CIDADÃO - Uma palavra, bons cidadãos.
PRIMEIRO CIDADÃO - Somos tidos na conta de cidadãos pobres; só os patrícios é que são bons. O que
deixa fartos os dirigentes bastaria para aliviar-nos. Se nos cedessem apenas as sobras deles, que ainda
estivessem em boas condições, poderíamos imaginar que eles nos aliviavam humanamente. Mas acham
que somos por demais caros. A magreza que nos aflige, retrato de nossa miséria, é como que o inventário
minucioso da riqueza de todos eles. Para eles nosso sofrimento é lucro. Vinguemo-nos, portanto, com
nossos bastões, antes de ficarmos reduzidos a ripas; pois os deuses sabem que o que me faz dizer isso é a
fome de pão, não a sede de vingança.
SEGUNDO CIDADÃO - Quereis agir especialmente contra Caio Márcio?
PRIMEIRO CIDADÃO - Contra ele em primeiro lugar; é um verdadeiro cão para o povo.
SEGUNDO CIDADÃO - Já pensastes nos serviços que ele prestou ao país?
PRIMEIRO CIDADÃO - Perfeitamente, e com muito gosto lhe faria por isso boas referências; mas ele se
apaga com o próprio orgulho.
SEGUNDO CIDADÃO - Ora! falai sem maldade.
PRIMEIRO CIDADÃO - É o que vos digo. O que ele fez de glorioso foi apenas para esse fim. Muito
embora as pessoas de consciência delicada possam dizer com suficiência que ele fez tudo isso pela pátria,
fê-lo para agradar a mãe e por causa do seu próprio orgulho, que, sem dúvida, vai de par com seu
merecimento.
SEGUNDO CIDADÃO - Considerais vício nele o que é inerente à sua natureza. Pelo menos não
podereis dizer que ele seja cúpido
PRIMEIRO CIDADÃO - Se não posso dizê-lo, nem por isso fico sem acusações contra ele. Tem defeitos
de sobra, que cansaria enumerar. (Gritos ao longe.) Que gritos serão esses? O outro lado da cidade já se
revoltou. E nós que fazemos aqui, a tagarelar? Ao Capitólio!
TODOS - Vamos! Vamos!
PRIMEIRO CIDADÃO - Silêncio! Quem vem aí?-
(Entra Menênio Agripa.)
SEGUNDO CIDADÃO - É o digno Menênio Agripa. Sempre se mostrou amigo do povo.
PRIMEIRO CIDADÃO - É muito honesto. Quem nos dera que todos fossem como ele.
MENÊNIO - Que tendes, meus concidadãos, em mira? Para onde ides com paus e cachaporras?
Que se passa? Dizei-me, por obséquio.
PRIMEIRO CIDADÃO - Nossa causa não é desconhecida do senado; nestes quinze dias eles já
farejaram o que pretendemos fazer e que vamos mostrar-lhes agora com os próprios fatos. Eles dizem
que os suplicantes pobres têm fôlego comprido; mas hão de ver que nossos braços também são
compridos.
MENÊNIO - Mestres, caros amigos, bons vizinhos, quereis arruinar-nos?
PRIMEIRO CIDADÃO - Isso não será possível, senhor; já estamos arruinados.
MENÊNIO - Acreditai-me, amigos: os patrícios têm por vós todos a mais caridosa solicitude. Com
respeito a vossas necessidades e o que estais sofrendo com essa carestia, tanto vale bater no céu com
todas essas armas, como jogá-las no romano Estado, que seguirá seu curso, arrebentando dez mil freios
mais fortes do que quanta resistência pudésseis antepor-lhe. No que respeita à carestia - os deuses, não os
patrícios, são seus causadores - remédio lhe virá de vossos joelhos, não dos braços. Oh céus! Fostes
levados pela calamidade aonde maiores, ainda, vos esperam. Caluniastes os pilotos do Estado, que de
todos vós cuidam como pais, sempre zelosos, enquanto os insultais como a inimigos.
PRIMEIRO CIDADÃO - Cuidam de nós? Muito certo, realmente! Nunca se incomodaram conosco;
deixam-nos morrer de fome, enquanto seus celeiros estão abarrotados de trigo; promulgam editos sobre a
usura, para favorecerem os onzeneiros; revogam diariamente dispositivos estabelecidos contra os ricos e
promulgam todos os dias estatutos cada vez mais vexatórios, para encadear e oprimir o povo. Se as
guerras não nos devorarem antes, eles o farão. É esse todo o amor que revelam a nosso respeito.
