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CORIOLANO, ATO IV, Cena V

O mesmo. Vestíbulo em casa de Aufídio. Música dentro. Entra um criado.

PRIMEIRO CRIADO - Vinho! vinho! vinho! Que serviço dessa gente! Só parece que todos estão
dormindo!
(Sai.)
(Entra outro criado.)

SEGUNDO CRIADO - Onde está Cotus? O patrão está chamando. Cotus!
(Sai.)
(Entra Coriolano.)

CORIOLANO - Bela casa! A ceia cheira bem; eu é que não pareço hóspede.
(Volta o primeiro criado.)

PRIMEIRO CRIADO - Que desejais, amigo? De onde sois? Aqui não há lugar para vós. Ficai na porta,
por obséquio.
(Sai.)

CORIOLANO - Não mereço acolhida mais afável, já que sou Coriolano.
(Volta o segundo criado.)

SEGUNDO CRIADO - De onde sois, senhor? O porteiro estará com os olhos no lugar, para permitir a
entrada a um tipo desses? Por obséquio, ide embora.

CORIOLANO - Arreda!

SEGUNDO CRIADO - "Arreda?" Vós é que tereis de arredar-vos.

CORIOLANO - Mostrai-vos insolente.

SEGUNDO CRIADO - Ah! sois tão valente assim? Já vamos ter uma conversazinha.
(Entra o terceiro criado; volta o primeiro.)

TERCEIRO CRIADO - Quem é esse sujeito?

PRIMEIRO CRIADO - É um tipo original, como nunca vi outro assim. Não consigo fazê-lo sair daqui.
Vai chamar o patrão, por obséquio.

TERCEIRO CRIADO - Amigo, que tens a fazer aqui? Por obséquio, evita esta casa.

CORIOLANO - Permiti que me conserve de pé; não causarei dano à lareira.

TERCEIRO CRIADO - Quem sois?

CORIOLANO - Um gentil-homem.

TERCEIRO CRIADO - Admiravelmente pobre.

CORIOLANO - É o que sou, de fato.

TERCEIRO CRIADO - Por favor, gentil-homem pobre, escolhei pousada. Aqui não há lugar para vós.
Ide embora, por obséquio. Vamos!

CORIOLANO - Continuai com vossas ocupações; empanturrai-vos de frios.
(Dá-lhe um empurrão.)

TERCEIRO CRIADO - Ah! não quereis? Por favor, faze saber ao patrão que hóspede estranho ele tem
aqui.

SEGUNDO CRIADO - Vou já.
(Sai.)

TERCEIRO CRIADO - Onde moras?

CORIOLANO - Debaixo da abóbada.

TERCEIRO CRIADO - "Debaixo da abóbada?"

CORIOLANO - Sim.

TERCEIRO CRIADO - E onde fica isso?

CORIOLANO - Na cidade dos milhanos e dos corvos.

TERCEIRO CRIADO - "Na cidade dos milhanos e dos corvos?" Que grande asno! Nesse caso, moras
também com as gralhas?

CORIOLANO - Não; não estou a serviço de teu patrão.

TERCEIRO CRIADO - Como assim, senhor! Tendes alguma coisa que ver com meu patrão?

CORIOLANO - Sim, alguma coisa mais honesta do que seria intrometer-me com tua patroa. Não paras
de falar. Leva teu prato! Fora daqui!
(Expulsa-o com pancada.)
(Entra Aufídio e o primeiro criado.)

AUFÍDIO - Quem é esse camarada?

SEGUNDO CRIADO - Aqui, senhor. Eu o teria batido como num cão, se não fosse o receio de
incomodar lá dentro os nobres.

AUFÍDIO - Que queres? De onde vens? Qual o teu nome? Por que não falas? Vamos, homem: fala!

Como te chamas?

CORIOLANO (descobrindo o rosto) - Se não me conheces ainda, Tulo, e, vendo-me, não pensas quem
eu seja, de fato, será força que eu mesmo me nomeie.

AUFÍDIO - Qual teu nome?
(Os criados se afastam para o fundo.)

CORIOLANO - Um nome dissonante para os volscos e duro aos teus ouvidos.

AUFÍDIO - Dize: o nome? Tens aspecto sanhoso, mas revelas o mando nas feições, e embora roto tragas
todo o velame, inculcas barco de nobre compostura. Qual teu nome?

CORIOLANO - Então prepara a fronte; vais franzi-la. Inda não me conheces?

AUFÍDIO - Não; teu nome?

CORIOLANO - Meu nome é Caio Márcio, que a ti próprio e aos volscos todos causa foi de males e
prejuízos inúmeros, conforme meu sobrenome o prova: Coriolano. Os trabalhos penosos, os perigos por
que passei, as incontáveis gotas de sangue derramadas pela minha pátria de todo ingrata, me valeram
tão-somente este nome, monumento magnífico e penhor do ódio e repulsa que me deves votar. Resta-me
apenas esse título. A inveja e a má vontade do povo, consentidas pelos nossos nobres bastardos, que me
abandonaram, tudo o mais consumiram. Sim, deixaram que de Roma eu chegasse a ser expulso pela voz
dos escravos. Foi tão grande calamidade que ao teu lar me trouxe; não na esperança - quero que me
entendas - de conservar a vida. Se eu tivesse medo da morte, dentre os homens todos, de ti,
principalmente, fugiria. Foi o rancor, apenas, o desejo de com meus proscritores justar contas que à tua
frente me trouxe. Se tiveres um coração cheio de raiva, pronto para vingar os males a ti feitos e endireitar
os aleijões que o opróbrio em tua pátria causou: não percas tempo e de minha desgraça te aproveita;
usa-a de forma que meus vingadores serviços favoreçam teus intentos, pois combater pretendo minha
pátria gangrenada com toda a odiosidade dos demônios do inferno. Mas no caso de não quereres
arriscar-te a tanto, de já estares cansado de aventuras... Para ser breve: mais do que enfarado da vida me
declaro e ao teu antigo rancor estendo agora este pescoço. Tolo te mostrarás, se o não cortares, pois teus
passos segui sempre com ódio, do seio de tua pátria toneladas de sangue fiz correr, já não podendo viver
senão para teu grande opróbrio, a menos que serviços te prestasse.

AUFÍDIO - Ó Márcio! Márcio! Uma por uma as tuas palavras arrancaram-me do peito as raízes de meu
rancor antigo. Se Júpiter, com sua voz divina, do alto daquela nuvem me dissesse: "É certo!" não lhe dera
maior crédito do que te dou, meu Márcio, em tudo nobre. Deixa que eu passe os braços nesse corpo em
que cem vezes eu quebrei a lança e de estilhaços arranhei a lua. Cinjo a bigorna, assim, de minha espada,
e com tanta veemência e com nobreza luto com teu afeto, como sempre lutei com fúria cobiçosa contra
tua bravura. A ti, somente, o digo: amava a jovem que ora é minha esposa. Jamais noivo nenhum soltou
suspiros tão sinceros que os meus. Porém, ao ver-te neste momento - a ser em tudo nobre! - mais
enlevado o coração no peito sinto saltar, do que quando a soleira transpôs de casa pela vez primeira
minha esposa recente. Ora te conto, Marte, que já aprestamos Outro exército, e que eu tinha a intenção de
novamente tentar das carnes arrancar-te o escudo, ou perder nisso o braço. Derrotaste-me doze vezes a
fio, e desde essa época sonhei todas as noites com recontros entre nós dois. Travados, no meu sono,
rolávamos no chão, o capacete um do outro a desatar, e nos pescoços, encrispados, os dedos, do que
sempre meio morto sem causa eu despertava. Digno Márcio, se mais nenhuma queixa de Roma nós
tivéssemos, afora teres sido banido, alistaríamos de doze até setenta os homens todos e nas entranhas
dessa ingrata Roma faríamos correr a guerra como rio impetuoso que transborda e alaga. Vem para
dentro e aperta a mão amiga de nossos senadores, que aqui vieram trazer-me as despedidas, pois armado
ora estou contra vossos territórios, muito embora não contra a própria Roma.

CORIOLANO - Ó deuses, abençoais-me?

AUFÍDIO - Assim, guerreiro sem par, se a direção tomar quiseres de tua própria represália, aceita
metade de meus homens e, de acordo com teu alto saber neste domínio, já que conheces a fraqueza e a
força de teu país, regula a tua marcha, ou seja para contra as próprias portas dos romanos bater, ou com
violência visitá-los nas partes mais remotas e derrotá-los antes de destruí-los. Mas entra! Quero logo
apresentar-te aos que terão de dizer "Sim" a todos os teus desejos. Vezes mil boas-vindas! E agora mais
amigo do que sempre fui inimigo. E, Márcio, eu o fui de fato. Vossa mão. Sois bem-vindo.
(Saem Coriolano e Aufídio.)

PRIMEIRO CRIADO (avançando) - Eis aí uma modificação extraordinária.

SEGUNDO CRIADO - Por esta mão, tinha pensado em bater-lhe com um porrete; mas agora me diz o
espírito que a roupa dele não dizia o que ele era.

PRIMEIRO CRIADO - E que punho ele tem! Só com um dedo e o polegar fez-me rodar que nem um
pião.

SEGUNDO CRIADO - Pelo rosto eu vi que ele não era pouca coisa. Homem, ele tinha feições,
parece-me... Nem sei como caracterizá-las.

PRIMEIRO CRIADO - É certo. Parecia... Quero ser enforcado se eu não suspeitei de que ele encerrava
mais do que eu poderia imaginar.