MENÊNIO - De duas uma: ou confessais que sois muito maldosos, ou tolos por demais. Vou relatar-vos
uma fabula muito interessante. Decerto a conheceis; mas como serve muito bem a meus fins, vou
arriscar-me a contá-la de novo.
PRIMEIRO CIDADÃO - Muito bem; vamos ouvi-la, senhor; mas não vades imaginar que podereis
chasquear de nossa miséria com uma fabulazinha qualquer. Não tem importância; quando quiserdes
podereis principiar.
MENÊNIO - Contra o estômago os membros se insurgiram certo dia, acusando-o de no meio do corpo
colocar-se, preguiçoso sempre e inativo, e, como sorvedouro, absorver, insaciável, a comida, sem nunca
contribuir com sua parte para o comum trabalho, enquanto os outros órgãos viam, andavam, refletiam,
sentiam e falavam, contribuindo cada um, assim, com sua parte, para proverem às comuns necessidades e
apetites do corpo. Respondeu-lhes o estômago... -
PRIMEIRO CIDADÃO - Ora bem, senhor: qual foi a resposta do estômago?
MENÊNIO - Vou dizer-vos, senhor. Com uma espécie de sorriso, que não se originava dos pulmões, um
sorriso deste modo - pois, no final de contas, tanto posso dotar o estômago de fala como fazer que ele
sorria - com um sorriso desdenhoso falou aos insurrectos, aos membros sediciosos que invejavam suas
atividades absorventes, tal como ora fazeis, só por maldade, com nossos senadores, por não serem em
tudo iguais a vós.
PRIMEIRO CIDADÃO - Mas a resposta do estômago? Que disse? Se a cabeça de real coroa, os olhos
vigilantes, o conselheiro coração, os braços nossos soldados, os corcéis - as pernas - a língua nosso
trombeteiro e as outras aparelhagens e menores peças de nossa construção, se todos, disse...
MENÊNIO - E então? E então? Mas como ele é eloqüente! E então, que aconteceu?
PRIMEIRO CIDADÃO - Se todos ficam lesados pelo estômago voraz, que é a sentina do corpo...
MENÊNiO - Bem, e agora?
PRIMEIRO CIDADÃO - Se eles, os principais, fizeram queixa, que poderia responder o estômago?
MENÊNIO - Já vou dizer-vos. Se me concederdes um pouco do que quase nada tendes, que é paciência,
direi sua resposta.
PRIMEIRO CIDADÃO - Quantas voltas fazeis para dizê-la!
MENÊNIO - Atenção, caro amigo! Nosso estômago, sempre grave, manteve-se tranqüilo, sem revelar
exaltação nenhuma, como seus detratores. Deste modo lhes respondeu: "É certo, meus amigos
incorporados", disse, "que eu recebo, antes de outro qualquer, todo o alimento de que viveis, e é justo que
assim seja, por ser eu o depósito e celeiro de todo o corpo. Mas se estais lembrados, pelos canais de
vosso sangue tudo de novo mando à corte, ao coração, à alta sede do cérebro, e assim, pelos sinuosos
passos da oficina humana, os nervos mais potentes e as menores arteríolas de mim recebem tudo de
quanto necessitam para a vida. E muito embora todos vós, a um tempo, meus bons amigos..." isso disse o
estômago, observai bem. -
PRIMEIRO CIDADÃO - Pois não, senhor. Adiante!
MENÊNIO - "E muito embora todos vós, a um tempo, não vejais o que eu dou em separado para cada
um, mui fácil é provar-vos por um cálculo certo e rigoroso, que recebeis de mim toda a farinha,
sobrando-me de tudo só o farelo." Que dizeis a isso?
PRIMEIRO CIDADÃO - Foi resposta boa. E a sua aplicação?
MENÊNIO - Os senadores de Roma são esse bondoso estômago; vós, os membros rebeldes. Seus
conselhos examinai, suas canseiras todas, e heis de reconhecer que os benefícios gerais que recebeis vêm
tão-somente da parte deles, nunca de vós mesmos. E vós aí, que pensais disto, sendo, como sois, o dedão
do pé do grupo?
PRIMEIRO CIDADÃO - Eu, o dedão do pé? Por que o dedão?
MENÊNIO - Porque sendo, como és, um dos mais baixos, mais pobres e ordinários desta muito sapiente
rebelião, vais sempre à frente. E se assim fazes, é porque farejas qualquer vantagem própria. Vamos! Ide
preparar vossas clavas resistentes, vossos bastões, que Roma está no ponto de bater-se com os ratos. Um
dos lados terá de ser malhado.
(Entra Caio Márcio.)
Nobre Márcio, Salve!
MÁRCIO - Muito obrigado. Que acontece, marotos rezingueiros, que de tanto coçar a pobre crosta da
vaidade vos transformais em sarna?
PRIMEIRO CIDADÃO - Só palavras boas é que nos dais.
MÁRCIO - Quem vos desse palavras boas vos adularia de produzir engulhos. Que vos falta, cães
ordinários, se não vos agrada nem a paz nem a guerra? Esta vos causa pavor; aquela vos aumenta a
empáfia. Quem se fiasse de vós, na hora precisa, em vez de leões encontraria lebres; em lugar de raposas,
simples patos. Não; mais seguros não vos mostrais nunca do que um carvão ardente sobre o gelo, ou
saraiva no sol. Vossa virtude consiste em exaltar quem abatido se acha das próprias faltas, para, logo,
malsinar a justiça. Quem se mostra merecedor de glória, de vosso ódio também se mostra. Tal como os
desejos de certos doentes são vossos impulsos, que visam sobretudo quanto possa aumentar-lhes a
doença. Quem depende de vossa graça nada com espadanas de chumbo e abate robles com gravetos.
Enforcai-vos! Confiar em vós? Mudais de idéia a cada instante; achais que é nobre quem vosso ódio até
há pouco merecia, e infame o que era vosso emblema máximo. Que aconteceu? Por que motivo em
vários quarteirões da cidade gritais tanto contra o nobre senado que sob a égide dos deuses vos mantém
sempre com medo, que, do contrário, vos devoraríeis uns aos Outros? - Dizei: que é que eles querem?
MENÊNIO - Trigo por preço que eles estipulem, pois acham que há bastante na cidade.
MÁRCIO - Vão todos se enforcar! Acham? Ao fogo! Ficam sentados e saber presumem quanto no
Capitólio está passando: quem poderá subir, quem enriquece, quem declina; a facções diversas se unem,
conjeturais alianças põem por terra, reforçam seus partidos e enfraquecem os que no desagrado lhes
caíram, pondo-os abaixo dos sapatos rotos. Acham que há muito trigo? Se a nobreza pusesse a
compaixão de lado e a espada deixasse que eu usasse, logo um monte faria de pedaços desses biltres, da
altura desta lança.
MENÊNIO - Não; estes estão já persuadidos, pois embora lhes falte em grande escala qualquer
discernimento, são covardes a mais não poder ser. Mas, por obséquio, que diz o outro magote?
MÁRCIO - Dispersaram-se. Que se enforquem! Disseram-se esfomeados. Sopravam certas máximas:
que a fome rompe muralhas; ou que até cachorro precisa de alimentos; que comida foi feita para as
bocas, e que os deuses não deram trigo apenas para os ricos. Com esses trapos é que fazem vento para
suas lamúrias. Responderam-lhes, e tendo sido satisfeito numa das exigências - coisa perigosa, de
arrebentar o próprio coração da generosidade e deixar pálido o poder mais altivo - logo os gorros a jogar
para cima começaram, como se pretendessem espetá-los lá nos cornos da lua, arrefecendo de pronto a
grande ardência.
MENÊNIO - E que vitória aí alcançaram?
MÁRCIO - A de terem cinco tribunos, por escolha livre deles, para defesa da sabedoria do populacho.
Júnio Bruto é um deles, e Sicínio Veluto, e... os outros. - Bolas! - Como posso saber? Destelharia
primeiro essa canalha Roma inteira, antes de obter de mim uma tal coisa. O tempo os deixará mais fortes,
sobre dar nascimento a temas de mais peso, para novas revoltas.
MENÊNIO - É curioso!