SEGUNDO CRIADO - Eu também posso jurá-lo. É simplesmente o homem mais raro do mundo.

PRIMEIRO CRIADO - É isso mesmo; mas decerto conheceis um guerreiro maior do que ele.

SEGUNDO CRIADO - Quem é? Meu amo?

PRIMEIRO CRIADO- Isso nem se pergunta.

SEGUNDO CRIADO - Vale seis como ele.

PRIMEIRO CRIADO- Não, não tanto assim; mas considero-o maior guerreiro.

SEGUNDO CRIADO - Com a breca! Ora vede... A gente nem sabe como dizer, mas para a defesa de
uma cidade, nosso general é excelente.

PRIMEIRO CRIADO - Sim, e também para um assalto.
(Entra o terceiro criado.)

TERCEIRO CRIADO - Ó escravos! Posso contar-vos novidades! Novidades, marotos!

PRIMEIRO E SEGUNDO CRIADOS - Quais! quais? quais? Conta-nos algumas.

TERCEIRO CRIADO - Entre todos os povos, não quisera ser romano; equivaleria a estar condenado.

PRIMEIRO E SEGUNDO CRIADOS - Por quê? Por quê?

TERCEIRO CRIADO - Ora, acha-se lá dentro quem estava acostumado a zurzir nosso general: Caio
Márcio.

PRIMEIRO CRIADO - Por que dissestes: "zurzir nosso general?"

TERCEIRO CRIADO- Não digo que ele tenha zurzido nosso general; mas sempre lhe deu muito
trabalho.

SEGUNDO CRIADO - Vamos, aqui entre nós, somos amigos e companheiros; foi sempre muito duro
para ele; ouvi o próprio general dizer-lhe isso.

PRIMEIRO CRIADO - Era muito duro para ele. Para dizer a verdade sem rodeios: diante de Coríolos ele
o cortou e retalhou como um carbonado.

SEGUNDO CRIADO - E se tivesse natureza de canibal, o teria comido assado.

PRIMEIRO CRIADO - Mas continua a contar as novidades.

TERCEIRO CRIADO - Ora, lá dentro ele está sendo tratado como se fosse filho e herdeiro de Marte;
deram-lhe a cabeceira da mesa; nenhum senador lhe faz qualquer pergunta, a não ser de pé, na frente dele
e de cabeça descoberta. Até nosso general o trata como a namorada, benze-se com uma das mãos e revira
os olhos, quando ele fala. Mas o ponto principal da novidade é que o nosso general foi cortado em dois,
já não sendo senão a metade do que era ontem, porque o outro ficou com a outra metade, por instância e
consentimento de toda a mesa. Diz ele que vai puxar as orelhas do porteiro de Roma; vai ceifar tudo o
que encontrar, deixando raso o caminho.

SEGUNDO CRIADO - E ele é tão capaz de fazer isso, como qualquer pessoa que eu imagine.

TERCEIRO CRIADO - Capaz? Há de fazê-lo. Porque, ora vede, senhor: tanto ele tem amigos como
inimigos, os quais amigos, senhor - por assim dizer - não ousam - ora vede, senhor - como dizemos -
declarar-se amigos, enquanto o virem na indireção.

PRIMEIRO CRIADO - Indireção? Que quer dizer isso?

SEGUNDO CRIADO - Mas quando eles virem, senhor, o homem em condições, com a crista novamente
de pé, todos eles sairão das tocas como coelhos depois que chove e virão banquetear-se com ele.

PRIMEIRO CRIADO - Mas para quando será isso?

TERCEIRO CRIADO - Amanhã, hoje, neste momento. Hoje à tarde ouvireis rufar o tambor. É, por
assim dizer, a primeira parte do festim, para ser executada antes de limparem os lábios.

SEGUNDO CRIADO - Bem; nesse caso vamos ver outra vez o mundo de pernas para o ar. Esta paz só
serve para enferrujar o ferro, engordar os alfaiates e aumentar o número dos fazedores de baladas.

PRIMEIRO CRIADO - Que venha a guerra, é o que eu digo; ela ultrapassa tanto a paz como o dia a
noite; é lesta, de ouvido fino e cheia de atividades. A paz é uma verdadeira apoplexia, um letargo, obtusa,
surda, sonolenta, insensível e é maior geradora de bastardos do que a guerra é destruidora de homens.

SEGUNDO CRIADO - É isso mesmo. E assim como a guerra, de algum modo, pode ser denominada o
maior fautor de violação, não se pode negar que seja a paz grande fazedora de cabrões.

PRIMEIRO CRIADO - Sim, é causa de se odiarem os homens.

TERCEIRO CRIADO - E a razão é que eles, então, têm menos necessidade uns do outros. Guerra, custe
quanto custar! Espero ver os romanos por preço tão barato quanto os volscos. Estão se levantando da
mesa! Estão se levantando!

TODOS - Entremos! Entremos!
(Saem.)