MÁRCIO - Ide embora, fragmentos! Para casa!
(Entra apressadamente um mensageiro.)
MENSAGEIRO - Onde está Caio Márcio?
MÁRCIO - Aqui. Que é que houve?
MENSAGEIRO - Senhor, a novidade é que esses volscos estão em armas.
MÁRCIO - Muito isso me alegra; assim, teremos oportunidade de ventilar um pouco as nossas sobras
emboloradas. Vede, aí vêm vindo nossos graves anciões.
(Entram Comínio, Tito Lárcio e outros senadores; Júnio Bruto e Sicínio Veludo.)
PRIMEIRO SENADOR - Márcio, é verdade quanto nos referistes não faz muito: que se haviam os
volscos levantado.
MÁRCIO - É que eles têm um chefe, Tulo Aufídio, que vos dará trabalho. Tenho inveja, confesso-o, da
nobreza que lhe é própria. Não fosse eu ser eu mesmo, desejara ser ele, tão-somente.
COMÍNIO - Já tivestes ocasião de com ele medir forças.
MÁRCIO - Se metade do mundo se encontrasse com a outra parte em luta, e ele estivesse do meu lado,
eu passara para o imigo, só para o combater, só pelo orgulho de caçar esse leão.
PRIMEIRO SENADOR - Então, meu digno Márcio, servi sob a ordem de Comínio.
COMÍNIO - Assim o prometestes.
MÁRCIO - Sim, confirmo, senhor, minha promessa; sou constante. Tito Lárcio, hás de ver-me
novamente atacar Tulo Aufídio. Como! Coxo? Vais ficar fora?
TITO - Não, meu Caio Márcio; antes firmar-me numa das muletas e combater com a outra, do que
ver-me excluído dessa pugna.
MENÊNIO - Oh sangue nobre!
PRIMEIRO SENADOR - Ide conosco até ao Capitólio, onde os nossos melhores companheiros, tenho
certeza, estão à nossa espera.
TITO (a Comínio) - Ide na frente.
(A Márcio.)
Acompanhai Comínio; seguiremos atrás. A precedência o mérito é que indica.
COMÍNIO - Nobre Márcio!
PRIMEIRO SENADOR (aos cidadãos) - A vossa casas recolhei-vos. Vamos!
MÁRCIO - Não; que nos sigam todos. Têm os volscos bastante trigo; levai esses ratos para roerem os
celeiros deles. Dignos amotinados, vosso brio já começa a dar frutos. Vinde! Vinde!
(Saem os senadores, Comínio, Márcio, Tito e Menênio; os cidadãos se dispersam.)
SICÍNTO - Há alguém, como este Márcio, tão soberbo?
BRUTO - Não há ninguém como ele.
SICÍNIO - Quando escolhidos fomos para o cargo de tribunos do povo...
BRUTO - Não notastes os olhos dele e os lábios?
SICÍNIO - Não; apenas seus sarcasmos.
BRUTO - Achando-se irritado, não teme criticar os próprios deuses.
SICÍNIO - Nem fazer troça da modesta lua.
BRUTO - Que esta guerra o devore! Está ficando muito infindo de sua valentia.
SICÍNIO - Tal natureza, lisonjeada pelo grande êxito, desdenha a própria sombra em que pisa de dia. Só
me admiro de que sua insolência se conforme em ficar sob o mando de Comínio.
BRUTO - A fama a que ele visa e que de graças já o cumulou bastante, nunca pode ser obtida tão bem
como num posto subalterno ao primeiro, porque todos os reveses à conta são lançados do general
somente, muito embora este tivesse feito o que cabia nos recursos humanos, e a censura leviana, então,
houvera proclamado: "Oh! se Márcio estivesse à frente disto!"
SICÍNIO - Além do mais, correndo bem as coisas, a opinião, que de Márcio tanto pende, roubará de
Comínio todo o mérito.
BRUTO - Sim; metade das glórias de Comínio será de Márcio, muito embora Márcio não as tenha
ganhado, e suas faltas redundarão, também, em glória deste, conquanto não lhe caiba nenhum mérito.
SICÍNIO - Vamos saber agora as providências determinadas e com que recursos, além de seu valor, ele
se apresta para a presente guerra.
BRUTO - Vamos logo.
(Saem.)